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Histórias prováveis de Marco Aurélio Cremasco

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Ilustração: Candido Portinari
 

Deixou uma pasta amarela como quem se livra de obrigações, transferindo-as para mim. Dias depois, morreu. Ao abri-la, notei um caderno velho, recheado de letras escritas por alguém sem paciência. Havia centenas de folhas: poemas, historietas, partituras, exercícios de extração da raiz quadrada do pi até a nonagésima oitava casa decimal. Desenhos e desenhos de nuvens cheias de “v” entortados, imitando passarinhos, e no rodapé da última folha, escrito em gótico: Fim.

 1.
João Flores nasceu catando cavacos. Construiu sua casa no canto mais comum do mundo. Na cozinha havia pão e sopa de letrinhas. Tinha compromisso com a tristeza, mas nutria-se de felicidade. Pensava e dispensava na mesma facilidade. Andava de olhar fechado, porém aberto às besteiras. Nada é tão importante quanto um sabonete: vive escrevendo cheiro por onde escorrega — era a sua máxima ou mínima (se é que existe importância no arco-íris aprisionado em uma bolha de sabão). Trazia a vida em um saco de coisas. De vez em quando abria o bendito embrulho e passava horas vendo o vento brincar por entre os dedos.

2.
Era doida. Maluca comum. Comia o vento. Bebia a chuva que do céu não caía. Nem sei explicar. Chuva, vento que só ela conhecia e disso se nutria. Era doida e amava um doido. O doido era doido. À luz do dia saía de guarda-chuva aberto e com um minúsculo buraco pelo qual entrava gota aqui gota acolá da chuva da doida apenas para lhe saciar a sede, se é que sede havia, pois chuva que é chuva ninguém sabia e nem a via. Andava assim por amor à sua doida. Quem sabe por isso as pessoas acreditavam que os doidos eram doidos e mais doidos ficaram quando os doidos se casaram e de doidice pioraram quando mais doidos nasceram. Os filhos tornaram-se importantes: um descobriu o caminho para Luê. A outra decodificou o DNA do cefalôndrio. A terceira nada fez a não ser colher flores de vento regadas pela chuva dos pais.

89.
Ficava zanzando por aí de modo a ter como residência esporádica pequena poça que o abrigava. Tudo o que lhe ocorrera corroera lembranças. Dessa ou de outra maneira lhe coubera, pouco de tudo em passado quase recente importava. Isso importava e por isso tangia precioso zunido. E como! Suor e ovos alados. Abandonou os óculos de centenas de lentes e ficou maravilhado com a situação do mundo aos pedaços. Completou-se com as virtudes dos imorais. Tudo resolvido, pensou. Despiu-se e sobrevoou a cama daquela diva com o violino pronto a zunir. Foi abatido entre duas mãos suaves e com leve odor cítrico. Morreu, enfim, o pernilongo, como sempre quis: entre aplausos.

157.
A vida? Por isso toco tuba e, raramente, acordeão.

184.
Em 2053 não estarei vivo. Não terei o privilégio de ver as coisas que nem imagino existir. Não terei o prazer de sensações que sequer sonho experimentar. A maioria das pessoas que amo ou me amam ou nutrem algum afeto estarão distantes, tão distantes que, às vezes, eu até poderia entristecer. Mas em 2053 eu também estarei longe. Quem sabe? Pouco mais perto de uns poucos, que aos poucos somado faz o suficiente, se não o bastante. Saudade antecipada daquele que nem virei a vir nascer ou do outro que, em vida, nem cheguei a conhecer. Em 2053.


Marco Aurélio Cremasco


Estes textos fazem parte do livro de contos “Histórias Prováveis” (Editora Record)

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