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A PROSA INFAME DE CLAUDIA MARTELOTTA

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CARNAVAL

  
O baile ferve de animado. “Vou beijar-te agora, não me leve a mal que hoje é carnaval”, Colombina dança no mezanino do salão e feliz da vida, leva o seu lencinho branco ao nariz e cafunga com vontade. Entorpecida, perde os sentidos e antes de soarem as doze badaladas da doideira, despenca escada abaixo e cai aos pés de uma multidão de Pierrôs, Arlequins e Odaliscas em forma de caleidoscópio. Aos poucos as caras e cores da festa vão entrando em foco. “Um médico”, gritam. De repente surge dos foliões um sujeito com um enorme estetoscópio e outros aparatos cênicos pendurados no jaleco branco e como um bufão, examina Colombina diante da platéia. Ela já não lembra o que aconteceu e se diverte. O doutor encantado surrupia dois copos de uma bandeja que passa. Um brinde. Olho no olho. Bebem numa talagada. Todos suspiram esperando um beijo que acontece ao som de um frevo sensacional.




O PESADELO DE DRUMMOND


            “Há mais coisas entre o céu e a terra do que sonha a vossa vã filosofia”. Certamente essa máxima não passou pela cabeça do incauto que bolou e confeccionou a escultura de bronze, em tamanho natural, que reproduz a figura do poeta Carlos Drummond de Andrade sentado, num dos bancos do calçadão de Copacabana. Como moradora do bairro, passo quase que diariamente por ele e sempre me causa um enorme desconforto. Vejo-o em cada situação que nenhum mortal aguentaria. Invariavelmente, um pensamento mórbido me toma. E se a alma do poeta estiver presa na estátua? Lúcido, como sempre, fica lá sozinho, exposto a chuva, a sol e a companhias indesejáveis.
Aprisionado, sem poder esboçar nenhuma reação, o pobre poeta ganha por dia milhões de beijos melados, para fotos com gente de todas as idades, sexo e etnias. É certo ver Drummond integrando um grupo de turistas ou estudantes com aquela eterna pose encurvada. Sentadinho, olhando pra rua, porque ninguém teve a sensibilidade de colocá-lo olhando pro mar, o que seria bem mais agradável, carros e pessoas entram e saem da sua visão periférica fazendo tempo passar vagarosamente. Isso quando consegue enxergar, porque periodicamente, roubam-lhe os óculos, deixando-o cegueta por um bom tempo.
À noite, a coisa piora um pouco. Não pelos travestis que sentam no colo esfregando a bunda no velho fazendo graça, mas sim pelos aspirantes a poetas que insistem em ler seus versos toscos em voz alta no seu ouvido. Teve um bêbado que, não satisfeito em ler seu poema de vinte páginas com voz ininteligível e arrastada, ainda depois levantou e mijou nas costas do poeta, usando-o de “cabaninha”.
Entra ano e sai ano e está ele lá, levando cascudo de turma de adolescentes: “Aê, Drummond...”, mijadas de cachorros no pé e cantadas de velhas desesperadas. Mas no final, termina sempre sozinho.
Em dias de sol escaldante, comuns no Rio, a temperatura do bronze vai aos píncaros. É a alma presa no inferno. Quem foi que achou que, só porque ia diariamente tomar um solzinho pela manhã, significava que ele queria ficar ali pra sempre? Existem outras estátuas pela orla, mas não em situações tão desconfortáveis. O Ari Barroso desfruta da eternidade sentado, tomando um chope num tradicional bar da boemia carioca. E o Ibrahim Sued? Está lá numa boa sombrinha, na porta do Copacabana Palace, só curtindo o frenesi dos ricos e famosos. Não é justo.
Porém, nada como um dia após o outro e com um morto a ser homenageado no meio. Não é que um belo dia apareceu uma estátua do Dorival Caymmi lá no final da praia, onde ficam os pescadores? Largaram o baiano lá, de pé e ainda por cima, carregando um violão. O que é pior, sem nenhuma identificação. Volta e meia ouve-se alguém perguntando: “Quem é esse aí?”.




MONA LISA & BRAD PITT
  

Incrível essa minha dispersão. Tem dias que escrever alguma coisa é um parto a fórceps. Não sai. As idéias até vêm, mas a preguiça suplanta. Por exemplo, quero escrever sobre a Mona Lisa de Da Vinci e o Brad Pitt, na mesma história. Está tudo na cabeça. Começo meio e fim, só tenho que colocar no papel. Que trabalho isso vai dar! Quantas vezes eu vou escrever e reescrever pra fazer esse link! Vai ser complicado, porque a maneira que imagino não funciona no papel, precisa de adaptação. Fico horas olhando pro monitor sem coragem de começar. O cursor piscando na página branca e me dá um soninho bom. Ó, vida...
O primeiro parágrafo. Falo ou não do Museu do Louvre? Que gastei uma grana preta para ir a Paris, que demorei a vida inteira até aquele momento, para chegar naquela fila enorme, naquele calor azedo. Acho que vou entrar logo no Museu e me perder entre as inúmeras obras e perceber que não dá pra entender tudo num dia só. Vou fingir que entendi porque sei que não vou voltar tão cedo. Isso é muito irrelevante.
Enfim cheguei na sala da famosa Mona Lisa e vi uma tela mínima, com um monte de gente em volta. A vida inteira achei que o quadro era enorme e que aquele olhar enigmático que eu via nos livros iria penetrar a minha alma. Qual o que. É quase dezoito por vinte e quatro. Que decepção. Ainda mais pra mim, que sou míope. Tive que chegar o mais perto possível só para constatar que aquele risinho de canto de boca, na verdade, é um deboche: “Pensou que fosse grande, né? Se fudeu!!”
E o Brad Pitt? O que ele tem com essa história? Deveria dizer que eu sei que sou a mulher da vida dele, mas ele não sabe disso só porque ainda não me conhece? Isso é totalmente relevante.
Os mais espertos certamente já sacaram. O que era meu grande sonho de consumo, deixou de ser rapidinho. Trauma é trauma. Já pensou se eu invisto com vontade, gasto outra grana preta, consigo chegar nele para dar uns pegas e na hora agá, com a mão naquilo e aquilo na mão, ele me dá um risinho de canto de boca bem debochado e me diz: “Pensou que fosse grande, né? Se fudeu!!”





imagens do ensaio fotográfico "a namorada do macaco",
com Claudia Martelotta e o Macaco Taradão



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Claudia Martelotta nasceu no Rio de Janeiro em 1963. É atriz comediante e formada em cinema. Escreve contos eróticos, contos de humor, crônicas e paródias musicais. Nunca recebeu nenhum prêmio, mas pretende correr atrás de um, assim que lançar o seu primeiro livro: Histórias Curtas de Humor, Sexo e Morte. Aguardem...











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