LUÍS SERGUILHA, KALAHARI E A ESCRITA DO GRITO
Luís Serguilha é poeta da apresentação, o inverso da representação trivial de (quase) toda a poesia moderna e contemporânea. Ele nos apresenta um universo ao mesmo tempo preexistente e em recriação constante. Vertigem.
Parece-me que, para criar seu edifício, ele se atém a um jogo de linguagem que é só seu e, para que seja inteligível, ele o constrói a partir de outros sistemas de linguagem, apropriando-se de enunciados e vocabulários (por vezes banais, por vezes complexos ou técnicos) em um processo de descontextualização de significados. Na arte tudo é possível: a “necessidade de nominar”[1], expressão tão cara a Michel Foucault, ainda que presente em qualquer escrita, parece-me, no caso de Serguilha, sofrer menos deste complexo. Ao contrário de nos obrigar a fixar a atenção em um aspecto específico de uma palavra ou frase em detrimento de seu conjunto, cada oração ou verso nos leva a uma espécie de leitura transversal holística da obra. É como se outros matizes fossem criados.
Serguilha possui uma escrita que prescinde de uma concentração e uma dinâmica de pensamento fractal, holográfico, multilinhas, multi-universos. Algo certeiro quando se trata das grandes obras de ruptura.
Apesar de sua obra atrair para si o gosto de uma acuidade intelectiva e de uma dinâmica de pensamento desenvolvida, a leitura é uma experiência de delírio e fluidez. Ao final de cada mergulho, mesmo sem febre, a febre há de chegar. Serguilha é poeta e sabe sê-lo (e sabe que o é). O desavisado o leria como um estranho livro dissertativo. Não é. Ainda que o verso escandido seja, historicamente, o meio privilegiado da poesia, hoje ele é apenas uma das linhas no horizonte.
A poesia em prosa (não confundir com prosa poética), no entanto, também não é novidade, como não o é também o uso do termo, hoje em moda, “virtualmente”, já profetizado por Dante Alighieri em sua A Divina Comédia (P. XXV, 96). Como diz o poeta-filósofo francês Bruno Cany sobre estes embates verso/prosa, “briser une phrase, c’est encore phraser” (quebrar uma frase, ainda assim é frasear). A lista da origem dos poemas em prosa é longa, a começar pelos pequenos poemas em prosa (Reverdy e Jacob), os poemas em prosa (Bertrand e Baudelaire) e os grandes poemas em prosa (Michaux e Ponge). Tenho a impressão que Serguilha altera estas separações pedagógicas. Inclassificável ou, melhor, de múltiplas classificações.
Pouco importa, no final. O relevante é que ele é poeta visionário e visual e, talvez por isto, tenha também escolhido a forma informe de seus versos. Seu espaço poético se insere em uma dinâmica do trabalho da visão: sua imaginação é prosaica, ou seja, visual. Luís Serguilha é o grito, não o verbo. Verbo é fundamento de criação metafísica (lato sensu). Grito é a deformação do verbo, recriação. Em Serguilha, nenhuma montanha é imóvel.
Em seu último livro, KALAHARI, a terra é movente e o jogo de dados encontra-se ancorado na visibilidade do invisível:
“ecos a transferirem-se nos intervalos da reflexividade__________dispersão óptica-ondulatória tensionada pela velocidade angular da chupadoura-mineralóide (costelas pronunciadas marca a época seca, as agulhas moleculares da orfandade rompem os museus dos ofícios-assassinos)”
Seria um braço de mar findo no infinito?
Labor dos afazeres sem poesia?
Crianças mortas de Portinari?
Ou o agreste pesado das desesperanças?
Uma loba de pedra a espreitar a intangível paisagem dos não-dizeres, um arco e flecha da Cabala empunhada a atingir desaperceberes?
“LOBA-LOBA: mosaico viandante a eclodir nos estandartes dos corpos de oscilações ininterruptas________contínuo real-nupcial: prodigiosa destruição sem fronteiras e as translações dos uivos perfuram os arquipélagos do nada: destruir com os arco-íris das superfícies a interioridade do tempo (dissimulado rinoceronte das vigílias): genuína absorção das topologias do olhar sobre a terra: extenuadas esporas da concupiscência: um e outro, um no outro, um sem outro e o achar-se em nenhum lugar formam o abismo caleidoscópico e as geografias obscuras transformam-se em golfos de espanto (a coruja enlouqueceu na carne dos artistas)”
Gênese ou apocalipse
Sexo ou morte
Sêmen jogado no rio
Tratores a destruir pela beleza
Liberdade.
“A Loba é a figura-livre”
Loba que mata Hesse e seu lobo de psicanálises ultrapassadas. KALAHARI é novidade. Serguilha é novidade.
Já não há estepe nem salvação, auto-geração-de-escrita. Cada enunciado, uma forma de vida no gesso da lua de celuloide. Sua escrita, sempre, leva ao grito. Antes dele, ao estreitamento muscular. Fadiga de ser como era antes. Metamorfose.
Referências Bibliográficas
BOUVERESSE, Jacques. Philosophie, mythologie et pseudo-science : Wittgenstein lecteur de Freud. Paris : L’Eclat, 1996.
CANY, Bruno. Fossiles de Mémoire; Poésie et Philosophie d’Homère à Jacques Roubaud. Paris: Hermann, 2008.
FOUCAULT, Michel. Les mots et les choses : une archéologie des sciences humaines. Paris : Gallimard, 1966. (Tel).
J.-N. VUARNET. Le philosophe-artiste, 10/18, 1977 (reeditado pelas Ed. Léo Scheer em 2004).
WITTGENSTEIN, Ludwig, Philosophical Investigations, §108.
[1]FOUCAULT, Michel. Les mots et les choses : une archéologie des sciences humaines. Paris : Gallimard, 1966. (Tel).
foto: Anton Surkov
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Lucas Guimaraens é mineiro de Belo Horizonte, 34 anos. Bacharel em Direito, morou anos na França, onde desenvolveu seu mestrado em filosofia pela Universidade Paris 8. Realizou seus estudos em Direitos Humanos e Poderes Públicos na Universidade Paris X – Nanterre. Trabalhou, também, como intérprete, tradutor e parecerista no CCFD (Comitê contra a Fome e pelo Desenvolvimento sustentável), órgão criado pela ONU. Publicou poemas em diversas antologias, periódicos e revistas no Brasil e no exterior (dentre as quais, a Revista Poesia Sempre, da Fundação Biblioteca Nacional, a Revista da Academia Mineira de Letras, a revista Espanhola En Sentido Figurado e a francesa Caravelles), tendo recebido alguns prêmios literários. Lançou, em 2011, seu livro: “Onde (poeira pixel poesia)”, pela editora carioca 7Letras, com texto de orelha do poeta Afonso Henriques Neto e prefácio do poeta português Luís Serguilha. Os versos de Lucas revelam uma filiação poética eclética, que bebe na fonte de Ginsberg, Whitman, Lorca e Cecília Meireles, além de Alphonsus de Guimaraens, o poeta simbolista – seu bisavô.
Luis Serguilha: Poeta, Ensaísta. Autor de várias obras de poesia e ensaio. Participou em encontros internacionais de arte e literatura. Alguns dos seus livros: Embarcações (2004); A singradura do capinador (2005); Hangares do vendaval (2007); As processionárias (2008); Roberto Piva e Francisco dos Santos: na sacralidade do deserto, na autofagia idiomática-pictórica; no êxtase místico e na violent...a condição humana (2008); KORSO (2010); KOA’E (2011); Khamsin-Morteratsch( 2011); KALAHARI( 2013) estes seis últimos em edições brasileiras. Possui textos publicados em diversas revistas de literatura e arte. Seus textos foram traduzidos para várias línguas. Criador da estética do LAHARSISMO e responsável por uma colecção de poesia contemporânea brasileira na Editora Cosmorama. Pesquisador da Poesia Brasileira Actual. Foi um dos Curadores do Encontro Internacional de Literatura e Arte: Portuguesia. Curador do RAIAS-POÉTICAS: Afluentes IBERO-AFRO-AMERICANOS de ARTE e PENSAMENTO.