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Gueixas de outono no. 5, Kristiane Foltran. |
CONTO N. 5
(JOSETE FILOSOFA)
Josete se tornou uma mocinha. Quase uma velha. Logo completou cinco anos. Eu a levei para ver os monumentos de Paris. Chegamos a NotreDame.
Josete pára diante de um confessionário, encantada. Josete pergunta:
“É um elevador para ir para o céu?”
Papai responde:
“Hum, de certa forma, é.”
Josete pergunta:
“Quem é que vai para o céu? A gente vai para o céu com as nossas roupas?”
Papai responde:
“Não, é somente a alma.”
Josete:
“O que é que é a alma?”
Papai (impaciente).
“A alma, (responde portanto) a alma é você, é a sua mãe, sou eu, mas sem as roupas, sem os braços, sem as pernas, sem o corpo. A alma é você, sou eu.”
Josete:
“Então é o quê? Ela sai pela boca, faz xixi, cocô?”
Papai:
“Não, porque ela não come e não bebe.”
Josete:
“Então como é que é?”
Papai:
“É como um sopro, ela sai do pulmão.”
Josete:
“É como quando a gente tosse, isso dá dor de garganta?”
Papai:
“Não, ela não precisa do pulmão, nem de garganta para respirar, ela nunca tosse”.
Josete:
“Então, como é que é?”
Papai responde cada vez mais embaraçado:
“Ela não tem forma”.
Josete ainda pergunta:
“E isso voa?”
Papai:
“Sim, isso voa, mas isso não tem asas”.
Josete:
“Então me diz, como é que é?”
Papai:
“Não é um pássaro, não é um anjo, não é uma asa, se movimenta como quer e a gente não pode fotografá-la”.
Josete reflete e encontra a explicação que seu pai não pode encontrar. É Josette quem encontra a resposta.
Josete:
“Já sei. É o nada que vê e que entende”.
“É isso” (diz o papai para si mesmo), “é isso que eu responderia para os teólogos e filósofos se me perguntassem o que é a alma. A Josete foi quem me explicou, agora eu sei”. (E papai anota a resposta numa caderneta para não esquecer).
Josete:
“Mas” (refletindo em voz alta).
“Os cachorros e os gatos têm alma?”
Papai:
“Têm, porque nos países que ficam muito distantes, muito distantes daqui, na Coréia por exemplo, se fazem orações pela alma dos animais”.
Josete:
“Então meu cachorrinho tem uma alma?”
“Tem, e as pedras também, e as árvores também, e as flores também”.
(E em seguida Josete pensa em outra coisa)
Papai:
“As pedras (...) são as almas que dormem”.
Josete:
“Têm papais, têm mamães, têm vovôs e têm vovós”.
Papai:
“Têm, mas as criancinhas crescem, os papais e as mamães envelhecem, os vovôs e as vovós morrem”.
Josete:
“Como é que eles morrem?”
Papai:
“Eles adormecem, por muito tempo, muito tempo, eles não vêem mais, eles não sentem mais, eles não entendem mais. E depois, muito depois, muito depois, quando todo mundo já tiver morrido, Jesus Cristo virá acordá-los. Ele acordará também as flores, as árvores e as pedras”.
(Josete não está contente)
Josete:
“Todo mundo vai morrer? Eu pensei que todo mundo seria para sempre criança que não muda, mamães e papais que não mudam, vovôs e vovós que não mudam. Eu pensei que todo mundo fosse sempre papai, mamãe, crianças, e vovôs e vovós para sempre”.
Papai:
“Você também, você também mudou, antes você era bebê, agora você é um pouco maior e depois você será velha”.
Josete:
“Eu vou ficar velha e também vou morrer? Então não vale a pena nascer, já que todo mundo vai morrer. Por que é assim?”
Papai:
“Não sei, porque (depois de uma reflexão madura), porque as pessoas e as flores e as pedras, quando ressuscitarem, serão mais bonitas que antes. É Papai do Céu quem diz isso”.
Josete:
“Ele poderia nos fazer mais bonitos logo”.
Papai:
“Não. É como o pintor que faz primeiro um desenho e depois, após o desenho, um quadro mais bonito que o desenho. É como João, o Seu João, que é escultor, ele faz um rascunho ou então um esboço e depois desse desenho e desse esboço, ele faz uma bela estátua, então eu e você, nós seremos estátuas que se movimentam e que respiram. Agora somos somente desenhos”.
Josete:
“É engraçado tudo isso. No lugar do Papai do Céu, eu já faria todo mundo bonito”.
Papai:
“O que você quer, é assim, é o trabalho do Papai do Céu”.
Josete:
“E os leitõezinhos que têm a cabeça cortada?”
Papai:
“As cabeças serão novamente coladas”.
(Josete caminha, pensativa, segurando a mão de seu papai).
(O papai coloca a mão de Josete no bolso de seu sobretudo).
(E Josete muda seu pensamento de repente).
Josete:
“Papai, o que quer dizer ‘com’”.
Papai:
“‘Com’ quer dizer junto”.
Josete:
“Junto com quem, papai?”
Papai (não sabe dar uma explicação):
“Você perguntará isso à sua mãe. Ela é mais sábia do que eu”.
E, na rua, papai se lembra quando Josete tinha três anos, sua amiguinha, que também se chamava Josette e que também tinha três anos, pressentiu algo com um ar muito altivo, dizendo “meu irmãozinho, você sabe, ele morreu”.
Tivemos, de fato, um vizinhozinho, de um ano, que morreu de meningite, e papai se lembra que Josete se lançou sobre a outra pequena Josete, ela lhe arranhou o rosto e disse furiosa: “Bochechuda, o que é que é a morte?” A bochechuda responde: “Ela está na terra” e Josete disse a Josete: “Não é verdade, você está mentindo”.
Papai relembra isso a Josete. Que se recorda. Aos três anos Josete já estava escandalizada com a morte, que ela acharia absurda, caso ela tivesse conhecido essa morte.
Aliás, como o Louvre não fica longe de NotreDame, papai levou Josete ao Louvre.
Papai:
“É para ver os quadros”.
(Josete sabe o que é um quadro.) (Papai faz muitos deles, estão presos na parede com percevejos, por toda a casa).
(Josete está um pouco cansada).
Josete:
“De lá a gente vai direto para casa”.
Papai:
“No Louvre, eles são muito mais bonitos. São feitos por verdadeiros artistas”.
(Papai e Josete chegam no Louvre) Eles entram. Josete vê uma mulher sem braço, uma mulher com asas e sem cabeça.
Josete:
“Não é uma alma, só a sua cabeça é uma alma, já que a gente não a vê”.
(E depois eles vão de galeria em galeria e vêem quadros e mais quadros e estátuas e Josete não pára de olhar. Papai está cansado. Eles saem do Louvre e papai, que agora tem um emprego melhor, pega um táxi para irem para casa. Chegam em casa).
Papai (para a mamãe):
“Fomos a NotreDame e depois ao museu do Louvre”.
Mamãe (para Josete):
“O que é que você viu no Louvre?”
Josete (resume tudo em três ou quatro palavras):
“Só mulheres nuas e Papai do Céu”.
(Depois para o seu papai)
“Papai, me diz o que é que é um artista?”
Papai:
“Estou cansado, pergunte à sua mamãe”.
Mamãe:
“São pessoas que fazem estátuas e quadros. E os verdadeiros artistas são aqueles que fazem quadros bonitos e os outros, são aqueles que não fazem quadros bonitos”.
Josete:
“Então o papai é um verdadeiro artista, os quadros que ele faz são ainda mais bonitos do que aqueles do Louvre”.
Gueixas de Outono no. 8, Kristiane Foltran.
SOBRE EUGÈNE IONESCO
EugenIonescu (EugèneIonesco, como o conhecemos) nasceu em Slatina, Romênia, em 26 de novembro de 1909 (ele dizia que seu ano de nascimento era 1912, pois queria que pensassem que ele era mais novo. Ionesco criou uma confusão tão grande que até hoje não se sabe ao certo quando ele nasceu). Seu pai era romeno e também se chamava EugenIonescu. Sua mãe, ThérèseIpcar, era francesa. EugèneIonesco teve mais dois irmãos, Marilina e Mircea.
Quando o pequeno Ionesco tinha cerca de dois anos, sua família se mudou para Paris. Depois de cinco anos na França, seu pai voltou sozinho para a Romênia, deixando para trás a mulher e os filhos.
EugèneIonesco teve uma infância difícil. Aos treze anos, ele, sua mãe e irmãos retornaram para a Romênia. Lá, seu pai recuperou a guarda dos filhos, que passaram a viver com ele e a madrasta, que os detestava!
Não demorou muito para EugèneIonesco deixar a casa paterna e se mudar para a casa de uma tia, fazendo, no entanto, as refeições na casa de sua mãe.
Em 1934, Ionesco se formou na faculdade de letras de Bucareste, obteve sua licenciatura em francês. Dois anos depois, casou-se com RodicaBurileanu, uma estudante de filosofia, e em 1938, o casal foi morar em França. Sua única filha, Marie-France, nasceu em Marseille, em 1944.
De 1930 a 1945, Ionesco escreveu, em romeno, vários artigos sobre arte e literatura para diferentes revistas editadas na sua terra natal. Em 1950, sua primeira peça, escrita em francês, “A Cantora Careca” foi encenada. Com “A Cantora Careca”, Ionesco ajudou a inaugurar, com outros dramaturgos da época (o irlandês Samuel Beckett, por exemplo), um gênero teatral chamado “Teatro do Absurdo”.
A obra de Ionesco é imensa. O dramaturgo tornou-se famoso em vida, chegando a ocupar uma cadeira na Academia Francesa de Letras. Foi em Paris, cidade que escolheu para viver, que Ionesco morreu, no ano de 1994.
SOBRE OS CONTOS PARA CRIANÇAS DE EUGÈNE IONESCO
Em 1969, quando já era conhecido internacionalmente, Ionesco escreveu seu primeiro conto para crianças: Conto n. 1. No ano seguinte, escreveu mais três contos: Conto n. 2, Conto n. 3 e Conto n. 4. Seu quinto e último conto foi escrito somente em 1982, a pedido de um seu amigo, Paul Verdier, que tinha acabado de adaptar seus contos para o teatro.
A protagonista de todos esses contos é a menina Josete, personagem inspirada em Marie-France, filha de Ionesco. Josete é uma menina curiosa e seus pais, principalmente seu pai, estimulam a sua curiosidade. O pai de Josete conta estórias para ela, essas não são, porém, estórias comuns. Nas estórias do pai de Josete as palavras ganham vida, criam um mundo novo.
No quinto e último conto, Josete, já uma mocinha de cinco anos, passeia pela cidade de Paris com seu pai. Eles falam sobre religião e arte. Josete ouve atentamente o seu pai, mas parece que é ele quem aprende com a menina. O último conto de Ionesco, que oferecemos aqui, recebeu sub-título, que não tinha no original.
Dirce Waltrick do Amaranteé escritora, ensaísta, tradutora e professora da UFSC. Escreveu livros sobre literatura infantil e juvenil, sobre teatro e sobre a obra de James Joyce. Traduziu obras de James Joyce Joyce, Gertrude Stein e Edward Lear. Colabora em jornais como "O Estado de São Paulo" e "O Globo
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Kristiane Foltran (Curitiba,1978) é artista visual e designer gráfica.Sua trajetória artística conta com mostras em Curitiba, no Instituto de Engenharia do Paraná (PR), Marés (2014)Galeria Portfolio | Biblioteca Pública do Paraná, Gueixas de Outono (2013)Espaço de Arte | Livrarias Curitiba Shopping Estação | Galeria Airez,; Domínio | interferências fotográficas (2013)Pipi Gallery, IN_VERSOS (2012) Espaço de Arte | Livrarias Curitiba Shopping Estação. Em outros estados: Salão Nacional de Fotografia Persio Galembeck (SP), Viva Casa Galeria – Blumenau.Internacionais: IN_VERSOS (2014)Portfolio selecionado na Convocatória do Festival Internacional de Fotografia de Cabo Verde – Cabo Verde, África; Sem fronteiras para sem licença (2014) Galeria Sem Licença - Centro de Arte Contemporáneo CAC – Quito, Equador; Sem licença para liberdade (2012)Galeria sem Licença – Lisboa, Portugal; Imagem da Palavra (2012) – Intervenções de Rua – Lisboa Jardins Fotográficos (2012)– Intervenções de Rua – Lisboa.