Ilustração: un poeme, Hanan Kasma
POESIA VERSUS PROSA
para Cristovão Tezza
Um bom poema é feito
tiro de misericórdia.
O poeta não tortura seu leitor
como faz o prosador,
linhas
e dias a fio.
É pá-buf!
O corpo caído:
o pingo na testa.
AUTO POSTO NOSSA SENHORA APARECIDA
“Ói passarim cagou no seu carro!”,
ela diz, franzina,
exatamente assim,
sorriso bonito nos lábios.
Não é sempre que encontro uma frentista,
e fresca e disposta
como esta.
Muito menos quem conjugue o verbo
“cagar”
com tal encanto e propriedade.
Sou um homem triste, esquivo, preso
à minha classe (sic),
preso
ao cinto deste carro.
Peço a ela que complete o tanque
e sigo adiante,
enchendo a cidade de sombras,
dióxido de carbono
e versos imperdoáveis.
GORDURA LOCALIZADA
Enfim, o sobrepeso!
Receitou-me a dieta da lua
e uns abomináveis
abdominais.
(À lua,
sei uivar como um lobo.)
O heroísmo nosso de cada dia:
sonhar horizontes
numa
esteira rolante.
“Meus avós rasgaram
mouros,
cruzaram mares...”
Mas você corre, Marcelo!
(Marcelo,
para onde?)
MORA NA FILOSOFIA?
(SONETILHO #1) (Take 2)
sobre samba de Monsueto
na cadência de Vinicius
Convém rimar
amor e dor,
pois dor e amor
dão belo par.
Mas quem for dar,
ao seu amor,
apenas dor,
não deve amar.
O que se quer,
melhor saber
e decidir.
E então viver
com quem se quer
sem mais mentir.
ADAMASTOR REVISITADO
(DÉCIMA, À MODA DA CASA)
“Oh! que não sei de nojo como o conte!”
(Camões, Os Lusíadas, Canto V)
Adamastor sentou-se em frente à tela.
Moveu o mouse. Abriu o navegador.
Atrás de sua Tétis, cego, segue,
não apenas de um olho, mas camões
dos dois. Ah, quem lhe desse o desengano!
Agora, como reparar o dano?
Razões não vão zerar as desrazões.
Urdiu um sonho, a que se viu entregue,
insano, mais que insano, o sonhador.
Zomba dele sem pena, Ninfa bela!
ELPENOR REVISITED(Take 5)
“Lie quiet divus.”
(Ezra Pound, The Cantos, Canto I)
Azar e muito vinho.
Dormi ao pé
do fogo.
Acordei empedernido.
Descendo pela escada,
despenquei.
Bati a nuca. Minh’alma
escapuliu-se.
Sem luto nem túmulo,
suplico:
recolham meus escritos.
Um nome de má sina
assinale-se aqui.
Marcelo Sandmann nasceu em Curitiba, em 1963. É poeta, compositor e professor de literatura portuguesa na Universidade Federal do Paraná. Publicou os seguintes livros de poesia: Lírico Renitente (2000, 2ª ed. 2012), Criptógrafo Amador (2006), Na Franja dos Dias (2012) e A Fio (2014). Como compositor, lançou os CDs Cantos da Palavra (1998); No Silêncio da Canção (2014), em colaboração com o grupo ZiriGdansk; e Conselho do Bom (2014), em parceria com Cláudio Menandro e Benito Rodriguez. Organizou e publicou o livro de ensaios A pau a pedra a fogo a pique: dez estudos sobre a obra de Paulo Leminski (2010).