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7 POEMAS DE "OS OSSOS DA BALEIA", DE JORGE ELIAS NETO

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Caligrafia do bruto


Para Sakineh Mohammadi-Ashtia

Quem estiver sem pecados que atire a primeira pedra!
                                           João:8:7
                        

Pedra atirada.
No ar
uma réstia
da caligrafia do bruto.

Apedreja-se com força.
Quem sabe assim,
desencarnam as frustrações!...

Reconheço o homem na pedra.
Cada uma traz seu nome.
A figura de um deus incompleto
invalida a palavra: Humanidade.

Mas aqui,
corrompe-se a alma,
deforma-se o molde.

A estranheza de lapidar o corpo.
A ironia de deformar o nome
do delicado gesto do artesão.

Garganta seca de súplicas.
Olhos vazados por lascas.
O ventre fendido
Já não tem fome de amor.

Despedaçado,
jaz o corpo da criatura,
jaz a beleza.
Sob o lençol maculado
pelo sangue dos opressores,
desfeito,
o arco dos lábios.

A face desfigurada
é impura.
Já não se presta a prazeres
a carne macerada.




  
Poema justo
                           

                Para Reinaldo Santos Neves


Não fechar a frase, não.
Deixar a palavra ao relento.
Miguel Marvilla

                                                             
Raspar as sobras
da imagem – nata,
gordura –
o escorregadio da margem.
O liso da casca.
A paisagem.
Da palavra – o inesperado;
a calda – rasgos e fendas.
Na vastidão – passagem.

Rever imendas.
Acumular entulhos –
                                   vazios.
Cobrir de aragem.

Recolher do baixio
memórias 
aboios
arrelias.

Desviar das têmporas
o estampido –
tiro –
peleja de louco.


Repousar no estio.
Aconchego – relento.
Remover farpas –
asperezas – ao vento.

Lambuzar com visgo –
isca – voragem.

Revolver o leitor
no espaço-tempo.
Disparar a contagem.

No continente dos olhos 
despertar do torpor...
                A linguagem.




Peixe morto


Rijo
                   Seco
       Peixe morto

Ondas...
A sonoridade do estrondo
desmente o silêncio dos olhos.

Peixe morto
                     Barbatanas de pau
        emaranhadas no sargaço


       O que resta
compõe a  realidade.
Desfeito o furta-cor dos átomos
que comungavam o mar
       em tuas escamas.

Obscuro
                    Não ser
        Peixe morto








Discurso para o cadáver


Teus olhos
não mentem
essa simplicidade
em dizer:
tão breve, a vida,
enquanto saturamos
o ar
com subterfúgios
e preces.

Do ponto
em que se parte
― se esquece ―
o espectro
da carne
                ― do irremediável.

Da carne
à cinza,
do torrão de
terra
ao desprezível
mármore
― questão alheia ―
(prevalecerá a vontade
                 do Universo).
Que os vivos
tratem da espessura
das trevas.
A você, o privilégio
da dimensão
onde se plantam flores.

Agradeço
a sinceridade
azul
em teus dedos,
ao lançares os dados
que julgarão
os versos
impossíveis.

E o que disse
da memória ...
A memória sem lar,
desnecessária,
posta a ausência
cúmplice.

Se pudesse
te acenderia um cigarro...
Deixaria a guimba
                 pendurada
em teus lábios.
(Como é bela e
                inútil
a  última centelha...)

Logo
chegarão.
(A boca aberta da cidade
                despeja
                       suas crias.)
Vestirei a máscara
e restarei
um momento ― breve ―
(o tempo de observar a indecisão
das chamas  perante o choro
                humano).






XI


O vento de fora
virou as páginas.
        O silêncio...
Velho apaziguador –
sinaleiro do sono...
Sinto o despertar
tímido das sombras
na casa adormecida.
É chegado o momento
da rendição do corpo
ao emaranhado
dos sonhos.
Folgo imaginando
a comoção da noite
diante da carne
abandonada ao ocaso...




XIII


Sonho... Matriz da realidade.
Este momento,
em que nos perdemos
na melodia,
em que nosso ritmo cardíaco
    desacelera,
               claudica;
em que nosso coração
fica terraplanando sobre o cotidiano,
é um momento de felicidade.




XIV


Dispo-me dos pés.
A liberdade essencial
   se aproxima...
Finalmente,
me chamarei:
                                       ninguém.








imagens: "Baleia", escultura de Angelo Venosa



*     *     *



*     *     *




Jorge Elias Neto é médico, pesquisador e poeta. Capixaba, reside em Vitória/ES. São de sua autoria os livros: "Verdes Versos" (Flor&cultura ed. – 2007), "Rascunhos do absurdo" (Flor&cultura ed. – 2010), "Os ossos da baleia", "Glacial" e "Breve dicionário poético do boxe" (inéditos). Integrou as publicações Antologia poética Virtualismo (2005), Antologia literária cidade (L&A Editora – 2010), Antologia Cidade de Vitória (Academia Espiritossantense de letras – 2010 e 2011) e Antologia Encontro Pontual (Editora Scortecci – 2010). Publica regularmente nas revistas eletrônicas: Portal Cronópios de Literatura, Diversos afins e Estação Capixaba. Blog. Email.











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