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6 poemas de Bernardo Lins Brandão

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pedem-te para criar
quando já não puderes realizar mais nada
para rabiscar com lágrimas a folha amassada de papel

dizem que arte é exigir o desencanto do mundo
que nos pague sua dívida

esquece isso
escreve quando leve
quando tiveres outras coisas a fazer

escreve como que surpreendido de manhã
pelos raios de sol que escapam
 das gotas de orvalho
    

homens graves encaram o horizonte
e pisam as areias de Nazca
em suas linhas feridas a esmo
como hereges perfazem um ato de fé
      
é preciso fugir dos males daqui
regressar à pátria querida

            (num mundo de bastidores
            a verdade cheira a demência)

é preciso fazer-se escada
saltar por abismos de graça e justiça
mais altos  mais desconhecidos  mais claros
                
é preciso colocar a própria mente
sob a sola dos pés

a fim de que as antigas vias tortas
imagens vistas do alto
testemunhem a transfiguração

  
*  
ela aquietou o pensamento

(pósmetadiscurso niilista autofágico fogo da falta de sentido que impostor arde na corte dos Romanov a tramar a própria ascensão a preparar a revolução de Outubro a planejar a planificação da esperança)

e sorriu para as montanhas
  

*
ao fim da jornada
compreendeu Ulisses
os maiores riscos
quais eram

o corpo nupcial de Nausícaa
a imortalidade vislumbrada
nas coxas de Calipso
as delícias de Circe

mas ele, homem multiardiloso, saqueador de cidades, ninguém
                                               ele, que tinha a nostalgia como guia

havia gravado Ítaca
em brasa, na sola dos pés
  
 
*
alegria, pura

dos bêbados
dos náufragos
dos santos

abandonar-se
ao manancial
das circunstâncias

  
afogado no mistério
procura no vinho a razão

contempla o reflexo
na mancha vermelha do tapete
e descobre

que cada coisa perfeita desse mundo está a caminho
de não-ser

que cada gota ligeira do vazio
flui na língua dos pássaros

que todo cume todo abismo
é teofania


Poemas de Rua Musas (Editora Patuá, 2013)  
Ilustração: deviantART


bernardo lins brandão (belo horizonte, 1981) é professor de língua e literatura grega antiga na universidade federal do paraná. teve seus poemas publicados na macondo, desenredos, samizdat, relevo e coyote. seu primeiro livro, rua musas, foi publicado em 2013 pela patuá.participa do blog escamandro ( www.escamandro.wordpress.com), que agora também é uma revista impressa

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