Caligrafia do bruto
Para Sakineh Mohammadi-Ashtia
Quem estiver sem pecados que atire a primeira pedra!
João:8:7
Pedra atirada.
No ar
uma réstia
da caligrafia do bruto.
Apedreja-se com força.
Quem sabe assim,
desencarnam as frustrações!...
Reconheço o homem na pedra.
Cada uma traz seu nome.
A figura de um deus incompleto
invalida a palavra: Humanidade.
Mas aqui,
corrompe-se a alma,
deforma-se o molde.
A estranheza de lapidar o corpo.
A ironia de deformar o nome
do delicado gesto do artesão.
Garganta seca de súplicas.
Olhos vazados por lascas.
O ventre fendido
Já não tem fome de amor.
Despedaçado,
jaz o corpo da criatura,
jaz a beleza.
Sob o lençol maculado
pelo sangue dos opressores,
desfeito,
o arco dos lábios.
A face desfigurada
é impura.
Já não se presta a prazeres
a carne macerada.
Poema justo
Para Reinaldo Santos Neves
Não fechar a frase, não.
Deixar a palavra ao relento.
Deixar a palavra ao relento.
Miguel Marvilla
Raspar as sobras
da imagem – nata,
gordura –
o escorregadio da margem.
O liso da casca.
A paisagem.
Da palavra – o inesperado;
a calda – rasgos e fendas.
Na vastidão – passagem.
Rever imendas.
Acumular entulhos –
vazios.
Cobrir de aragem.
Recolher do baixio
memórias
aboios
arrelias.
Desviar das têmporas
o estampido –
tiro –
peleja de louco.
Repousar no estio.
Aconchego – relento.
Remover farpas –
asperezas – ao vento.
Lambuzar com visgo –
isca – voragem.
Revolver o leitor
no espaço-tempo.
Disparar a contagem.
No continente dos olhos
despertar do torpor...
A linguagem.
Peixe morto
Rijo
Seco
Peixe morto
Ondas...
A sonoridade do estrondo
desmente o silêncio dos olhos.
Peixe morto
Barbatanas de pau
emaranhadas no sargaço
O que resta
compõe a realidade.
Desfeito o furta-cor dos átomos
que comungavam o mar
em tuas escamas.
Obscuro
Não ser
Peixe morto
Discurso para o cadáver
Teus olhos
não mentem
essa simplicidade
em dizer:
tão breve, a vida,
enquanto saturamos
o ar
com subterfúgios
e preces.
Do ponto
em que se parte
― se esquece ―
o espectro
da carne
― do irremediável.
Da carne
à cinza,
do torrão de
terra
ao desprezível
mármore
― questão alheia ―
(prevalecerá a vontade
do Universo).
Que os vivos
tratem da espessura
das trevas.
A você, o privilégio
da dimensão
onde se plantam flores.
Agradeço
a sinceridade
azul
em teus dedos,
ao lançares os dados
que julgarão
os versos
impossíveis.
E o que disse
da memória ...
A memória sem lar,
desnecessária,
posta a ausência
cúmplice.
Se pudesse
te acenderia um cigarro...
Deixaria a guimba
pendurada
em teus lábios.
(Como é bela e
inútil
a última centelha...)
Logo
chegarão.
(A boca aberta da cidade
despeja
suas crias.)
Vestirei a máscara
e restarei
um momento ― breve ―
(o tempo de observar a indecisão
das chamas perante o choro
humano).
XI
O vento de fora
virou as páginas.
O silêncio...
Velho apaziguador –
sinaleiro do sono...
Sinto o despertar
tímido das sombras
na casa adormecida.
É chegado o momento
da rendição do corpo
ao emaranhado
dos sonhos.
Folgo imaginando
a comoção da noite
diante da carne
abandonada ao ocaso...
XIII
Sonho... Matriz da realidade.
Este momento,
em que nos perdemos
na melodia,
em que nosso ritmo cardíaco
desacelera,
claudica;
em que nosso coração
fica terraplanando sobre o cotidiano,
é um momento de felicidade.
XIV
Dispo-me dos pés.
A liberdade essencial
se aproxima...
Finalmente,
me chamarei:
ninguém.
imagens: "Baleia", escultura de Angelo Venosa

Jorge Elias Neto é médico, pesquisador e poeta. Capixaba, reside em Vitória/ES. São de sua autoria os livros: "Verdes Versos" (Flor&cultura ed. – 2007), "Rascunhos do absurdo" (Flor&cultura ed. – 2010), "Os ossos da baleia", "Glacial" e "Breve dicionário poético do boxe" (inéditos). Integrou as publicações Antologia poética Virtualismo (2005), Antologia literária cidade (L&A Editora – 2010), Antologia Cidade de Vitória (Academia Espiritossantense de letras – 2010 e 2011) e Antologia Encontro Pontual (Editora Scortecci – 2010). Publica regularmente nas revistas eletrônicas: Portal Cronópios de Literatura, Diversos afins e Estação Capixaba. Blog. Email.