A imagem presentificada: brevíssimas considerações sobre a poesia de Herberto Helder à luz de Octavio Paz
por Ana Cristina Joaquim
Octavio Paz, em seu belo ensaio, A imagem, parece nos condenar a uma sentença que aqui ousaremos desafiar (por conta da necessidade própria a qualquer leitura de texto...): nada nos restaria dizer da poesia de Herberto Helder – a não ser dizê-la apenas, transcrevê-la –, se levássemos às últimas consequências a seguinte afirmação: “O sentido da imagem (...) é a própria imagem: não se pode dizer com outras palavras. A imagem explica-se a si mesma. Nada, exceto ela, pode dizer o que quer dizer. Sentido e imagem são a mesma coisa. Um poema não tem mais sentido que as suas imagens.”1 E, mais adiante: “A imagem não é meio; sustentada em si mesma, ela é seu sentido. Nela acaba e nela começa (...) as imagens são irredutíveis a qualquer explicação ou interpretação”2.
No entanto, o desafio que nos colocamos parece ser autorizado pelo próprio poeta, já que, contrariando o impacto provocado, num primeiro momento, pela leitura de seus poemas (impacto que nos levaria a silenciar3) percebemos, num segundo momento, que ele não faz menos que o próprio Octavio Paz, com o agravante de fazê-lo mediante a composição de inesperadas imagens, isto é, sua poesia, ela mesma, atenta para as questões abordadas por Octavio Paz, conduzindo o leitor, durante o movimento da leitura, às mesmas conclusões a que chega Paz, além de atualizar o poder das imagens descrito pelo último. Encarar o desafio é, portanto, participar da reflexão (melhor seria dizer da imagem...) pela qual ambos nos conduzem, mais que pretender uma interpretação das poesias de Helder guiada pela leitura de Octavio Paz.
Há, pelo menos, três grandes questões que saltam à nossa vista em “Lugar”, “Texto 1”, “Texto 2” e em “Texto 3”, que são, justamente, as questões fundadoras (presentificadoras...) da imagem, tal como discorre Octavio Paz. A saber: a evidência da insuficiência da lógica ocidental, a poesia como realidade ela própria (em oposição à ideia de que seria mera representação daquela), e o risco com o qual nos deparamos (leitores e escritores) na constatação do vazio que ela encerra. Ora, esses três temas que elegemos para tratar na poesia de Helder, cada um deles presente no texto de Octavio Paz, não apenas se relacionam entre si, como nos são apresentados de maneira indissociável, caracterizando, deste modo, a imagem poética.
A lógica ocidental, erigida, entre outros, sobre o princípio da não contradição, impõe uma inimizade entre o “isto” e o “aquilo”, entre o “antes” e o “depois”, entre o “aqui” e o “ali”; inimizade da qual não participa a linguagem poética que, ao demolir o edifício cartesiano das ‘idéias claras e distintas’4, possibilita que participemos de uma realidade na qual se dá a eterna conjunção dos contrários: eterna já que não é regida pela sucessão, mas, ao invés disso, é movimento perpétuo, sem começo nem fim, sem intenção nem finalidade. Tal realidade, entretanto, nós habitamos não sem pagar o preço de abdicar desta lógica tão constitutiva do homem ocidental, para que possamos nos deparar, enfim, com o vazio que ela nos oferta.
“Uma noite encontrei uma pedra/ oh pedra pedra!/ (...) como se estivesse morta.” (versos de “Lugar”): não só o princípio de não contradição é demolido (uma vez que não vale mais a oposição mineral-inanimado, ausência de vida/ animal-animado, presença de vida-oposição esta que se confunde com a oposição vida/morte, problemática central no poema em questão), mas somos lançados com tal força para a realidade do poema, que o pressuposto, assimilável pela construção “como se estivesse morta”, é o de que, a pedra vive, embora não pareça (e a vida de que é dotada a pedra nos é apresentada como ideia que beira a obviedade, não há brecha, no poema, para que questionemos o fato de que uma pedra não possa viver pelo fato de ser um mineral). Vive de lado– ora, qual seria o lado de uma pedra, qual seria a frente dela? Estabelecer a posição lateral de uma pedra depende do olhar de quem assim a determina: “Para a tradição oriental a verdade é uma experiência pessoal”5, Octavio Paz elucida; e é essa noção de verdade que permitirá ao poeta a (re)criação de uma realidade – e é um pensamento inocente, encontrado na noite, “alguma coisa dessas coisas da imobilidade”, “uma coisa para se encostar a cabeça, oh não/ para morrer”; versos que podem ser lidos de duas maneiras, a saber: uma coisa para se encostar a cabeça, mas não uma coisa para morrer, ou, uma coisa para se encostar a cabeça – interjeição: “Oh, não!” – e uma coisa para morrer. Modos de leitura não excludentes, já que a disposição dos versos e a ausência de pontuação permitem as duas leituras e, justamente pelo fato de não serem excludentes apontam, novamente, para a demolição do princípio de não contradição. Algo que não andava, que não sangrava, “(...) no meio de um silêncio global”, “encontrei ondas e ondas contra mim, como se eu fosse/ um homem morto entre palavras”: aqui fica claro como a oposição vida e morte, tal como a entendemos tradicionalmente (ou seja, a sucessão da vida que desemboca na morte; condições excludentes: ou a vida, ou a morte...) se desfaz, pois imagens da noite, de uma coisa caída “(...) um pouco metida pela terra dentro”, da imobilidade, do sono, de algo que não sangra, do silêncio, da frieza, estão em referência com a própria morte, que nomeada em diversos momentos do poema e, da maneira como foi colocada, nos lança, contraditoriamente, para a ideia de vida, como aparece em “sou um degrau que eu beijaria, elevando-se da terra (...),/ Alguma coisa subida de raízes mais milagrosas”, ideia que ganha bastante força nos últimos versos: “Somente o meu silêncio pensa/ – Se era uma pedra, um sino. Uma vida verdadeira”. O silêncio, indício de morte, tal como aqui é colocado, se apresenta como único fato capaz de engendrar o pensamento, condição inevitável da vida: conjunção de opostos que culmina com as últimas palavras do poema: “Uma vida verdadeira”. Vida, morte, expressão, silêncio e verdade, eis todas as condições para a presentificação da imagem: a conversão dos opostos em complementares, permitindo assim que o “indizível” seja dito; o silêncio6 como valor – importa lembrar a citação taoista que se encontra no começo do presente texto. Daí, a inevitável recriação da realidade: Helder instaura o Lugar da poesia, o espaço que esta ocupa na humanidade, o que faz dela “um penetrar, um estar ou ser na realidade”7.
Os textos 1 e 3 podem ser definidos como “metapoéticos”, mais que metalinguísticos, já que a poesia se define como (re)criação da realidade, o que fica ainda mais evidente no fato de que, nos textos em questão, Helder não lança mão de comparações: o discurso não é como a insinuação8 de um gesto, como uma temperatura, mas é ele próprio “a insinuação de um gesto uma temperatura”, isto é, o referente não está em relação direta com o mundo quotidiano ou científico, não se restringe a ele, mas assume significação plena na situação poética, depende dela e busca nela, mais que em qualquer outro lugar, a referência que lhe atribui sentido e lhe confere realidade.
O poeta, ao escrever, não é como o bailarino a dançar; a dança não é como a poesia: do modo como ele nos apresenta, trata-se de uma única coisa, trata-se do movimento, da materialidade, do medo. Trata-se de “imagem de respiração/ imagem de digestão/ imagem de dilatação/ imagem de movimentação”; versos que nos remetem imediatamente ao seguinte trecho de A imagem: “Pensar é respirar (...) porque pensamento e vida não são universos separados e sim vasos comunicantes: isto é aquilo”9.
O “Texto 2”, também “metapoético”, apresenta uma novidade em relação aos outros dois: evidencia o processo de constituição da imagem tão enfatizado por Octavio Paz, isto é a propriedade que esta tem (e nisso, talvez, resida o seu maior poder) de revelar a pluralidade de significados das palavras sem que esta pluralidade intervenha numa certa unidade. No entanto, não se trata daquela unidade que busca a ciência: esta, de acordo com Octavio Paz, mutila a multiplicidade característica de todas as coisas, para que seja possível submetê-las a uma mesma abstração, a um conjunto de leis que passam a defini-las, de maneira a reduzir a significação de cada coisa; mas da “unidade sintática da frase ou do conjunto de frases”. E continua: “Cada imagem – ou cada poema composto de imagens – contém muitos significados contrários ou díspares, aos quais abarca ou reconcilia sem suprimi-los.”10. Helder parece estar de acordo tanto com o fato de que a ciência, a lógica ocidental, opera uma redução de significados mediante o seu procedimento de atuação (apoiada, como já dissemos no princípio da não contradição), quanto com o fato de que a imagem poética se constrói trilhando o caminho oposto. Tal concordância se expressa nos seguintes versos: “indagam que ‘acção de surpresa e sacralidade’ (se há)/ o que houver ‘e vê-se pela pressa’ é uma/ espécie de vivacidade ou uma turbulência íntima/ e ao mesmo tempo cautela por serena destreza/ de ‘chamar’ de dentro do pavor e ‘unir’ por cima/ do pavor/ agora estamos a fazer força para afastar o excesso/ de planos multiplicidades antropofagias para os lados todos/ que andam/ ‘procuram um centro?’sim ‘uma razão de razões’/ uma zona suficiente leve fixa como que ‘interminabilidade’”. Ora, esses versos não fazem senão expressar os dois universos que se contrapõe: o racional/científico e o poético: de um lado a intenção unificadora da linguagem científica, de outro a multiplicidade caótica da linguagem poética, sendo que esta última carrega consigo a vantagem de falar, ao mesmo tempo, de pluralidade e de unificação (é tanto turbulência íntima, quanto cautela por serena destreza), justamente pelo fato de dissolver o que aquela considerou como contradição e se sustentar no princípio da assimilação, não no da exclusão. O diálogo promovido não deixa dúvidas: eles indagam, eles procuram um centro, uma razão das razões, um único princípio, ao que Helder responde: uma zona fixa, no entanto, dotada de interminabilidade...
Por fim, vale discorrer brevemente sobre a defesa que Octavio Paz faz da autenticidade da imagem: “O poema nos faz recordar o que esquecemos: o que somos realmente (...) logo que reconquistamos a plenitude [das palavras, elas] readquirem seus significados e valores perdidos. A ambiguidade da imagem não é diversa da ambiguidade da realidade, tal como a apreendemos no momento da percepção: imediata, contraditória, plural e, não obstante, possuidora de um sentido recôndito (...) Portanto, o acordo entre o sujeito e o objeto dá-se com certa plenitude”11.
Mas é “claro que ‘isto’ apavora/ a dança faz parte do medo se assim me posso exprimir”...
Referências bibliográficas
HELDER, Herberto. Ou o poema contínuo. São Paulo: A Girafa, 2006;
PAZ, Octavio. “A imagem” in: Signos em rotação. São Paulo: Perspectiva, 1996.
1 PAZ, Octavio. “A imagem” in: Signos em rotação. São Paulo, Editora Perspectiva: 1996, p.47.
2 Idem, p.48
3 Vale dizer que o silêncio é, também ele, imagem de grande impacto, e imprescindível à linguagem poética, já que, como expresso tão bem pela doutrina taoista: “O valor das palavras reside no sentido que ocultam (grifo nosso). Ora, este sentido não é senão um esforço para alcançar algo que não pode ser alcançado realmente pelas palavras” (Idem, p.43); e mais explicitamente, pelas palavras do próprio Octavio Paz: “Extremos da palavra e palavras extremas, voltadas sobre as suas próprias entranhas, mostrando o reverso da fala: o silêncio e a não significação.” (Idem, p.48-49). O próprio Herberto Helder expõe insistentemente essa noção, e a frequência com a qual o silêncio é mencionado em seus poemas, faz com que este adquira, na sua obra, o estatuto de imagem poética.
4 Cf . PAZ, p.40.
5 Idem, p.43.
6 Vida e morte, palavra e silêncio parecem representar noções equivalentes, tanto quando supomos que a morte implica o silêncio e a vida a palavra, como fizemos anteriormente, como quando expressas por Herberto Helder como ideias que não se opõem entre si.
7 PAZ, Octavio. Op. Cit., p.50.
8 Insinuar: do lat. insinuare“meter no seio”- introduzir fazer penetrar no ânimo, no coração; persuadir (...). (Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa)
9 PAZ, Octavio. Op. Cit., p.42.
10 Idem, p.38.
11 Idem, p.47.
Ana Cristina Joaquim possui graduação em Filosofia (Universidade São judas Tadeu/ 2007) e em Letras (Universidade de São Paulo/ 2009), mestrado em Filosofia (Universidade Estadual de Campinas/ 2011) e atualmente é doutoranda no Programa de Literatura Portuguesa da Universidade de São Paulo.
*seleção: Adriana Zapparoli