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Channel: mallarmargens
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absolutamente contraindicado

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Carta de esgoto
Inferno, 1º de dezenas de mentiras em esgoto.

Eu vim te dizer uma coisa, meu amor, que não é nada apetitosa, mas não estou absolutamente preocupada com isso. E mais: que quero mesmo é que dê vômito, pois a minha tinta tem a cor do fel. Você até vai ficar impressionado com essa falta de delicadeza, pois eu sempre tão tal e tal. Mas é que, meu bem, você não chegou nem um pouco perto de mim. Que aqui dentro habita um santuário de vãos que nem precisava ser acordado assim. Que há uma desgraça em cada esquina desse corpo e você nem sentiu, ocupado que estava em ouvir os teus próprios demônios. Mas sabe o que é mesmo que me dá essa espécie de indignação com essa espécie de ódio com essa estaca de dor? É saber o quanto pedi, perdi, enfim. Ah, meu bem, se você estivesse em carne e osso aqui agora diria até que minha raiva carcomeria cada grão da sua miséria, tão vasta. Que as traições deveras são bem mais sutis. Pois o que me suja os dentes ultrapassa o dito. Que essa arma toda é pela tua covardia e muito ainda e mais pela mentira, a tua vasta ilusão, a tua quimera, de uma vida que está muito longe de ser sua e de qualquer um que te ouça, que a tua língua não tem um nome próprio, não tem bosque, não tem assento e então quando eu começo a ter pena do seu mundo inventado, amor, eu me lembro de já ter pedido desculpa, eu recordo as milhares e eu sei o quanto a minha memória não chega aos pés da sua e as provavelmente muito mais vezes em que você me fez pensar que eu inventava. Que é essa profissão da ilusão que depositou em mim quando quem tateava o chão era eu, honey, e você me fez achar que eu não via terra e você me fez pensar que era um pobre coitado enquanto e eu posso imaginar o lençol eu posso ouvir o barulho eu posso sentir o cheiro e o problema maior é que eu dormia como se não houvesse enquanto isso. Ainda e depois disso. E nessa hora eu perco a noção dos dentes e das paredes e dos punhos e, querido, é muita sorte mesmo eu estar tão longe assim. Porque ainda não disse tudo. E você disse ainda que sequer me merecia, que eu era essa espécie de muito e baboseira e tal. É que realmente não chegou tão perto assim, eu penso o que pensa agora. Eu te digo ainda mais que é pra curtir um pouco esse couro: que eu te desejo que encontre o dobro. Eu te desejo que rasteje a cara nessa lama toda que despeja fora, que encontre alguém pior e que seja muito. Eu te quero tão mal, amor, que assim que estiver em mim provavelmente me assustarei. Mas agora o que importa é que o que eu sei é suficiente pra saber que isso não é sequer metade do que deve ter sido realmente. Mas o pior mesmo nem é isso que isso é o de menos quando se está cara a cara. Mas a tua máscara, meu bem, me faz sonhar o sangue que ela arrancará. E eu gostaria mesmo de ter ainda menos memória dessa minha espécie de memória que caleja o tempo, dessa memória que é sorrateira e às vezes se esquece do ofício e num repente como se caísse uma fruta ela brota um detalhe que é uma outra peça que se encaixa em outra e, assim, pau-la-ti-na-men-te, essa memória cárcere vai fincando o arame. E é a minha carne, meu bem, que eu agora colho. Esse tesouro todo que foi, amor, a areia que é o gosto que fica da tua boca oca.

Com todo o meu amor et cetera,
Ana.

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