Ilustração: Roses and red by Jade Adric
DE SOMBREAÇÃO & BORDADURA
quando eu vivia na casa da rua anis
os cômodos e os exemplos eram imensos
calor abatumado na água-furtada
os insetos tergiversavam
e as rãs e os sorrisos eram de cristal holoédrico
uma mão regia os contratempos
os cometas eram inexplicáveis
as uvas de cera eram jacobinas
o amuo era sustado com água vegetomineral
elogio à lerdeza e à pantofagia
baralhando as notícias do jornal
um quelônio às vezes emergia da horta
para surpresa dos anões estáticos
para desespero da tia-avó manquitola
para a emoção do mamoneiro
quando viviam todos na casa e ainda eu
os genuflexórios levavam a alturas máximas
e eram temíveis as quedas e as vertigens súbitas
e eram temíveis as asas enferrujadas
e eram temíveis os olhos búricos
os sapatos haviam conhecido todas as ruas
as sacolas haviam carregado curiosos pesos
os compassos haviam desenhado todos os círculos
os ombros haviam acumulado elegias
eu dançava para que as acácias brotassem
eu dançava para que o doce desse ponto
eu dançava para que os vértices coincidissem
eu dançava pela alma dos afogados
me impressionavam as hagiografias
me impressionavam as vidas das criadas
a prataria escurecendo me impressionava
as joias na caixa me impressionavam muito
os dentes podres
a tabuada era um tratado de versificação
os espelhos tinham valsas embutidas
o tule sinonimizava voto e desejo
os desvãos do corpo eram grandezas incertas
e grudada nos rostos e colada às mãos e à pele
e às vozes mais delicadas mais desaplaudidas
ia insistia afincava
a aula magna do tempo
TENTAME
e entre nós e as palavras, o nosso querer falar
M. Cesariny
não havia palavra que coubesse
na carícia que os dedos fazem nas cordas
palavra que frutificasse ao falar
do deserto
um instrumento desafinado
que arranha a plenitude do lago
que quase inexiste
traz uma dor desconcebível e úmida
de dia frio de voz rachada
de sobreavisos
não havia palavra que se aproximasse
da carícia feita nas cordas deste instrumento inabitado
e a voz desconjuntada se esforçava para trazer
a manhã de volta
eu permeável pudesse nesta giga saber
que uma aridez ternária jamais não dói
não esboça certeza nem parelha
é arrítmica esta inquietação de perfumes abandonados
voz subsistida no som das carícias
nas horas eriçadas na suspensão
e eu aqui querendo que a palavra que fala
não seja só
o próprio deserto
NAQUELE MAIO
as certezas chegavam oficialmente pelo correio
você guardara as máscaras numa maleta
e a maleta num baú antigo
LUCI COLLIN, poeta e ficcionista curitibana, tem mais de dez livros publicados entre os quais Vozes num divertimento (contos, 2008), Com que se pode jogar (romance, 2011), Trato de silêncios (poesia, 2012) e Querer falar (poesia, 2014). Participou de antologias nacionais como Geração 90 – os transgressores(2002) e 25 Mulheres queestão fazendo a literatura brasileira(2004), e internacionais (EUA, Alemanha, Uruguai, Argentina, Peru e México). Traduziu G. Snyder, E. E. Cummings e Gertrude Stein, entre outros. Tem pós-doutorado em Literatura Irlandesa pela USP e leciona Literaturas de Língua Inglesa na UFPR.
e o baú fora enterrado a metros e metros
ou jogado no fundo do fundo do oceano índico
junto com as chaves
com os segredos do cofre
com o zoológico de cristal
Isto não se sabe
E eu seguira regando os gerânios
as prímulas e os telegramas vindos de longe
afofando a forragem no cocho
desenterrando ossuários
ocupada não fora ao baile
cuidara dos detalhes da brotação
cerzira albores e antefaces
Isto se sabe
UMA TARDE QUE CAI
Quando o vemos está sentado no banco da praça
Ela está em casa presa à trama silenciosa
Na praça pássaros e flores são sinceros
Na janela pássaros são fantasmagóricos
Com o lenço do bolso ele seca o suor da testa
Ela enxuga os olhos com a manga
Ele rosna mas só por dentro
Ela supura mas nunca aos domingos
Ele lastima porque o pão é azul
Ela suspira e a tarde muda se avelhanta
Ele pergunta se as janelas são sinceras
Ela pensa em se atirar nalguma água
São fantasmagóricos os azuis que saem dos olhos
A gangrena e a borra são absolutos
Quando o vemos está em frente à TV imaterial
Ela está de costas de bruços de borco
Ele está palitando os dentes à espera
Ela vazia
Ele está entardecente e flama
Ela boia sobre a água azulíssima
Ele tosse cospe resmunga lanceia vage
Ela fez as unhas e o bolo simples
A previsão do tempo anuncia chuva
Ela toca a pedra friíssima
Ele se ofende
Ela se ofélia
READILHO
isto que é uma coisa obsoleta
o conteúdo não salvo
a alvura do tempo presente
isto diacrônico e de origem obscura
envelhecido aos doze anos
aos treze sangrando
a voz mais oca nas conversações de inocência
uma fruta incluindo meus braços
incluindo as falhas que manifesto
isto que é alagadiço e eufórico
nesta nova temporada
as palavras repousam sobre os cílios
quem vem são camaleões e votos fuscos
estes homens grandes têm passos que valem
ouros
isto é a cidade da tela que é apenas luzes e umidades
é combinação de suspiros amarfanhados
numa grande angular o tabuleiro vira a pista molhada
acusações e controvérsias não cabem
num copo
os que querem por primeiro
são os favoritos da tia rose
mas suas músicas desapareceram das jukeboxes
e os dias líquidos e enfileirados não param de rir
os remendos lutam com suas vozes de banheiro
como é possível conspirar contra o concreto
as pontes têm esta precisão encomendada
as emancipadas linhas e o subir escadarias
este chacoalhar do metrô e esta guerra
são o último gole
já em si
LUCI COLLIN, poeta e ficcionista curitibana, tem mais de dez livros publicados entre os quais Vozes num divertimento (contos, 2008), Com que se pode jogar (romance, 2011), Trato de silêncios (poesia, 2012) e Querer falar (poesia, 2014). Participou de antologias nacionais como Geração 90 – os transgressores(2002) e 25 Mulheres queestão fazendo a literatura brasileira(2004), e internacionais (EUA, Alemanha, Uruguai, Argentina, Peru e México). Traduziu G. Snyder, E. E. Cummings e Gertrude Stein, entre outros. Tem pós-doutorado em Literatura Irlandesa pela USP e leciona Literaturas de Língua Inglesa na UFPR.