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Oito Haicais de Terezinha Manczak

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As Respigadoras. Quadro de Jean-Francois Millet. 1857.



lua de novembro
joga luz num céu de chumbo
quando a chuva cessa


………


nudez outonal –
tem pressa o corpo do plátano
despido na praça


………


cheia de calor
a lua vem mergulhar
nas águas de março


………


lavoura de trigo –
o arado imprime em fileiras
promessas de pão


………


floreira antiga –
na terra morna de maio
a planta renasce


………


luar de verão
risca o céu em tons de prata
e o silêncio é ouro


………


nos campos de inverno –
avô montado a cavalo
nem uma vez mais


………


é tempo de figos –
cheiro de frutos maduros
à entrada do sítio


………



Terezinha Manczak é natural de Santa Cecília (SC) e vive em Blumenau desde 1980. É autora dos livros Resgate da Emoção (1990), Céu de Sagitário/ Antes e Depois da Paixão (2006), Haicais para Crianças (2012) e O Lado de Dentro (2018). Tem coautoria em 26 antologias em prosa e verso.



.........





Seu livro inédito O LADO DE DENTRO está em campanha de pré-venda no CATARSE: https://www.catarse.me/projects/77353/insights
" Assim é este O Lado de Dentro, forjado no calor ardente, maturado pelo fogo lento do tempo, permitindo o sopro poético e inefável que nos permite, pela transparência de seus versos, vermos não apenas o lado de dentro do imaginário e do sentimento da autora, mas também nossas próprias veredas interiores que nos conduzem à dimensão do poético. Assim, estes novos haicais de Terezinha Manczak somam um instigante capítulo na literatura catarinense contemporânea e uma significativa contribuição do Sul na história do haicai brasileiro". - Tchello d’Barros

Borboleta - a menina que lia poesia, de Chris Herrmann, resenha de Nic Cardeal

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PORQUE BORBOLETAS TAMBÉM SÃO POETAS DE VENTANIAS E ESPERANÇAS

 Por Nic Cardeal
 



BORBOLETA – a menina que lia poesiaé o mais recente livro escrito e publicado por Chris Herrmann (São Paulo: Patuá, 2018), que conta a história de uma menina órfã de 14 anos, que vive sua adolescência em um hospital.

Maria Rosa vê o mundo pelas lentes da poesia, das ‘viagens’ que faz a bordo da sua ‘asa de borboleta’ chamada imaginação, dos livros que vai devorando em sua imensa sede de vida, já tão pouca e tão fina... Como bem dito por Adriana Brunstein, na primeira orelha, “(...) os livros que emprestaram os olhos à Maria Rosa, para que ela pudesse ser ovo, lagarta e pupa, mas jamais adulta. Não no sentido que conhecemos (...)”.

A menina é conhecida como Borboleta porque, ainda tão pequenina, já costumava correr atrás das borboletas. Maria Rosa não fala desde que teve um sonho, aos 7 anos, do qual não se lembra – quem sabe emudecida por tantos traumas - perdeu os pais no curto espaço de um ano, quando tinha apenas 3 anos -. A menina navega em universos paralelos cujo barco é a poesia. A descoberta de uma leucemia leva Maria Rosa, aos 14 anos e depois de 11 anos vivendo em uma creche - "uma casa para crianças sem família" -, a ter de ir morar em um hospital, para tratar da doença, tendo de encarar nua e cruamente a situação: “(...) Lá as outras crianças têm o mesmo diagnóstico que eu: câncer. Não é uma palavra bonita, é? Não entendo porque faz parte do horóscopo. A pessoa compra uma revista para saber da sua sorte e dá de cara logo com o quê... Câncer! Chega, não aguento mais ter de escrever essa palavra. Já basta ouvi-la com frequência por aqui (...)” (2018, p. 27). A 'menina-borboleta' logo de início se pergunta, de forma poética: “Com quantos tons se retoca a vida de uma borboleta?” (2018, p. 9). 

A autora delineia os caminhos de Maria Rosa mesclando a trajetória da narrativa com poesias, enquanto também intercala situações ‘reais’ da sua personagem na luta contra a doença, com suas ‘viagens’ pela Floresta Amazônica:“(...) Luas e aventuras se passaram que eu nem sei contar. Só sei que houve um dia onde a minha história, ainda que adormecida em meus sonhos, começou. Minha mãe, uma jovem borboleta que já carregava nas cores suaves das asas o peso de uma metamorfose sofrida, alimentava-se e ocupava-se da beleza da bromélia. Meu pai, sempre muito distraído, atrapalhou-se todo na viagem entre dois canteiros e resvalou a asa direita no musgo da folha verde da árvore gigante. De repente, viu-se caído sobre a bromélia vizinha a que pousara minha mãe. Esta riu-se toda do desastrado. Meu pai, um meninão-borboleta de asas bem coloridas, primeiro ficou ruge, mas logo em seguida não resistiu e gargalhou também. Então veio o silêncio formando uma brisa exótica que não surgia apenas daquele jardim. Meus pais estavam – para a minha fortuna ou não – de alma ruborizada e asas caídas! (...)” (2018, pp. 15/16).

Desse lugar que raramente pode sair, a menina viaja nas asas da 'borboleta-imaginação', sempre nutrida por livros, visitando cidades, lugares, descobrindo poesia, poetas, encantos de outras terras: “(...) Você me perguntaria como é possível descrever um lugar que eu nunca estive. Estive sim! Apenas de uma forma diferente de você. Os olhos, peguei emprestado dos livros. As asas, da borboleta (...)” (2018, p. 21). 

Depois de passar mal pela primeira vez, a adolescente é levada para o hospital. A descoberta é trágica:“(...) Fiquei esperando o teto desabar na minha cabeça a qualquer décimo de segundo. E ele desabou. Eu tenho Leucemia. Não voltarei mais para a creche. Se tiver sorte, viverei mais uns seis meses. O hospital é o meu novo casulo maior (...)” (2018, pp. 23/24). 

Maria Rosa precisa se acostumar com seu novo ‘lar’. Sente saudades das crianças da creche, das conversas com as mãos, os olhos, os ouvidos, sorrisos e abraços. Sente dores de corpo e de alma. Seu grito é silencioso:“(...) será que existe remédio para a desesperança? (...)” (2018, p. 25):
Maria Rosa é transferida para a ala de crianças com câncer, um lugar onde, segundo ela, a tristeza é bem camuflada. Renova-se em energia e esperança, volta a ler, a fazer suas ‘viagens’ imaginárias por lugares nunca vistos. Comemora seus 15 anos entre as novas amigas do hospital, com bolo de aniversário e borboletas artesanais. A alegria passageira traz um presente inusitado e permanente: Maria Rosa volta a falar, dizendo “muito obrigada!” A felicidade é geral: “(...) O novo casulo maior abriu meus horizontes literalmente. Devolveu-me a voz (...)” (2018, p. 34).

A partir de então a vida, ainda que triste diante das dores da doença, traz novas esperanças ao coração da 'menina-borboleta', por meio da voz que se faz ouvida. Maria Rosa sente o mundo muito mais colorido com a prática do diálogo, das conversas com sua melhor amiga no hospital, a menina Márcia. Maria Rosa conversa, lê, escreve, e seu pequeno mundo no quarto do hospital vai ficando muito maior. Mas a vida em um hospital também traz surpresas tristes, já esperadas... A menina Míriam, também internada, faz a 'viagem sem volta': “(...) De repente, o frio. Não aquele que desejávamos para refrescar o dia, mas o frio que não foi convidado. O frio que faz um buraco na alma da gente. Hoje não quero viajar. Miriam partiu e não poderemos mais sorrir com ela. Talvez haja um adeus que mora dentro da gente aqui no casulo maior. Mas ele não se pronuncia, não se explica. É um nada que se engasga na garganta da gente e que é, ao mesmo tempo, necessário. Deveríamos estar preparados para ele. Na verdade, nunca estamos (...)” (2108, PP. 43/44).

“Adeus,
Por onde anda você?
Quem o inventou?
Quem o convidou?
Quem o entendeu?”
(2018, p. 44)

Maria Rosa faz reflexões sobre sua vida, comparando-se e se sentindo uma genuína borboleta, em todas as suas fases de curta vida: ovo, larva, pupa e idade adulta. Lembra do poeta das miudezas, Manoel de Barros, viaja imaginariamente até Cuiabá, sua cidade natal. A menina também reflete sobre a solidão das pessoas nas grandes cidades, sobre a falta de compartilhar as pequenas desimportâncias que nos fazem mais humanos, sobre os medos e a doença que atinge a todas as crianças naquele casulo hospitalar, porque“(...) não há muito o que esperar (...)”, embora ela própria entenda que“(...) se há medo, há também asas capazes de nos fazer flutuar e sobrevoá-lo (...)” (2018, p. 51).

“O medo e as asas.
O medo é um ser invisível,
feito de um material pesado
e olhos cabisbaixos.
As asas, visíveis ou não,
são tão leves
que abraçam um céu
com olhos de plumas
que apontam rumos.”
(2018, p. 51)

A vida vai seguindo rumos inesperados naquele pequeno pedaço de mundo e Maria Rosa descobre que seu amor por sua amiga Olívia é correspondido. Um amor que ultrapassa as fronteiras da amizade, transformando-se em profunda alegria. Mas a vida também traz momentos difíceis, com os efeitos colaterais da quimioterapia, em que o corpo e a alma prostram-se cansados e entregues. Mas Maria Rosa insiste em acreditar muito mais no amor do que na dor: 

“(...) Amor
– asas sutis
que não se enquadram
em explicações
de ordem.
Sentir explica toda
a desordem".
(2018, p. 75)

Maria Rosa amadurece muito cedo porque a vida lhe exige um alto preço de compreensão das coisas do mundo, das coisas de fora e de dentro, de desapegos urgentes, imensos, de costurar em finos fios os horizontes tão poucos que se estendem bem diante da sua vida que urge, que ruge, grita, esperneia, acalma, e ainda encontra linhas de remendar alheias esperanças e consolos: "(...) Amizade/é aquela via de mão dupla/que não necessita de carros,/mas de asas e corações" (...) (2018, p. 83). Porque a vida - toda a vida - sempre é por um fio, às vezes meada, novelo, carretel, às vezes corda grossa, comprida, às vezes cordão de amarrar imensas tempestades anunciadas e desmedidas, às vezes tênue linha que vai subindo aos poucos céu acima, feito papagaio, pandorga ou pipa, até que o fio se solte, se rompa - e finalmente voe solta - à procura de horizontes outros no vertical azul do caminho onde estrelas também sonham o sonho justo do infinito...

Esse livro é todo feito de asas. A todo momento você se depara com asas. De borboletas. Da imaginação. Dos bons sonhos da menina Rosa. De poesia. Das suas próprias asas, enquanto lê. Esse livro é todo feito de amor. De dor e de esperança. De tantos pesos desmedidos e de aéreas levezas. Feitas de asas. Porque "(...) só as coisas pequenas cabem na leveza da alma (...)" (2018, p. 120)

Esse livro é sobre eu e você. E borboletas. Porque borboletas também são poetas de ventanias e esperanças.

Recomendo muito esse voo!

Borboleta - a menina que lia poesia






Resenha do livro "O ornitorrinco do pau oco", de Jorge Elias Neto, por José Augusto Carvalho

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O  ORNITORRINCO DO PAU OCO

José Augusto Carvalho

Mário Quintana, nosso poeta universal do Sul, disse, numa de suas obras, que “a poesia é uma verdade inventada”. Apesar da beleza desse aforismo poético, acredito que o poeta descobre a verdade que o comum dos mortais ignora, para revelá-la em seus poemas. O poeta é aquele que só sabe “transforma sapato em borboleta”, diz Jorge Elias Neto no poema “Régua quebrada” (p. 47). O poema é, portanto, a revelação da verdade descoberta pelo poeta, que não percebemos por não termos, parodiando Newton Braga de Lirismo Perdido, a sensibilidade que fará o poeta sofrer e morrer de dores que não são suas.
Essas dores, expressa-as Jorge Elias Neto em seus poemas, como o belíssimo “Sorriso da Inocência” (p. 147), dedicado a uma criança síria de “olhinhos ausentes a fitar a história”.  É a nobreza desses olhos ou desse “olhar perdido na ausência”, que o poeta procura, sabendo-o “entardecido de uma ilusão” (“Poema”, p. 133).
Os poemas de Jorge Elias Neto são basicamente reflexivos, e levam o leitor a meditar na grandeza de seus aforismos altamente poéticos.
1. “Não interrompam o cotidiano das serpentes./ Elas não buscam nos homens o seu veneno” (“Reflexão”, p. 39), -- aforismo que o poeta retoma como epígrafe no poema “Gaza” (p. 62-3).
2.  “Eu te daria meus vícios / se isso não me fizesse órfão” (“O possível”, p. 53).
3. “Para tudo existe um peso / uma medida / e uma visão distorcida” (“Os ossos da baleia”, XVII, p. 91) --  mote que o poeta glosa, numa espécie de vilancete no poema “Há dois corpos” (p. 104), subvertendo o modelo clássico ao usar os versos inicias e não finais das estâncias que constituem a glosa.
4. “Hoje a estupidez não é mais um traço:/ é um demônio que se agiganta” (“Noir”, p. 56).
5. A vida constrói, e o tempo apaga” (poema “Mãe”, p. 18, um dos mais líricos e mais belos e sofridos do livro).
6. “Cada homem traz / dentro de si um pasto de soberba” (“Terra dos pássaros”, p. 124).
7. “Pode-se falar de paz / onde inexiste vida” (Campo de batalha”, p. 143).
8. “Sonho... Matriz da realidade” (“Balada de um imortal”, XIII, p. 96).
9. “Certas bocas /não vestem bem as palavras” (“Ofertório”, p. 40).
10. “A vida é ritual de pontes. / Vejo triste que, entre o dito e o pensado,/ ficou uma ponte tombada” (“Sonho no absurdo”, p. 67). – Este aforismo lembra de maneira metafórica a dificuldade que os poetas enfrentam ao traduzir as ideias em palavras. De fato, pensamos paradigmaticamente, em que todos os elementos da ideia concorrem em bloco numa simultaneidade que tem de ser diluída obrigatoriamente palavra por palavra, quando se fala ou se escreve, na difícil tarefa de tentar vencer a linearidade do código linguístico. Por isso, Bilac fala nas confissões de amor que morrem na garganta; por isso Augusto dos Anjos diz que a ideia, por mais grandiosa que tenha sido mentada, chega às cordas da laringe mínima, tênue e raquítica, para esbarrar no “mulambo da língua paralítica”; por isso Carlos Drummond de Andrade diz que “lutar com palavras é a luta mais vã”... Para Jorge Elias, entre o dito e o pensado está uma ponte quebrada...
            São esses pensamentos que revelam o simbolismo do pau oco do Ornitorrinco: são algumas das pedras preciosas da sua poesia, como os versos seguintes, de incomparável beleza:
1.      “Meu pai vestia uma pele / de sonhos amarrotados” (“Polos”, p. 48).
2.      “Desconheço a verdade dos santos, / mas tenho aprendido sobre a mutilação do desejo” (“A realidade de cada um”, p. 30)
3.      “O VERBO partiu e levou consigo o pecado. / O mundo suspira aliviado o retorno à solidão” (“Apocalipse verde”, p. 32)
4.      “Bem-vindo à eternidade do instante?” (“Bestas, Beats e Beatos, p. 110)

      A repetição é frequente nos poemas de Jorge Elias. Em “Aos poucos”, p. 108, a locução adverbial que dá nome ao poema se repete em cada estrofe. O poema “Uma carteira e seus sentidos” (p. 80-1) é um dos poemas mais bem elaborados tecnicamente, na repetição do ritornelo: o verso que se repete a cada estrofe, “Observe essa carteira vazia”, é seguido por dois adjetivos de rimas em –osa e –ada, em todas as estrofes, e termina com três coordenadas aditivas sindéticas, num paralelismo isostrófico perfeito. Só para ilustrar, eis duas das  oito estrofes de estrutura similar:

“Observe essa carteira vazia
-- ociosa –
desocupada.
Entre na dimensão do absurdo
- no que se contorce –
e resvala,
e desperta,
e nos cala.
..........................................
Observe essa carteira vazia
-- poderosa –
enfeitada.
Lembre-se da profusão do sangue
 - que se dispersa —
e tinge,
e respinga,
e nos entala.”

            A morte também está entre as preocupações do poeta, como no poema  “Os ossos da baleia”, que dá nome a um de seus livros constantes nesse volume do Ornitorrinco, em que ele diz: “Sou um companheiro da morte” (p.90), ou como no belo poema “Balada de um imortal” (p.94): “Números são símbolos/ que nos arrastam./ Ditos em ordem / decrescente, assim, / subtraindo dias, / trazem a ideia / de proximidade do final;/ impõem / um sentido ao inevitável.” Esses versos lembram, pela ideia de contagem regressiva do tempo, o poema “Relógio”, de Cassiano Ricardo, que cito de memória: “Diante de coisa tão dorida / conservemo-nos serenos./ Cada minuto de vida / nunca é mais, é sempre menos.”
            A religião serviu-lhe de tema a alguns  poemas irreverentes como “Cristo de pão”, um dos mais belos e sofridos dessa antologia: o pai, à mesa do almoço, num domingo, faz um crucifixo moldado com miolo de pão umedecido em seus lábios, mas o crucifixo se parte quando o filho o pega da mão paterna estendida e exclama desalentado: “Foi duro para mim / ver Deus quebrar-se em minhas mãos” (p. 59). No poema “Catedral”, a irreverência é mais patente: “crucifixos / hóstias / dízimos / pia abismal / e a imagem do Cristo / que nada tem a ver com isso” (p. 129).
Jorge Elias também  incluiu nesse livro três sonetos diferentes formalmente: um, “O grilo falante” (p.105), de forma tradicional (dois quartetos e dois tercetos), outro “Para apaziguar as borboletas” (p. 113),  com os 14 versos divididos em uma duodécima e um dístico; e um terceiro, “Subversivo” (p. 114), com os 14 versos separados em sete dísticos em redondilha maior. Acredito que o poeta esteja preparando um novo livro só de sonetos...
Certamente ainda haveria muito a dizer nesta minha tentativa de desvendar um pouco da beleza revelada pelo poeta nesse pequeno grande livro. Mas já me estendi o bastante, e o leitor certamente há de preferir  ao que escrevi os poemas de Jorge Elias Neto.
            Geir Campos, talvez em alguma parte de sua obra (também o cito de memória), diz este aforismo poético: “A folha que cai no rio muda a visão do rio”. Não basta a folha para fazer o rio mudar. As águas que agora correm não são mais as mesmas de há pouco, e o rio já não é mais o mesmo. Esse livro de Jorge Elias Neto não é apenas uma folha a cair no rio de nossas almas. Nenhum poema é o mesmo quando lido mais de uma vez, porque em todos eles está a beleza, a tristeza, a confissão desse poeta revelador de verdades, que “não tem cisma de beijar o diabo na boca e aprendeu cedo a mordiscar os lábios de Deus (“Duo, p. 31) ou desse mago das palavras que sabe como transformar sapato em borboleta...
(ELIAS NETO, Jorge. O ornitorrinco do pau oco. Vitória: Cousa, 2018, 162 p.)



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JOSÉ AUGUSTO CARVALHO
Mineiro de  Governador Valadares. Professor universitário aposentado.  Mestre em Linguística pela Unicamp com a dissertação  Alguns componentes da narrativa, e Doutor em Língua Portuguesa pela USP, com a tese A articulação pronominal no discurso. Tem alguns livros publicados sobre língua portuguesa: Gramática Superior da Língua PortuguesaEstudos sobre o Pronome,  Problemas e Curiosidades da Língua PortuguesaCrônicas Linguísticas e Palavra Puxa Palavra.Também tem dois romances publicados, três livros de contos e um livro de ensaios sobre língua e literatura: Discurso e Narração. Reside em Vitória, ES, há mais de 70 anos.

JORGE ELIAS NETO
Capixaba, nascido em 1964, médico, pesquisador e poeta. Membro da Academia Espírito-Santense de Letras, onde ocupa a cadeira de número 2, publicou: Verdes versos (Flor & Cultura - 2007), Rascunhos do absurdo (Flor & Cultura -2010), Os ossos da baleia (Prêmio Secult - 2013), Glacial (Patuá - 2014), Breve dicionário poético do boxe ( Patuá - 2015), Cabotagem (Mondrongo - 2016) , Breviário dos olhos ( Edição do autor - 2017) e O ornitorrinco do pau oco (Cousa – 2018).

Para Aticca: Um poema inédito de Marcelo Ariel

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Para os amigos Aticca, Funky e  Kleber

Attica : 

Só o cão
este alter
da silenciosa
interioridade 
mais impessoal
fará do espaço
extenção do corpo
como lição
da potência
do afeto
assim
se erguerá
em países
transparentes
o cão
com o segredo
do cheiro 
das estrelas?
do nosso sangue?
do vento
do distante oceano  ?
Coisas que 
se traduzem 
como mistério 
aos que não sabem
 ser diante 
da natureza
Ninguém
Quem  além 
do lobo
e da loba 
que esperam
poderia
 ensiná-los
a  ser 
através 
do chamado
Daquele que 
de dentro vem 
Isto que 
não pode ser contido
nem pela palavra
' Amado'
em seu coração
um cão
o tem.

Funky : 

Ela está em uma dimensão paralela
que usa como trincheira, os telhados, 
falando uma língua que sabemos
mas não compreendemos
leões anões
com a memória da Selva
enterrada em algum lugar
perdido para sempre,
quando o primeiro 
dizer algo e isso for traduzido
na língua deles
uma ponte será erguida
e por ela passará
a vida


Do livro inédito O TRIUNFO DE CUBATÃO 



"a mar" e "Na loja de ervas", dois contos de Cristina Bresser

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Fotografia de Gray Malin

a mar - um conto de areia

 hoje entendi porque os franceses chamam o mar de la mère:  mar é feminino, mesmo. o que chamamos de ressaca, é tpm.
calmaria é resultado de noite de amor ardente com o sol - escondido, enquanto a lua brilha. manhã seguinte, gozando a paz, espalha na areia cacos de estrelas – sobras da farra sideral.
 mar é a mãe que acalenta com suas águas ondulantes. tem colo melhor, que colo de mãe? mãe natureza, onipotente. generosa quase sempre, rigorosa quando desrespeitada.
o tempo passa tão rápido que a vida quase não vê. na praia, desacelera e a deixa passar na areia, devagar, amornada pelo sol, refrescada pela brisa marinha.
caminhando com dificuldade na beira da mar vem genésio, vendedor de amendoim. anda na ponta do pé esquerdo para compensar os centímetros à mais da perna direita. leva uma cesta carregada de delícias doces e salgadas. há muito criou calo nos ombros, mas ano vindouro vai conseguir se aposentar. aí então, é sentar na areia e ao invés do fardo pesado, vai segurar uma - ou várias - geladas na mão.
jane, a vendedora de sorvetes, tem mais de setecentas músicas no playlist, quando passa por uma faixa de areia deserta, aumenta o volume, porque tem de tudo um pouco nessa seleção, inclusive rock and roll.
natália, a quituteira, braços cansados de carregar o cesto de salgadinhos por 30 anos na praia. hoje passa acompanhada da neta, mas é ela quem empurra o carrinho novo. a menina segura uma sombrinha na mão esquerda e digita no celular com a direita.
acima de todos, marcos, que foi proibido de voar por aqui. teimoso, finca sua biruta na areia e decola com o para-motor por um momento de paz. de cima observa cardumes nem sonhados pelos pescadores, um segredo entre o homem-pássaro e a mãe-mar.
enquanto isso, nós banhistas na areia, protegidos por cogumelos coloridos de lona (o meu, um cogumelo–corcunda, entortado pelo vento noutra temporada). passamos os dias observando maria-farinhas e dando sombra aos cães sem-teto que perambulam pela praia. esses, são os capitães da areia. assim que amanhece, se esbaldam nas águas do riozinho que desemboca na mar. correm, rolam na areia e latem, celebrando mais um dia de vida no verão.

Fonte: Bored Panda
Na loja de ervas


Sinto o chão frio da calçada de cimento sob o meu corpo. O vento está forte e ainda nem é outono. Logo se aproxima da porta um grupo de jovens lindas. Aproveito-me da confusão e entro junto com elas na loja de ervas. A dona pousa o olhar em algum ponto acima dos meus olhos amarelos. Com um meio sorriso fixado no rosto vincado, se dirige às moças. Mas seu pensamento divaga: “Esvoaçantes, meninas-borboletas sorridentes, barulhentas. Borboletas recém-saídas do casulo. Será que pensam um dia envelhecer? Criar rugas no rosto, hoje papel-arroz? Rugas pelo filho doente, amor não correspondido, escassez de proventos? Meninas-moças que vivem atrás de poções mágicas para conquistar namorados. Ah, meninas-borboletas, brilho tão reluzente quanto fugaz, usufruam a dádiva da ignorância de serem finitas: simplesmente, voem. ” Assim elas o fazem. Mal acabaram de entrar e já saem voando, com seus pacotinhos de ervas e poções mágicas dentro de suas bolsas de grife. Quando vão aprender que amor não se atrai com feitiços? Porque amor é feitiço. Mágica indissolúvel quando os dois corpos se fundem e se transportam para uma dimensão além do tempo e espaço. Além das palavras. Além de tudo que não seja sentimento e sensação. A velha das ervas conhece este amor. Me olha atravessado quando lê meu pensamento. Ela, que sabe misturar grãos e condimentos para curar a tristeza no coração das gentes. Como não conheceria o amor verdadeiro? Por que pensar em amar lhe deixa vulnerável e insegura? Me encara e dá um sorriso torto, porém doce. Dirige-se para os fundos da loja. Fico em dúvida se ela voltará com uma vassoura para me espantar ou se simplesmente vai me deixar lá naquele canto, abrigado do frio e da noite. Ela retorna carregando uma coberta macia e um pires. Sou recompensado por minha astúcia com leite morno. Leite temperado com canela. Ronrono de satisfação e me esfrego em suas pernas. A senhora se rende, por fim. Abaixa-se meio encurvada, afaga minha cabeça macia e me presenteia com um sorriso genuíno. Durmo bem.

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Cristina Bresser: Comunicação-UFPR, Proficiency in English-Cambridge University, Creative Writing University of Edinburgh. Autora conto Capitolina, livro Torre de Papel, 2015. 08/2016 primeiro prêmio conto Captolium, I Concurso Literário NIDIL, Fortaleza, CE. Primeiro romance, “Quase tudo é risível", Editora Benfazeja, 11/ 2016. Mostra “Literatura postal”, Correio do Porto - Portugal. Em 2017, menções honrosas contos na Academia Letras MG, Microcontos Araraquara, Revista Conexão Literatura e Paranavaí Literária. Participação antologias: Microcontos- Lucas Palhão e PVB Editorial. Publicações de contos e poemas em revistas e jornais literários do Brasil USA, UK, Grécia e Índia. 

5 fases para a lua - 5 poemas de Daniela Pace

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"Persephone", de Patricia Ariel
NOVA

Como uma Lilith viúva
a lua se cobre,negra
e fecha os olhos egípcios
e recolhe os cacos
do espelho lunar
da superfície dos mares,
esconde os animais
no seu ventre escuro
recorta com tesoura
o dorso quieto de montanhas
e grita rouco um poema
tão anárquico e antigo
que parece silêncio,
corre descalça
pela trilha-navalha
da madrugada,
veloz e sedenta de sol
ela, a aposentada de festas
mas que vai bailar
vai bailar sua fuga
ao raiar o deslumbrante dia
Arte de Christian Schloe
LUA MINGUANTE

Cítrica pureza
vítrea
perfil nítido
de monja de cristal
goteja
teu suco perolado
em minha urna

noturna e inviolada
"Blood Moon", de Casey Weldon
LUA DE SANGUE

Lua Lilith
redonda e vermelha
tigela de sangue
que os tigres lambem

Lua odalisca
Salomé assassina
de trezentos véus
mostrando o umbigo

Lua dona doida
Madame Talvez
uma negra máscara
é também seu nome-esconderijo
Arte de Christian Schloe
ENTARDECER

Acende alta no campo
se arredonda e perfuma
moça inglesa sem sapatos
com margaridas por roupa
e dálias nos dedos prateados
afasta-se da matilha e chora
Lua ingrata! Velha irmã!
"Ascension", de Carrie Wachter
AO SUL DO NILO

Lua Nefertite...
a lua mansa
me envolveu em seus braços
longos de etíope,
negros como serpentes,
mas dóceis como um rio
num fim de tarde de primavera
executando,minuciosa,
seus ritos de acasalamento e
esplêndida,banhou de luar
as terras férteis



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Daniela Pace nasceu em São Paulo, em 20 de julho de 1971. Atualmente mora na praia de Juréia, no município de Iguape, com o marido, o filho, dois gatos e uma cadela e dá aulas de arte na escola local. Tem um filho adulto, também poeta, desenhista e tatuador. Além de escrever, gosta de desenhar e pintar. Fabrica livros artesanais com foco em poesia, desde 2017. Dorme ouvindo o barulho do mar e acorda com o canto dos passarinhos.

A SOLIDÃO SOU EU NO VENTRE DA MINHA MÃE _ 6 POEMAS DE RENAN CHIAPARINI

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Sentir

Sigo em versos
Lacônicos flutuando
Nas marés das lágrimas
De seus mares de água
Que açoitam meu
Rosto enferrujado pela
Química de seus estalares:
Do estômago ao cóccix
Do amor ao desapreço
Do compasso ao soluço e
Do nimbo ao cheio.

Eu vejo.

Suas mãos tocam o chão
Enquanto alguém conta uma história
Fantástica, e gesticula
E gasta a garganta
E arranha as têmporas
E quebra maxilares
E e e e e..., viva esses momentos
Meu amigo
Por favor, viva! Ouça o som do vento ao
movimento de descompasso dos braços
Coma as palavras que saem da boca
Deixe seus dedos tatearem
Historias em um livro
Sintam gastura
Beijem plânctons
Cantem onomatopeias
Que começam
Com lá
Com lã
Com nhã
Aproveitem de sua língua materna
E vivam intensamente cada
Hiato
Pois dessa vida
A gente só tira os sapatos
No fim do dia mesmo.





Ontem me deitei
e acordei em um domingo com uma ponta do lado
aos mais desavisados
a poesia foi essa






Você se lembra? Você se –
Lembra meu rapaz de
Quando você pegava sua bike
E pressionava os tornozelos
No pedal acelerando enquanto
O vento frio daquela tarde batia
Em seu rosto pois o inverno
Chegou e era só você e o mundo
Porque as andorinhas cacarejavam
O mar se punha e as estrelas eram
Policiais de milícias boas eeeeee cara, era tudo
Uma bagunça e só você era
Real você e aquele frio batendo
Em sua
Pele e rasgando a página da criança
Do ensino infantil com uma conta matemática
Dizendo “cê guenta mais opressão do
Que setenta? e a menina responde “cem Meus 20 no bolso não dá não.” E você pedalando naquele domingo frio
éra tu-
Do tão obvio, tão clássico que parece que
Alguém adicionou o som do g ou o j
Na palavra dia, porque é tudo tão
Tão simples tão tão in-
Terior
E você tem esperanças e fé de que o
Ponteiro da gasolina ande mais Que o ponteiro
Do pagamento um dia porque é tan-
Ta tanta fé e tanta crença nesse mundo que já
Já você voa nessa bike e entra em uma
Nuvem pesada quase azul e não sente
Nenhuma turbulência, e o mundo era todo seu
E era tudo tão nosso, tão tão nosso, você
Se lembra rapaz? Porque eu
Me lembro, eu me lenço, eu me lanço
Na vida hoje por esses dias
Por recordar esses dias
São esses
São esses
São esses dias que a
Gente tem que lembrar
Isso
Isso
São esses...
Ai ai
Coisa boa...






Nossos problemas
poderiam ser uma
foliculite apenas
daquelas que coçam o
couro cabe-
ludo
sem parar porque nossas adversi-
dades estao fodas cara...
Você acredita que as
professoras não podem mais amar seus
alunos?
E os professores não podem mais beijar
bundas de outros professores, só de profes-
soras mesmo é o fim dos tempos não é? Porque
no Egito a gente podia transar
sem pudor e agora é
isso
éssa putaria deslavada e assim
que arco iris que fica a fim
de sair depois de um dia
chuvoso antes do sol? Assim é
foda demais cara ah enfim que
vida é essa que
não se pode viver mais?





São Paulo
Eu vi um poeta branco
E uma
Bordadeira preta conversando e
Ele dis-
Se assim “queria fazer
Uma poesia com um ritmo de um
Surdo” e ela dis-
Se “ahahaha, esquece! Você
Não é Solano Trindade, e
Nem Akins Kintê” ent-
Ão o poeta disse “verdade, mas
E você pode fazer o que com
Esse seu ponto cruz?” e ela
Falou “fica olhando então”
E ai ela mexia aquela agulha como um
Deus bom cuida dos
Seres humanos e chiq chiq chiq chiq trançando uma lã grossa
E chiq chiq chiq chiq e ai começou a fazer bancos e avenidas e um
Monte de ocas enormes de andares e andares e fez um céu
Cinza que garoava e de repente pronto tava eu lá de calça
Em uma avenida grande e pããããããããããñnnnnn pããããããããnnnn
E os giroflex passavam a milhão e bla bla bla bla, e os saltos das moças
Tlec tlec tlec tlec e alguém se estrebuchava no chão e um
Cara se-gurou sua
Língua e a polícia olhava
Com a mão na arma e ai
Do outro lado um menino de 10 anos falava:
“doce! Bala! Pirulito, verdinho, seda. Tio, me arranja
Um cigarro desse?” e mais pannnnnnnnn e mais giroflex e
"Vai ter show
Hoje de graça no vão do
MASP", mas não pros mano
Do rap porque eles já tavam
Lá desde criança lá com o mic
Lá desde cedo rimando mas
Aquela estrutura toda não é pra eles
Não, e “poxa que livro massa, mas tô com grana
Só pra breja e pro busão, foi mal. Ai moleque, chega aí,
Quanto ta beck?” e flashs flashs flashs que não faz barulho e um
Mano tentava pular de skate um hidrante enquanto uma moça
Que tem um blog passava
E ela teve que parar de an-
Dar pra esperar o mo-
Leque pular e ele tentou
Tentou tentou tentou e uhhhh
Uhhhh quase quase e todo mundo
Parou pra bater palma pra ele
Porque ele não conseguiu e ahhh
São Paulo! eu sempre soube!
Eu sabia que era fácil te sentimentar sabe mas
Nem imaginava que sua
Mãe era
Uma preta
Borda-
Deira,






A solidão sou
eu no
ventre da minha
Mãe


Renan Chiaparini tem 28 anos é escritor, tem seu livro de poesias “1° ato” publicado pela editora Modo, joga dama xadrez e nunca serviu ao exército pois ao se alistar disse que não dava para abandonar sua mãe já velhinha de cama, atualmente sua mãe está bem, 41 anos, é Personal Trainer e super saudável. Está prestes a lançar seu mais novo romance: Dentre todas as pessoas, eu prefiro as putas.

O estudante de Praga, poema de Jorge Lucio de Campos

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The student of Prague (1983), Julian Schnabel.



[a Julian Schnabel]



Naquela casa em que
você escolheu ser livre
havia o nada do lado de fora.
Mas eu te disse: “o nada conta muito”.
E você me disse: “Deus é nada”
com os dedos espetando
as nuvens e o cabelos
soltos de raiva.

Mas você não fez isso.
Continuou obcecado
pelo mel das montanhas.
Com as mãos coladas
nas pedras, ameaçou
beber a espuma das ondas −
a corrente estranha e
solteira das ondas.

Ainda te vejo e voamos juntos.
Não sei se é o certo a fazer.
Ainda te voo e vemos juntos
e te descubro terrível, intenso
naquela casa onde só havia
o nada do lado de fora.

E você.

In: A grande noite perdida (Bookess, 2018).







____________________
Jorge Lucio de Campos é poeta, ensaísta e professor da ESDI/UERJ. Publicou os ensaios Do simbólico ao virtual (1990), A vertigem da maneira (2002), A travessia difícil (2015), Lembretes filosóficos para jovens sábios (2017), O império do escárnio (2017) e as coletâneas Arcangelo (1991), Speculum (1993), Belveder (1994), A dor da linguagem (1996), À maneira negra (1997), Prática do azul (2009), Os nomes nômades (2014), Sob a lâmpada de quartzo (2014), Paisagem bárbara (2014), Através (2017), Véspera do rosto (2017), O triunfo dos dias (2018) e A grande noite perdida (2018).







EXPO DE JUSSI KORIA [ SDWLK ART NO RJ ] + POEMAS DE ALEXANDRE GUARNIERI

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LEIA ABAIXO ALGUNS POEMAS DE ALEXANDRE GUARNIERI, INSPIRADOS PELO TRABALHO DO ARTISTA DE SIDEWALK ART [SDWLK ART], JUSSI KORIA 










*    *    *


CONHEÇA MAIS DO TRABALHO DO ARTISTA 




Alexandre Guarnieri (carioca de 1974) é poeta e historiador da arte. Integra o corpo editorial da revista eletrônica Mallarmargens. Lançou Casa das Máquinas (Editora da Palavra, 2011) [disponível gratuitamente AQUI], Corpo de Festim [livro ganhador do 57o Jabuti/ 2a Edição pela Penalux/ disponível gratuitamente AQUI] e Gravidade Zero (Penalux, 2016) [disponível gratuitamente AQUI]. Em 2016, publicou pela Patuá a antologia Escriptonita (poemas tematizando super-heróis), do qual foi um dos organizadores.



Cinco poemas de Angela Zanirato

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A poesia de Angela Zanirato



Medusa

os cabelos de Medusa
crescem até hoje
em silêncio
cobra coral
cobra d'água
cobra da morte
víbora
naja
em seus olhos ofídicos
um mar vermelho de corais
chispas de fogo
ferida antiga
pedra

Medusa me fez trocar de pele
tirou meus trajes
vesti couraça
modificou meu olhar
para a luta

os cabelos de Medusa:
-rios de liberdade
onde se aprende a rasgar mordaças
e nunca mais parir algemas.
Transversalidade

há quem se preocupe em dar pontos
no descosturado
-eu não!
preciso dos esgarços
dos restos de linhas
do mal acabado

- o que sou eu neste instante
senão um princípio do verbo?

tudo que se quer perfeito
tem um fim

bem dito os desajustados
estão sempre começando
bem dito os verbos irregulares
e suas rebeldes radicais
bem dita a corola do algodão
que cismou ser flor

bem dita mão calejada
que tece fios da memória
em novelos cujos dramas
pesam mais que seus gramas

bem dita essa transversalidade
que me atravessa
tira meu eixo
e meu ângulo.

*

Galhos

me dizem:
- forte!
mal sabem que não carrego minhas malas
recheadas de desespero e desistências
mal olham para meus braços / galhos podados
olham para meus olhos rajados
para minhas unhas de garras
para meu lombo cicatrizado

me dizem:
- forte!
mal escutam meu coração descompensado
aquele grito calado
aquele sono agitado
escutam meu discurso/ censurado
minha ideologia desfraldada
minhas palavras declamadas

me dizem:
- forte!
minha luta interna
nunca foi fotografada
nunca pichei meus medos
nos muros das minhas entradas
nunca desenhei minhas fugas
nas barras das minhas saias
nunca pintei meus dilemas na cara
em maquiagens sofisticadas

me dizem:
- forte!
me digo humana!

*

Seco

não é qualquer tábua
que me salva
não me prego em qualquer cruz
choro a seco
tudo que costura feridas
dispenso
não esterilizo nem o pensar
todo corte será história
toda lágrima engolida será memória
toda dor será fotografia
não maquio cicatrizes
a vida exige crueza
luvas cirúrgicas?
são só vaidades...

*

Rosa da resistência

planto uma rosa vermelha
que resista à maçã da bruxa
deixada na calçada
planto uma rosa vermelha
que resista à clorofila dos cabelos platinados
que floresça no cano das botas
estoure a boca do fuzil
planto uma rosa vermelha
que vá para a luta
armada de seiva
que não esqueça seus motivos
assim como a roda viva não esquece sua engenharia
planto uma rosa vermelha
e que o jardineiro jamais seja acusado
de decepar as próprias mãos na poda
rosa vermelha
que enfeite celas
peito de prostitutas
bancos de sangue
de sêmen
acampamentos
e feiras da lua
planto uma rosa vermelha
e não me preocupo com o ângulo
da fotografia
só com sua rota
de colisão com os fascistas
planto uma rosa vermelha à prova de balas
de tropas de elite
de canhões
uma rosa chumbo liberta
onde as mãos que a busquem
pela ânsia do encontro
nunca estejam satisfeitas.

*

Elegia a pedra

poesia, poesia
conta qual a primeira vez
que a palavra pedra te rondou?
foi a pedra pensante de Wallace Stevens?
ou a pedra viúva de Mallarmé?
a pedra queimada de Aleksandr Blok?
a pedra poética de Ósip Mandelstam?
a pedra –ferro de Hilda Hilst?

poesia, poesia
tuas pedras doem a cada verso
meu coração calcificado
asas amputadas
lírios desossados
este olhar pétreo
constrói muros
dorsos dobrados
pedra sabão

poesia, poesia
tuas pedras
mostram o caminho
dos voos
dos vasos
dos vales
dos ecos
dos gritos das mulheres apedrejada

poesia, poesia
mostre a ultima pedra do poema :
-ensina a caminhar em pedras brutas.








Angela Maria Zanirato Salomão é professora de História, Pós-Graduada pela UNESP de Assis e pela UEM, Maringá.Participou do Mapa Cultural Paulista versão 2015/ 2016, onde foi classificada para a fase final na modalidade conto. Participa da Associação de Escritores e Poetas de Paraguaçu Paulista- APEP. Tem poemas publicados em três Antologias: “Um olhar Sobre” coletânea da APEP em 2014, “Filhas de Maria e Valentim”, 2015 e “Um Olhar Sobre”, coletânea da APEP 2017.  Possui poemas publicados  nos sites Blocos Online , Parol , Movimiento Poetas del Mundo, Antologia do Mapa Cultural Paulista edição 2015/2016, versãoe-book, Revista de Ouro, Revista Ver-O-Poema e InComunidade.










'O ÚLTIMO VERSO É SEMPRE DE AÇÚCAR' _ a poesia de Priscila Branco

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nunca pensei assim:
é abril, e tenho cartas.
é junho, e daí?
não tenho nada.
cada mês deveria ter um segredo
ou talvez seja superfície demais.
se mês fosse um oceano
eu diria que tenho um peixe
mas o que eu faria com isso?
não há memória
quando a conversa se embola
e vira outra história.
se eu transformar
mês em mesa
posso comer o peixe?
há tanta coisa a se fazer
em uma mesa que
seis minutos valem mais que um mês.



não é o corpo
não é meu 
corpo
útero
fígado
sangue
coração
o que tu quer
se chama pele
se inflama toque
se rasga lâmina
se lambe e sente.
não sou
eu
sou cobra viva
escama ou veneno
sexo ou alimento
vai tentar a sorte?



o amor não suporta 
nada
não há
contenção para chuva 
se já nos acostumamos
ao sertão.
o amor não suporta
nadar
se desmorona
não sabe construir
barco e buscar outra
morada.
não suporto
o amor
desisti de
crowdfunding
não se pode comprar
o insuportável.




pensei em te ligar
lembrei que ninguém mais disca
nem discos escutamos mais
que pena
tanta música marcada
tanto encontro retocado
será que compro uma vitrola?
ainda estou pensando em te ligar
não tem tomada aqui em casa
e sei bem que você não é abajur
que pena, comprei uma linda
palavra criei com ela
não é pra isso que serve a saudade?



tenho esquecido 
nomes
lugares
acontecimentos
aquele olhar que
tenho esquecido
no peito.
esqueço uma
síla
baíamos descobrir
o mundo.
tristeza te faz viver pela metade.




fazia dias que não chorava.
incrível que pareça 
não aguento mais escrever sobre dor. 
virginia estava certa?
o peso
do feminino,
do choro,
a alteridade duvidosa
(uma vez que amor só pode ser outra coisa)
aliás,
saindo do parênteses
pode ser outra coisa?
o quê?
chamar de pássaro
e deixá-lo voar
chamar de pássaro
e matá-lo com a espingarda
sou mulher
mas sou armada
como uma aranha na quina do box.
será que estou atrapalhada?
será que essa dor é um saco de mercado
usado pra me oprimir
e me sufocar?
estou suicidando minha linguagem
preciso escrever sobre a guerra,
sobre o universo
panfletar as palavras?
não confio em semideuses.
não confio em poemas de amor.



por que não 
deitar em roupas amarrotadas
à espera uma vez na corda
depois na cadeira da sala
e agora na cama
mais de um mês abandonadas
me viram chorar no limite
da casa que também
chora
lá fora
o dia está feliz por que
não fazer poesia sobre o céu
sobre a praia e o vento
é preciso um niilismo profundo
para falar de roupas amarrotadas
e mais ainda deitar-se nelas.




gosto de ler poemas como
quem lambe ferida
encostar a língua
na dor do outro
o gosto acre
doce só no final
o último verso é
sempre de açúcar.



nunca gostei
dessa coisa chamada escrita
de mulher
nunca gozei 
(porém)
com um poema
de macho.



 sinto muitas vezes uma vontade profunda de escrever um texto cru, comê-lo com as mãos, o sangue na saliva, dilatando minhas papilas, o gosto seduzente da vida ao avesso, depois penso o quão estúpido isso é, não existe essa coisa de texto cru, ele está sempre bem bem passado, tão passado que consigo vê-lo a quilômetros quando olho para trás, sozinha na estrada enxergo as palavras formando uma linha do horizonte, penso em tirar uma selfie para que acreditem em mim e não


me achem louca, mas pensar sobre isso já é um ato de insanidade, também gostaria de falar sobre papoulas e fazer uma poética, como dizem mesmo?, uma poética solar, tudo que eu queria na vida era uma alma jogada no sol, mas você conhece o mito, ele está aí para edificar minha história, um texto cru, eu teimo em achar que existe aquela tal de mudança de valor linguístico e mando todo mundo esquecer de uma vez por todas a etimologia das coisas, mas existe algum tipo de mágica na origem das palavras, elas têm cheiro, antepassados, há uma inscrição profunda dentro de sua escritura, por isso quando penso em cortar os pulsos é por um texto cru que estou faminta.



olá, meu amor, bom dia, sei que tem pensado muito sobre aquela casa na praia que há anos pensamos em comprar, pensamos, pensamos muito, sei tão bem quanto você o quanto pensamos na areia, nas ondas e até nos tatuís que hoje em dia já nem mais existem de tanta poluição, você sabia disso? não há mais tatuís por aí rodeando nossos pés e beliscando a ponta de nossos dedos. mas não foi culpa sua, eu sei que você esqueceu aquela guimba de cigarro e nunca faria isso de propósito, não quero que se sinta mal pela morte dos tatuís, mas você sabe, você deve lembrar, que quando falávamos da casa da praia, falávamos muito dos tatuís, e você até me disse que levaria seu papel e a aquarela para desenhar esses animais magníficos que ficam reaparecendo na minha cabeça, mas a verdade, a verdade mesmo, por favor não espalhe por aí depois de nossa conversa, é que nunca vi um tatuí, mas apesar disso sei muito bem como eles são e o quão importantes serão quando estivermos num asilo já com  a memória em frangalhos, tenho certeza que lembrarei deles e ficarei triste pelas gerações futuras que não terão a oportunidade de vê-los como agora os vejo, que sorte tenho, por outro lado, de nunca tê-los visto, não sei o que seria de mim se tivesse visualizado, mesmo que por um segundo, esse pequenino animal que tantas vezes percorreu meu corpo sem nem saber meu nome, sem saber das noites em claro, dos cortes de cabelo e da vida que gostaria de ter deixado para trás. meu amor, me desculpe, eu te acordei?




  

Priscila Branco é escritora de guardanapos. ainda não descobriu o que é poesia e se encaminha pelas tentativas e erros. escreve desde que achou um lápis e um papel caídos no chão, lá naquele tempo que chamamos infância. antes de tudo, porém, é leitora devoradora e estuda literatura brasileira no mestrado da UFRJ.

Borboleta - a menina que lia poesia, resenha crítica por Leila Míccolis

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ARES, MARES E ROCHEDOS

 por Leila Míccolis



“Não haverá borboletas se a vida não passar por longas e silenciosas metamorfoses”.

Rubem Alves


Não é de hoje que a autora é fascinada por borboletas: em 2009 tive o prazer de prefaciar o livro de Chris Herrmann intitulado Voos de Borboleta – haicais leves, como um bater de asas; no entanto, o adejo deste inseto colorido em Borboleta – a menina que lia poesia é completamente outro: pertence a alguém que, presa em um casulo fatal, vive extraindo do mundo das leituras a sua força, coragem e determinação diárias.



Por não conter diálogos, a leitura deste livro podia tornar-se cansativa, logo nas primeiras páginas. Porém, com delicadeza e sensibilidade, a autora consegue nos prender até o final, e acompanhamos com grande interesse o crescimento interior de Maria Rosa, uma jovem que vai da mudez à fala, do isolamento à plena interação com as outras meninas-moças internadas no mesmo local hospitalar que ela, capaz de viver cada dia como se fosse o primeiro e o último de sua existência e de celebrar a vida da forma mais intensa possível dentro das circunstâncias limitadoras de seu precário estado de saúde. Maria Rosa nos lembra, a todo instante, o inestimável valor da poesia, dos livros, da solidariedade, da beleza, do diálogo, da amizade e do amor, sutilmente enfatizando a ideia de que, em nossa travessia, o mais importante é a própria caminhada, o modo como a percorremos.

 


Um romance que se transforma simultaneamente em um livro de viagens, com a jovem borboleteando os jardins da cidade natal de seus autores preferidos, para descrever as diferentes cores locais; em reflexões, sob o formato de poesia, fazendo com que questionemos comportamentos cotidianos: “Despreconceito / é a compreensão do outro na gente”; e também se apresenta como um diário, oferecendo ao leitor a intimidade de uma adolescente que, apesar da adversidade, vai metamorfoseando-se e desabrochando-se a cada novo aprendizado, sem perder sua inocência e pureza. Uma literatura polimorfa, portanto, por conter em si múltiplas propostas estéticas.

Que reverbere, em nós, a principal mensagem da obra, alicerçada na impermanência e na transitoriedade da vida, visando não o hedonismo imediatista tão comum em nossa época, mas sim a percepção de cada minuto como uma dádiva em prol de nosso aprimoramento ético, moral, intelectual, mental e físico. 




A personagem principal ama as borboletas porque identifica-se com seus voos; mas eu a vejo também nos mares, não como uma arraia-borboleta, mas como uma determinada espécie de ostra, a princípio fechada em sua concha, mas que, com o passar do tempo, fixa-se a uma rocha fazendo dela o seu sustentáculo – Maria Rosa e Rocha –, transformando sua dor em pérola (pois não há pérola sem sofrimento), e oferecendo ao mundo a mais preciosa joia gerada em seu âmago, em seu íntimo, em suas entranhas. 



* Leila Míccolis é Mestra, Doutora e com Pós-Doutorado em Letras/Teoria Literária (UFRJ), pesquisadora, escritora de livros, TV, teatro e cinema.


..
O livro pode ser adquirido aqui:
https://livrariapatuscada.m.minhalojanouol.com.br/borboleta-a-menina-que-lia-poesia-de-chris-herrmann-351681/p

W. J. SOLHA EM NOVO RIMANCE [ROMANCE RIMADO]

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A grandiosidade do Nordeste em A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso
Solha volta à ficção com a criação de um megaespectáculo literário,
num enredo que traz Ariano Suassuna e Miguel de Cervantes


Solha acaba de lançar seu mais novo livro: A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso.
Para quem não o conhece, o autor, além de escritor e artista plástico, atuou em alguns filmes importantes, com ótimas críticas (sua maior projeção atuando veio em 2012 graças à sua participação no longa-metragem O som ao redor, de Kleber Mendonça Filho).


No palco das letras, entre prosa e verso, publicou mais de uma dezena de livros. O de agora, seu mais recente trabalho literário, é um longo poema narrativo com rimas (um “rimance”) e está sendo lançado pela Editora Penalux.
“Poderia ter feito um cordel”, diz o autor, “mas escolhi algo mais solto: um romance rimado, sempre ágil, aqui e ali sofreado e engrandecido pela solidez do ‘martelo agalopado’ (versos com estrofes de dez decassílabos)”.
A obra retoma fatos de nosso passado, a exemplo do romance Pedra Bonita, do Zé Lins, mas dotando-os de elementos contemporâneos, de modo a tornar-se algo como um acontecimento esportivo do porte de uma Copa do Mundo. É o Brasil, na sua revolta sem tamanho, pedindo uma atenção de alcance mundial a favor do seu povo.

Na trama, uma multidão, sob cobertura internacional da imprensa escrita e televisiva de todo o mundo, se reúne em torno da Pedra do Reino, em São José do Belmonte, sertão pernambucano, a fim de ver o portento da chegada messiânica, anunciada por ninguém menos do que Ariano Suassuna e seu ídolo Miguel de Cervantes, o que tem a ver com o casal que vai se envolver no “milagre” – Trancoso, que é o Quixote do Circo Du Seo Léo, ali presente – e sua amada Dulcineia, uma beldade do lugar, não tão bela, mas que se submete a um banho de loja, pra conquistar seu amado. Com a enormidade em que se torna o evento, as forças armadas cercam a Pedra, com o propósito de explodi-la, detonando gigantesca revolta popular. 

Na opinião do crítico Éverton Santos, “a narrativa é ao mesmo tempo mítica e representativa da realidade popular nordestina; seu cantar, nesse Rimance, é inventivo, crítico, simbólico, perspicaz, irônico, um antropofágico monumento que, como as duas Pedras do Reino, é cercado de histórias”.

O livro em sua originalidade consagra a beleza mítica do Nordeste – do seu povo a clamar por Justiça e por uma realidade menos sofrida.


*    *    *


CONHEÇA ABAIXO ALGUNS TRECHOS DO LIVRO


,
do alto da Pedra,
o susto de arribaçãs,
e,
de quebra,
os helicópteros Sabre,
da FAB,
que irrompem com seus soldados,
muitos do lado de fora,
armados,
e assustam a multidão,
que lembra,
pela extensão,
o êxodo bíblico
e o cíclico,
tantas vezes fotografado
por Sebastião Salgado.

Alta
e ancestral no meio do plaino,
a Pedra do Reino,
rocha dupla na vertical, no sertão pernambucano,
insufla no povo ( mesmo quando se camufla em profano )
a estupenda lenda de que tem, dentro, no centro, a catedral
na qual,
el-rey D. Sebastião, de Portugal, o Afoito,
sumido ( ou abduzido ) na batalha de Alcácer Quibir,
de 1578,
está por vir,
messiânico,
pra levar a fundo a retirada dos males do mundo,
cada vez mais
satânico.

E eis que lá está o autor da Compadecida e do Romance d´A
Pedra do Reino
a cavalo,
a Globo a entrevistá-lo no seu céu,
que é o Circo de Sô Leo,
entre mágicos, palhaços, malabaristas e acrobatas;
saltimbancos e trapezistas – que idolatra!

Ao fundo,
um grupo de camponeses – que passa com suas reses – confunde-se,
dócil,
com as figuras de barro do mestre Vitalino
e as de Manuel Eudócio.

A BandNews dá ao Brasil,
em panorâmica (que deixa de lado os helicópteros – agora
meras libélulas e coleópteros  ) a leva – romântica – de romeiros,
que lembra a de cangaceiros.

A BBC mostra o que mais se vê:
flagelados em paus-de-arara lotados, que cruzam a paisagem,
em fim de viagem.

A NBC faz,  sobre a água, um “Abecê” da escassez –  em hotéis, motéis, bares – restaurantes cada vez mais abundantes, centenas de lupanares.

Filma – com tudo que o assunto comporte – as romarias que vêm até ali, sem transporte,
além de brigas, intrigas,
vários assaltos com morte.

Entre os peregrinos a pé,
aqui e ali um pangaré.

Flagra-se a magra artesã, cadeirante marcante
que,
moldando ( e fumando o quinto cigarro ),
miniaturiza,
no barro,
com esperta destreza,
a Pedra – aberta – com o que nela antevê de riqueza.

Filma-se o pé-de-pau cheio gente ( principalmente crian- ças ),
que vê a humanidade que chega – toda ansiedade,
esperanças!

[...]

DULCINEIA

Ao começar a chover,
após a estreia moderna,
cheia de danças,
dAs Conchambranças de Quaderna,
Ariano,
seguindo o Plano,
vê,
de cima do terraço do Centro Cultural de Garanhuns,
alguns,
depois um mundo de guarda-chuvas de luto – como num reduto de viúvas – abrir-se de quatro em quatro,
ao sair do teatro,
quando... uma determinada sombrinha... iluminada por dentro ( coisa banal, mas... pra
ele... um sinal ),
floresce.
E ele...
desce,
manda-lhe cores
em flores
e esta turminha – esquisitinha – de palavras:
Trancoso – o meu Quaderna – em breve (uma de minhas lavras ) será seu esposo.
Ariano,
ditoso.”

Dulcineia não é linda,
ainda.
Não acha ser o principal mister da mulher o de estar permanentemente formosa:
seria propaganda enganosa.
Sabe que,
quando quer,
salve-se quem puder!:
tem poder – ... abaixo e acima do abdômen – sobre qualquer homem.

Já vira,
no palco,
o raivoso Bozo – a cara branca de talco – dizer que “elas”,... insatisfeitas-porque– imperfeitas,
iludem os pobres romeus
com seios e a esbelta cintura, cheiros e a bela estatura,
que não são seus.
Ao que Ariano,
sorrindo,
lembrou-se,
até que se divertindo,
de que já vira Trancoso – delícia pura! – cantarolando, bem langoroso,
o samba-canção Escultura,
– É um Pigmalião,
disse o Astier ,
quase que só por dizer.

A MOÇA ESCOLHIDA,
( a da sombrinha florida ),
consente nesse lance, contente,
e Sô Leo,
que a considera ( coisa de idoso) “um pitéu!”,
dá-lhe todo um banho de loja,
a que ela – surpreendentemente – se arroja.
Aceita as tais lingeries e outros ardis,
que incluem cabelos e
cílios postiços,
a pele com novos viços,
tinta, maquiagem, cinta, rinsagem,
mais manicure, saltos altos, a pedicure,
tudo que a torna ... letal ,
fatal,
graças ao sonho de que se sente vassala,
com filhos,
conta no banco,
marido,
tudo sensato na sala.

Diz-lhe o Ariano,
decano:
Tome o tento que puder com Bozo,
que não gosta de mulher.

Ela – afiança o nosso bom São Chupança – atrai o basbaque,
é invadida,
engravida...
e... aí faz o saque.

– Daí – diz Dulcineia – que já posso ter a ideia de quanto será goshtoso tomar
Trancoso do Bozo.

De repente,
o susto,
e a que custo:
rompe-se o colar de pérolas,
que,
numa chuva de esférulas,
se espalha no piso,
em metralha,
e ela diz
―É aviso!‖
Vai-se do vestido – no espelho – o vermelho.

E vêm nuvens,
a ribombar beethovens.

[...]

GRAÇAS AO ARIANO E CERVANTES,
TANQUES, por si sós aterrorizantes, passam – em todos os pesadelos – a vir em cortejos ( como esquecê-los? ) de cancros e
caranguejos.
E vêm – derradeiras – alas de escavadeiras,
com rastros de ossos,
caveiras,
rugindo feito leões
– de olhos acesos;
dragas  enormes,  dragões,
sobre indefesos.

E é um general: Albuquerque Urquiza,
que frisa,
com muito prazer ,
pro Astier:
– Sintoma do poder de Roma foram, também, as máquinas pesadas pra construir estradas,
dando mobilidade à tropa – dentro e fora da Europa – contramobilidade pro inimigo,
livrando-se de seu perigo:
É do que fala Isaías,
nas profecias,
sobre aplainar horizontes,
exaltando-se vales,
humilhando-se montes.

Pausa.
Causa:

o Astier,
a rebater:
– Mas Nel mezzo del cammin... há uma Pedra.
Sim,
mas tenho pra mim... que Suassuna e Saavedra, que, aparentemente, só cuidam do estético – sabem que vem aí um especialista em demolições,
um técnico,
pra implosão dela – e é pena, porque bela – com máquinas tirânicas,
titânicas,
prontas pra lhe recolher os pedaços e abrir de vez os espaços.
Os helicópteros, todos já viram.
Talvez ,
no entanto,
prefiram...
caças a jato,
que vêm pra dar uns rasantes... no Ariano e Cervantes,
se vão às vias de fato.

Basílio complica:
– Pode acabar em Guernica.
– Sem o Picasso?! Duvido! Este país é um fracasso,
o que explica a espera... irreal... de uma salvação nacional , vinda de um... rei,  ... de
Portugal!
Caramba,
isso talvez explique porque – bocado a bocado – mais e mais me enfado...
com samba!


*    *    *




*    *    *


Solha tem 77 anos, é de Sorocaba, sendo paraibano há 56. Tem vários romances premiados: Israel Rêmora– Prêmio Fernando Chinaglia 1974; A Canga– 2º. Prêmio Caixa Econômica de Goiás 1975; A Batalha de Oliveiros– Prêmio INL 1988; Relato de Prócula – Funarte 2007 e Prêmio João Fagundes de Menezes, da UBE-Rio, 2010. Tem vários poemas longos, dentre eles Trigal com Corvos – Prêmio João Cabral de Melo Neto, UBE-Rio 2005. O autor também se dedicou à pintura (o painel Homenagem a Shakespeare, da reitoria da UFPB é dele) e participou como ator em vários filmes, destacando-se os curtas A Canga– de Marcus Vilar, e Antoninha, de Laércio Filho; e, entre os longas, O Som ao Redor– de Kleber Mendonça Filho, e Era uma vez eu, Verônica– de Marcelo Gomes. Tem publicada também a coletânea História Universal da Angústia– Ed. Bertrand Brasil, 2005 – Finalista do Jabuti em 2006; Prêmio Graciliano Ramos, da UBE/Rio 2006.





poemas de Patrícia Lavelle, do livro "Bye bye Babel" (7Letras, 2018)

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Arca de Babel


Era uma vez duas histórias:
a cidade em construção
era este barco à deriva.

Nele, as línguas, enroscadas,
pares híbridos e férteis,
cresciam e multiplicavam-se. 

Um abarcar, muitas arcas:
esta cidade à deriva
é balbúrdia e tradução.


 * * *



Arranha-céu
(para Lu Menezes)



O céu, arranhado, verteu
toda a sua transcendência
e agora
ficou
vazi
o


* * *



Palavra estrangeira


Entre palavras e coisas,
há sempre alguma distância:
na palavra, a coisa é outra
na coisa, a palavra nem é.
Mas essa coisa sonora,
que a palavra é também,
é uma forma de armadilha
pra pegar uma outra coisa.

Presa em palavra estrangeira,
uma coisa é ainda mais outra
menos diversa dela mesma
que do meu próprio silêncio.

Mas a palavra estrangeira
que tardiamente apreendi
em prévia palavra estrangeira
torna-se coisa ainda mais diversa
prendendo-me assim à primeira.

Coisa apreendida no tempo,
toda palavra é armadilha
onde eu, ela ou isto
(a coisa pensante = X)
capturada, captura-se:
toda palavra é estrangeira.


____________
Patrícia Lavelle nasceu no Rio de Janeiro, é professora do Departamento de Letras da PUC-Rio, atuando no Programa de Pós-graduação em Literatura, Cultura e Contemporaneidade. Doutora em filosofia pela École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris, onde morou entre 1999 e 2014, tem livros de ensaios publicados na França e no Brasil. Como poeta, publicou Migalhas metacríticas (7Letras, coleção Megamíni, 2017) e Bye bye Babel (7Letras, 2018). 
Bye bye Babel obteve a primeira menção honrosa do Prêmio Cidade de Belo Horizonte, edição de 2016.


Resenha: "A engenhosidade a serviço da arte da palavra", por Krishnamurti Góes dos Anjos

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A engenhosidade a serviço da arte da palavra
Krishnamurti Góes dos Anjos
Raras são as obras ficcionais, (e já escrevi isto em alguma crítica), em que seus autores tentam estabelecer diálogo com textos de outros escritores. Mais raro ainda quando nesse diálogo se inclui também uma referencialidade expressa à obra de autores distanciados no tempo por séculos. E raríssimo quando de um tal projeto, resulta obra de alta qualidade como é o Rimance do senhor Waldemar José Solha, “A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso”. Alguns pensarão que a grafia da palavra“Rimance” foi digitada equivocadamente e que o certo seria “Romance”. Não foi. Tal gênero é o Romance popular em verso, que se cantava ao som da viola em séculos passados, mas ainda freqüente no Brasil, em verdade um pequeno canto épico.
Voltando à questão do inusual, ou insólito, como queiram, acrescentamos que tal atitude quando realizada sob a égide de artistas que apuseram ao real uma reinterpretação subversiva pela própria natureza, derivando para a suprarrealidade que atiça a compreensão e alarga-a para ampliar a perplexidade a cada aproximação, propicia deleite ainda maior ao leitor, dependendo claro, de como este se posiciona ante ao inusitado do texto. É de se ter em mente que ao lermos obra de ficção, estamos aptos, como escreve Tânia Du Bois na contra-capa da obra,  ao despertar “na palavra ações e contrastes, fazendo a diferença, por ser algo que revigora por dentro, desencaixa e flui se conectando com a força geradora e dando liberdade para o leitor interpretar, de muitas maneiras, suas construções poéticas, descobrindo novos sentidos”. Eis aí senhores um dos sentidos fenomenais que a literatura propicia. 
            Portanto, é interessante tecermos algumas considerações, ainda que brevíssimas (como impõem as limitações de uma resenha), sobre os novos e atualizados significados que Solha encontra nas obras de  Trancoso, Miguel de Cervantes e Ariano Suassuna, e ajusta-as e dá novo significado  aqui e agora, nesse mundo safado no qual vamos tecendo o futuro. Comecemos pelo autor mais recuado no tempo (há vários outros autores citados no texto de Solha, entretanto os mais significativos, aqueles que compõem a espinha dorsal da obra num sentido de intertextualidade), parecem mesmo referenciar as Histórias de Gonçalo Fernandes Trancoso, considerado um dos primeiros contistas da língua portuguesa que escreveu os Contos & Histórias de Proveito & Exemplo (1575). As histórias de Trancoso são tradição popular que permanece viva até os dias de hoje no Nordeste.
Temos em seguida Miguel de Cervantes Saavedra (1547-1616) notável romancista, castelhano. A sua obra-prima, Dom Quixote, muitas vezes considerada o primeiro romance moderno e um clássico da literatura ocidental, é considerada um dos melhores romances já escritos. Dá-nos conta esta obra monumental, que de tanto ler historias de cavalaria, Dom Quixote ingênuo fidalgo espanhol, passa a acreditar piamente nos efeitos heróicos dos cavaleiros medievais e decide se tornar, ele também, um cavaleiro andante. Para tanto, recorre a uma armadura enferrujada que fora de seu bisavô, e se auto-intitula Dom Quixote de La Mancha. Como todo cavaleiro, ele precisa de uma dama a quem honrar. Elege então uma lavradora que só conhece de vista e a chama de Dulcinéia. Depois de tomar essas providências, monta em seu decrépito cavalo Rocinante e foge de casa em busca de aventuras acompanhado do fiel escudeiro Sancho Pança: um ingênuo e materialista lavrador, que aceita seguir o fidalgo pela promessa de uma ilha para governar. Obra fantástica do embate entre razão, sonho, ilusão, e materialidade.
E finalmente, o nosso contemporâneo brasileiro Ariano Vilar Suassuna (1927-2014), dramaturgo, romancista, ensaísta, poeta e professor. Autor de “A Pedra do Reino” (publicado em 1970) livro de decifrar, de palmilhar página a página, em compasso de quem anda pelos descaminhos do sertão sob um sol escaldante. Dom Pedro Dinis Quaderna, o protagonista, nos diz: é um castelo de sonho, “obra máxima da raça brasileira”. Como escreveu Raquel de Queiroz no prefácio pois, argumenta ela, ler livro escrito por um erudito é o diabo. Ou você eleva o pensamento ao nível do visionário e delirante Quaderna ou deixará a leitura inacabada. É de delírios, miragens de deserto, de legenda e sonho que trata essa obra. Da grandeza do homem mesmo diante da mesquinharia da vida. Quadro vívido da mistura dos povos que formaram o Brasil no seu âmago. E é assim que vamos à “Engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso.
“Alta / e ancestral no meio do plaino, /  a Pedra do Reino, /  rocha dupla na vertical, no sertão pernambucano, / insufla no povo (mesmo quando se camufla em profano) / a estupenda lenda de que tem, / dentro, no centro, a catedral / na qual, / el-rey D. Sebastião, de Portugal, o afoito, / sumido (ou abduzido) na batalha de Alcácer Quibir, / de 1578, / está por vir, / messiânico, / pra levar a fundo a retirada dos males do mundo, / cada vez mais / satânico”.
Este o mote da obra, em que entram como personagens, o próprio Ariano Suassuna e o Dom Quixote de Cervantes que termina virando o Bom Pixote, Dulcineia [aquela musa inspiradora de Quixote] o valerosoTrancoso, sô Leo (que é o dono do circo que ali se instala. Sim circo, porque tudo termina virando um tremendo circo, metáfora perfeita não só do Nordeste brasileiro, mas do mundo!) e o palhaço carioca Bozo  todos a interagir com a multidão que ali se reunirá e que em suma, representa o povo pobre e sofrido do Nordeste. Todos diante desta Pedra do Reino, onde se forma o cenário que desenvolverá a trama da obra.
“Todo mundo – deste horizonte - / verá Dulcineia & Trancoso, / o espetáculo – estrondoso! – de São José do Belmonte!”
George Orwell (1903-1950) escreveu algo que contém a alma de nossos tempos: “A massa mantém a marca, a marca mantém a mídia e a mídia controla a massa”. E entre os acontecimentos que se vão sucedendo, e cobertos rigorosamente pela mídia mundial que tudo cobre, tudo vê, e tudo explica conforme suas conveniências (estão citados literalmente os canais mais influentes do mundo), que fazem a cobertura do verdadeiro “samba do crioulo doido” que ali se estabelece, tal e qual o Brasil hoje. “Né não?”
Uma: “pura loucura, / a da multidão que se crê na iminência de ver - / na vigésima primeira centúria – a Pedra / do reino se abrir, / mediante sacrifícios humanos (lendas de lusitanos), / e, / de dentro dela, / o Sumido, / o Desejado, o Encoberto, / o Adormecido / sair, / no sebastianismo que, / aqui, / já deu tanta vida ceifada / por absolutamente nada. / Maior, / ainda, / é a insânia, / extemporânea, / dessa paixão histérica, /...”  Que faz o palhaço carioca Bozzo declarar furioso, em letras maiúsculas:
NÃO, A HUMANIDADE É o CÂNCER DO PLANETA TERRA”.
Tudo degringolando cada vez mais: E cito apenas algumas palavras retiradas dos versos de Solha que todos vão saber bem direitinho do tempo e do lugar de que se fala: crimes / punhaladas/ pancadarias / execuções / pus / lutas / cortes sangrentos / eletrocussões / torturas / tiros / fraturas / dores / explosões. É da “Pedra do Reino” isto? Onde a ficção? Onde a cruel realidade que vivemos?
A baderna torna-se tão incontrolável que nem Generais controlam a situação. Um “vale-tudo: de caças a jato” a “flechas de botocudo”. Pensa-se em alguém como um Hitler, Nero ou Macbeth. Não; nem esses resolveriam os impasses que ali vão se engendrando, é preciso pensar  “num grande inimigo”. É preciso instalar algo mais. É preciso o horror! O apocalypse now onde, “nós todos cada dia mais próximos / de um juízo / Final. / Rangem-se dentes por toda parte, / gemidos, / gritos no mundo em chamas, / o enfarte”..,
E é então que:
...“há um som – contínuo de rodas, e / outro, igual – picotado por podas, / de patas, / no que um coche (agoureiro, sem o cocheiro) chega, / dele apeiam... baratas... e a Morte, / horrível / terrível / tão seca / que, / quando se encurva e agoura, / a pele – nas omoplatas (como que de sucatas) / - estoura, e as vértebras, ouriçadas, / saltam – numa fila de lâminas - / afiadas.
- Morte – diz Ariano – é o nosso Norte. / Qualquer que seja a direção / e sorte”.
Incontrolável é a situação. Não há controle possível, a sensação é de danação eminente. “Como – “liderar o povo”?, - “Como”?, pergunto de novo, / se fora do picadeiro é como se eu, / por derradeiro, / falasse sem microfone, pra um povo com headphone?”
Veja-se até aqui a engenhosidade da palavra a serviço da arte como o próprio titulo da obra já nos diz, a engenhosidade de um autor de notável lucidez lírica que  conta com duas dezenas de obras publicadas.
Mas afinal como definir um tal texto, se é que até aqui ainda há necessidade de definições inúteis? Seria como escreve o jornalista e escritor Daniel Zanella na orelha da obra, “uma novela de cavalaria para tempos pós-modernos, dentro da lógica nordestina”? Um grande circo místico, uma companhia de teatro itinerante? Ainda na caracterização de Zanella. Ou como observa Éverton Santos na contra-capa. Um cantar “inventivo, crítico, simbólico, perspicaz e sobretudo, irônico”? Decida você leitor. O que me cabe afirmar, e faço-o com prazer, é que vale a pena conferir como se resolve a incrível trama em versos que o senhor W.J. Solha engendra. Deixamos como provocação à curiosidade, apenas uma fala interessantíssima do tal El-rey que afinal aparece:
“El sueño de La razón produce monstruos . / horribiles. A fé, com superstição, é mestra de / tristes dribles! Critério, imaginación, / tienem de entrar em acción, / o no serán mas / possibiles!”
Confiram como termina essa saga, leitura que recomendo muito. Muito mesmo.

Livro: “A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso” – Narrativa em versos, de Waldemar José Solha. Editora Penalux, Guaratinguetá – SP, 2018, 98p.
ISBN 978-85-5833-369-5



* * *
Krishnamurti Góes dos Anjos. Escritor, Pesquisador, e Crítico literário. Autor de: Il Crime dei Caminho Novo– Romance Histórico, Gato de Telhado– Contos, Um Novo Século– Contos,  Embriagado Intelecto e outros contose  Doze Contos & meio Poema. Tem participação em 22 Coletâneas e antologias, algumas resultantes de Prêmios Literários. Possui textos publicados em revistas no Brasil, Argentina, Chile, Peru, Venezuela, Panamá, México e Espanha. Seu último livro publicado pela editora portuguesa Chiado, – O Touro do rebanho – Romance histórico, obteve o primeiro lugar no Concurso Internacional -  Prêmio José de Alencar, da União Brasileira de Escritores UBE/RJ em 2014, na categoria Romance. Colabora regularmente com resenhas, contos e ensaios em diversos sites e publicações, dentre os quais: Literatura BR, Homo Literatus, Mallarmargens, Diversos Afins, Revista Subversa,Jornal RelevO, Germina Revista de Literatura e Arte, Suplemento Correio das Artes, São Paulo Review, Revista InComunidade de Portugal, e Revista Laranja Original.
Waldemar José Solha tem 77 anos, é de Sorocaba, sendo paraibano há 56. Tem vários romances premiados: Israel Rêmora – Prêmio Fernando Chinaglia 1974; A Canga – 2º. Prêmio Caixa Econômica de Goiás 1975; A Batalha de Oliveiros– Prêmio INL 1988; Relato de Prócula – Funarte 2007 e Prêmio João Fagundes de Menezes, da UBE-Rio, 2010. Tem vários poemas longos, dentre eles Trigal com Corvos – Prêmio João Cabral de Melo Neto, UBE-Rio 2005. O autor também se dedicou à pintura (o painel Homenagem a Shakespeare, da reitoria da UFPB é dele) e participou como ator em vários filmes, destacando-se os curtas A Canga – de Marcus Vilar, e Antoninha, de Laércio Filho; e, entre os longas, O Som ao Redor – de Kleber Mendonça Filho, e Era uma vez eu, Verônica – de Marcelo Gomes. Tem publicada também a coletânea História Universal da Angústia – Ed. Bertrand Brasil, 2005 – Finalista do Jabuti em 2006; Prêmio Graciliano Ramos, da UBE/Rio 2006.



5 poemas de Felipe Pauluk

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Vivian Maier



serpente


o salto secreto da serpente
sobre minha cabeça
& a noite silenciosa
como o cadáver de um gato no acostamento
teus olhos de sereia-pequena
& a boca trêmula em um sono perturbado
deus criou os céus, a terra
a cólera e as despedidas
ao sexto dia foram as despedidas
vou-me como quem volta
esquecendo algo
armando arrependimentos
escovando os ladrilhos da tua alma
volto, quem sabe


-------------------------


bungee jumping
caia sobre minha alma
este sou eu

caia sem teu bungee-jumping
arrebentando na razão
este sou eu

calado aos sábados
um tremor sísmico aos domingos
este sou eu

cais dos erros
pico dos acertos
monge escrivão
planos & contendas
este sou eu

voando seco
baixo e pálido
este sou eu

penas enlaçam meu pescoço
escamas debaixo da unha

este sou eu
caia, simples


-----------------------------




pesado como a crista de um sol novo
leve como um tesouro
plantado em planetas densos
ligo a tv
pipoca de almoço
e sal e colapsos sobre os lábios
um veneno na tua estrada
um veneno no teu copo
nada é para sempre
casca da tinta sou
você devora apenas meu reboco
.
se vá
clinicamente
se vá


--------------------------


artrose

minha estrada papel
minhas faculdades mentais
e dois dedos de gelo
num cronograma hospitalar
governado pelo tapete da sala
e os sustos ao anoitecer
maiúsculas são somente minhas dores
artrose-poemas
esclerose múltipla
nas almas vagas neste meu corpo
quis eu saber dos teus remédios, receitas
para meus climas de solidões
telefones mudos
& contagem de luzes acesas pela cidade


---------------------


chique

limpa as beiras da boca
as pontas dos dedos
e penteia a franja
solidões & orgasmos
são chiques


---------------------


Felipe Pauluk é um curitibano residente em Londrina, jogou na loteria da vida e, numa quina, tirou o menor prêmio, a literatura. Lançou seu primeiro livro, Meu Tempo de Carne e Osso, em 2011. Hit The Road, Jack (romance), em 2012. Em 2015, outro romance, Town. Em 2016 lançou dois livros de poesia, Comida di butequim e Tórax de São Sebastião. Manual Prático de Perna Mecânico para Cantores é o seu mais recente lançamento, pela Bar Editora. Além de escritor, Pauluk também é roteirista e diretor de clipes.

5 poemas de Juliana Otoni

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andar atrás dos velhos 
que têm a sua colônia
ler de cabo a rabo
 
o jornal
 
que traz notícias suas
ir ao restaurante onde você come
feito um animal
olhar os espaços vazios
com sua cara de paz
xingar com seu nome
dizer o que você diria ao ladrão
ao gerente do banco
à menina vesga
ter medo da morte
da vida e
 
do risco metálico que faz o trem
escapar como você
 
inocente
 
de que evito a sombra maior
da sua indiferença
pensar até gastar
em vez de tentar
esquecer.

***

a mulher está mais autorizada a amar o corpo gordo de um homem
que seu próprio corpo gordo.
e a ter uma memória terna daquele corpo
exato
bonito
importante
o corpo gordo que parece morar num mundo diferente
do mundo onde vive o corpo gordo da mulher
o corpo gordo do homem
quer amar
o corpo magro de uma mulher
que ainda não gosta plenamente do seu próprio corpo
mas ama sem ressalvas o corpo gordo do homem.

***

disse o médico que precisa de um pedaço 
do meu corpo.
esse pedaço vai fazer uma viagem
e dizer o que eu tenho.
pouco antes de sentir medo,
lembrei de várias partes minhas
 
que alguém levou
sem nem dizer nada.

o homem de fechar vestidos
o homem toca as costas da mulher ao menor sinal de cotovelos dobrados e
tecidos desunidos
lá vai a
 
mão hábil
o mal hábil
homem lábil
em pelo menos uma janela de cada hotel
 
há um homem a fechar vestidos
com a audácia de deixar um botão
com a certeza de ser útil
 
com vontade de lutar contra o zíper ou reagir ao amanhecer que expulsa a mulher
com a beleza de ser totalmente dispensável para o ato de fechar vestidos

***
gosto das árvores do lugar onde trabalho
bato nelas o ponto da manhã
e aguardo que os galhos encostem nas janelas
hora em que dizem: é fim do dia
queria que você visse como
são gentis comigo as árvores da repartição
dão sombra, filtram luz, suportam
acusam o passante de desviar o olhar
existem de maneira irrevogável
encosto o nó dos dedos em seus troncos 
e dali n
ão sai papel ou dúvida
o que
é bem reconfortante
as folhas tocam delicadamente meu rosto
e lembro de seus cabelos como
mãos quentes a andar na minha pele
todo dia procuro a companhia das árvores
quando saio sonolenta de seus olhos
porões onde se dorme bem






Juliana Otoni nasceu em 8 de abril de 1983. Vive em Brasília (DF). É funcionária pública, psicóloga, mãe da Nina e escreve de dentro de um crocodilo. Publicou em 2018 o livro "Guardar o vão" (edição independente)

Sobre nossas línguas a carne das palavras, por Fernando Andrade

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http://editorapatua.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=461
Beatriz Bajo. Sobre nossas línguas a carne das palavras. Editora Patuá. 2017

Livro de poemas Sobre nossas línguas a carne das palavras ganham corpo, densidades quando compostas no balé do poema.

por Fernando Andrade

Se a grafia de uma palavra fosse um monstro alado ou uma mostra de uma esfera celeste onde criaturas seriam misturas de formas humanas com animais, expressando tanto o desejo de um corpo talvez até não binário contendo o masculino e o feminino. Formas animais são mais soltas quanto à uma estética aérea, polimórfica. O movimento de cada ser, obedece a sua forma no espaço, ao seu desenho no ar e no movimento do espaço onde ele habita. Palavras ganham corpo, densidades, têmperas, quando expressadas no balé de um poema, numa reunião de temas e estilos num congresso de palavras reunidas para conto. O escritor Vitor Ramil expressou esta organicidade espacial das palavras no seu belo A primavera da Pontuação, onde os sinais gráficos como ponto, vírgulas ganhavam uma corporeidade muito típica de uma família envolvida na Primavera de 2013 e suas manifestações políticas pela cidade.

Vejo no livro da poeta Beatriz Bajo, em seu último livro “Sobre nossas línguas a carne das palavras“, (editora Patuá) esta mesma posição icônica com relação ao uso maleável e até dançante do aparato vocabular quando trabalhado em formas artísticas como no teatro, poesia e cinema. Artes que visualizam o corpo grávido-gráfico das palavras naquilo que podem ser sua miscigenação, quando há relações cópulas aglutinações e até antropofagia canibalística. A poeta não expressa em seus poemas algum lugar onde se tematize algo. Toda tapeçaria verbal de Beatriz, passa pela morfologia de certas aliterações e assonâncias que são muito bem exploradas em versos numa mesma linha ou na linha seguinte criando um balé de tornos e contornos musicais e ritmados.

Há também uma procura por palavras que não expressem um uso vocabular tão cotidiano, Clepsidra, interstícios. São morfemas bailarinos, que expressam a função estética da linguagem, colocando a força cognitiva do poema em forma, não passiva, deslocante, afetante. Aqui neste livro a carne não apodrece pelo efeito da leitura deslizante do leitor, que bagunça o próprio sentido e entendimento do que lê. A página: a malha branca do pergaminho vira palco à torvelinhos; quedas de som e mudo sentido do corpo gramático do poema.


Resenha escrita por Fernando Andrade, publicada originalmente por Jean Narciso, na revista digital Literatura & Fechadura - http://www.literaturaefechadura.com.br/2018/07/24/livro-de-poemas-sobre-nossas-linguas-a-carne-das-palavras/

mulheres de Ítaca - poema de Amanda Vital

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“Thesmophoria”, de Francis David Millet



mulheres de Ítaca

as mulheres de Ítaca esperavam pelo belo
veladas aos cuidados dos banhos de azeite

em cada nau rasgando o coração da costa
e no farfalhar das migrações dos pássaros
toda uma década de motivos para esperar

tateavam os seus corpos às possibilidades
invocando as vontades vertidas nas mãos
com a força imantada no cativeiro dos pés

o desejo era libação jorrando das margens
a certa altura incontido, dada sua potência

essas mulheres e seus silêncios absolutos
e suas rotinas ao redor do regresso tardio
adornando a pátria contra o esquecimento

esperavam pelo belo em seu duplo sentido:

a promessa no mar e o destino no Olimpo.


________________
Amanda Vital (Ipatinga/MG, 1995) cursa Letras com ênfase em Estudos Literários na UFMG, em Belo Horizonte, transferida da UFPB. Publicou seu primeiro livro, “Lux”, pela Editora Penalux, em 2015. Entre 2014 e 2016, participou do grupo de declamação Aedos. Posta seus poemas nos blogs “Amanda Vital Poesia” e “Zona da Palavra”, e também produz videopoemas experimentais no Youtube. É colaboradora no conselho editorial da revista Mallarmargens.

Seis poemas de Sílvia Palaia

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Foto: Marial Doval Ballet


A poesia de Silvia Palaia


Silêncios

transbordada de silêncios estico as lembranças e escondo a tristeza embaixo do meu travesseiro bebo o elixir da esperança apanho meu sorriso na gaveta e guardo na bolsa amanheço. seis horas e quatro minutos.

*

Jura de Amor Eterno

prometo me manter descabelada de alegria prometo fingir que você não é a companhia que eu mais gosto prometo fingir que você não me faz falta. prometo não lhe contar que penso em você, antes de dormir prometo não lhe contar que penso em você, antes de acordar prometo enamorar-te enquanto enrolar seus dedos em meus cachos. prometo enamorar-te enquanto coubermos, sem transbordar.

*

O tempo

manter no tempo os sussurros parar o minuto da alegria compartilhada olhar para o ponteiro, do velho relógio da parede, e ser cúmplice do tic-tac silencioso, da madrugada ardente, dos beijos trocados em segredo da noite esquecida. do copo de leite. do pano cobrindo o fogão. do amor desembrulhando. da vida da gente.

*

La Llorona

vem, a porta está aberta vem, a mesa está arrumada: dois pratos. vem, deixei a melhor cadeira pra você. vem, fiz sua comida predileta (sem cebola) vem, o vinho é tinto, encorpado na temperatura que você gosta vem, chavela canta la llorona a voz é grave e melancólica (compramos o cd no méxico, lembra?) a casa azul: quase casamos por lá eram tantas cores... vem, o aroma está ótimo você sentirá do portão: cravo e toque de manjericão vem, o número é o mesmo a senha: abraço assim que o portão abrir já sabes o que fazer em frente: são dezenove passos vem, meu amor, depois a comida esfria a cantora cansa o vinho estraga vem, meu amor a vida não espera.

*

Maio

era noite
num maio qualquer
depois em julho
me alimentou de ternura
acariciou meus talentos
embebedou meus temores
e foi
disse que não cabia nos meus abraços
em julho
me envolveu com seu casaco
de veludo
matou meu frio
e foi
disse que seu tempo era curto
pros meus beijos longos.
meu corpo bastardo
apertado na cama,
do quarto dos fundos,
que me reservara
e minha alma sufocada
pela falta de luz
no corredor de teus olhos.
abri a janela
em setembro
e deixei a primavera entrar
desde então
não cabes no meu quarto
da frente,
nem em minha cama macia
onde deita um coração
encantado
que tem costurado seu sonho
ao meu.

*

Epílogo

I
hoje me olhas
com ar de desprezo
esquece do amor,
esconde o desejo
II
no meio da noite
na mesa de canto
o nosso lugar
te olho de lado
me chama pra perto
me faz suspirar
III
parado no poste
me olhava partir
gritou o meu nome
voltei apressada
é noite, morena
me leva pra casa.
IV
e nas noites sombrias
te espero calada
no sonho te vejo
te toco e te beijo
desperto assustada
e na cama vazia
quem tanto eu queria
não está ao meu lado.





Sílvia Palaiaé meu nome. Tenho 54 anos de intensidade e rebeldia. Sou socióloga e historiadora – com especialização em Historiografia e Cultura. Minha vida quase todo tempo foi pra explicar. Minha fala é minha ferramenta de luta e de amor. Escrevo porque é o que faz sentido na minha vida. É minha outra fala. A da alma em estado bruto. Também sou mãe do Pedro e do André e mulher do Heitor – companheiro da maturidade, da arte e da vida.  



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