pedem-te para criar
quando já não puderes realizar mais nada
para rabiscar com lágrimas a folha amassada de papel
dizem que arte é exigir o desencanto do mundo
que nos pague sua dívida
esquece isso
escreve quando leve
quando tiveres outras coisas a fazer
escreve como que surpreendido de manhã
pelos raios de sol que escapam
das gotas de orvalho
*
homens graves encaram o horizonte
e pisam as areias de Nazca
em suas linhas feridas a esmo
como hereges perfazem um ato de fé
é preciso fugir dos males daqui
regressar à pátria querida
(num mundo de bastidores
a verdade cheira a demência)
é preciso fazer-se escada
saltar por abismos de graça e justiça
mais altos mais desconhecidos mais claros
é preciso colocar a própria mente
sob a sola dos pés
a fim de que as antigas vias tortas
imagens vistas do alto
testemunhem a transfiguração
*
ela aquietou o pensamento
(pósmetadiscurso niilista autofágico fogo da falta de sentido que impostor arde na corte dos Romanov a tramar a própria ascensão a preparar a revolução de Outubro a planejar a planificação da esperança)
e sorriu para as montanhas
*
ao fim da jornada
compreendeu Ulisses
os maiores riscos
quais eram
o corpo nupcial de Nausícaa
a imortalidade vislumbrada
nas coxas de Calipso
as delícias de Circe
mas ele, homem multiardiloso, saqueador de cidades, ninguém
ele, que tinha a nostalgia como guia
havia gravado Ítaca
em brasa, na sola dos pés
*
alegria, pura
dos bêbados
dos náufragos
dos santos
abandonar-se
ao manancial
das circunstâncias
*
afogado no mistério
procura no vinho a razão
contempla o reflexo
na mancha vermelha do tapete
e descobre
que cada coisa perfeita desse mundo está a caminho
de não-ser
que cada gota ligeira do vazio
flui na língua dos pássaros
que todo cume todo abismo
é teofania
Poemas de Rua Musas (Editora Patuá, 2013)
Ilustração: deviantART
bernardo lins brandão (belo horizonte, 1981) é professor de língua e literatura grega antiga na universidade federal do paraná. teve seus poemas publicados na macondo, desenredos, samizdat, relevo e coyote. seu primeiro livro, rua musas, foi publicado em 2013 pela patuá.participa do blog escamandro ( www.escamandro.wordpress.com), que agora também é uma revista impressa