E QUE VENHA A PALAVRA
Que a palavra adentre o verso
em suaves movimentos
sem requintes, nem propósitos
em suaves movimentos
sem requintes, nem propósitos
pura e simplesmente escoe
como a fina areia de uma ampulheta
escorre sutilmente e sem pressa
como a fina areia de uma ampulheta
escorre sutilmente e sem pressa
Que a palavra entre como o vento
pelas frestas da janela entreaberta
e se acomode sobre as mobílias
formando uma fina camada de pó
formando uma fina camada de pó
encontrando seu lugar e seu momento
na casa da memória e do esquecimento
Que a palavra nos tome de surpresa
e se encaixe no quebra-cabeças
Que a palavra nos tome de surpresa
e se encaixe no quebra-cabeças
revelando todos os sentidos ocultos
todos os mistérios do não dito
nesse silêncio que cobre distâncias
todos os mistérios do não dito
nesse silêncio que cobre distâncias
nessa fera que habita o desconhecido
Que a palavra brilhe em súbito reconhecimento
como um eco sempre ouvido mas distante
como tudo que começa sem aviso
como tudo que começa sem aviso
como o amor que de repente chega
sem que sequer se perceba quando
sem que sequer se perceba quando
sem que se saiba onde estava guardado
ESCREVER É PRECISO
No branco do papel a espera muda
num acordo tácito e cerimonioso
Palavras suspensas no vento
em malabarismos de um poeta ensandecido
Escrever versos sem demora é preciso
livrar-se da agonia do silêncio que apavora
Escrever para libertar palavras inexatas
ou quem sabe prenhas de um novo sentido
Escrever para desafiar a métrica
numa lógica enlouquecida que desperta
numa lógica enlouquecida que desperta
numa falta de sentido que reclama
que em versos desconexos se derramem
sentires de dolorosa intensidade
mas o peso das palavras adverte
na falta de tato com o verbo
na ausência do tudo que preenche
na ausência do tudo que preenche
por toda uma vida
ou num breve instante
Enquanto a mão repousa placidamente
e em sua própria inércia adormece
RE-CRIAÇÃO
Des-construir a forma
des-membrar
des-membrar
des-estruturar o verbo
des-ordenar a estrutura
des-mitificar
ir além do provável
ir além do provável
e - assim - instituído o caos
re-modelar
o imponderável
O JOIO DO TRIGO
Há que separar o joio do trigo
Há que separar o joio do trigo
O fruto bom do apodrecido
O supérfluo do necessário
O supérfluo do necessário
O homem honesto do salafrário
Há que separar o direito do avesso
Há que separar o direito do avesso
O ciúme do apreço
A paixão do amor
A honestidade do falso pudor
Há que separar o verdadeiro do falso
O bem calçado do descalço
O real desejo da luxúria
O lado animal da criatura
Há que separar o falso brilhante da joia verdadeira
A sobriedade da bebedeira
O erro do ledo engano
O supostamente sagrado do profano
O supostamente sagrado do profano
Há que separar a liberdade da prisão
A mão direita da contramão
O verdadeiro amor da obsessão
O verdadeiro sim e o disfarce do não
A TECELÃ
Sobre o peito o infinito vago
costurado em linhas finas de seda
Tecelã aprendiz no ofício
com vagar minhas mãos tecem,
fio a fio... cautelosas, mas precisas
Se o ponto erro não desencanto
apenas o desfaço e
novamente busco o passo,
o compasso, o ritmo
Tecendo, tecendo, tecendo
ritmados movimentos
nos pentes do tear
ritmados movimentos
nos pentes do tear
para frente para trás
para frente para trás
A trama da vida nos fios
a teia de ilusões
nas mãos que se entrelaçam
para frente para trás
A trama da vida nos fios
a teia de ilusões
nas mãos que se entrelaçam
ponto a ponto
Com afinco, com dedicação
Construindo a trama como fiandeira,
delicadamente, como se fosse a última
como se fosse apenas a primeira
LONGE DO NINHO
Nasci assim meio sem jeito
anjo torto de asa partida
com uma cicatriz no peito
e o rubor na face tão dorida
Nasci assim barco sem porto
perdida no mundo de ninguém
quase como um natimorto
Nasci assim meio sem jeito
anjo torto de asa partida
com uma cicatriz no peito
e o rubor na face tão dorida
Nasci assim barco sem porto
perdida no mundo de ninguém
quase como um natimorto
estranha criatura de desdém
Ouvidos prontos a ouvir cantigas
Ouvidos prontos a ouvir cantigas
pernas bambas de caminhante incerto
vim assim ao mundo, decerto
para aliviar dores antigas
Braços longos de abraçar distâncias
mãos a estender-se em desvelos
Boca grande com fome e ânsias
buscando atender a meus apelos
Braços longos de abraçar distâncias
mãos a estender-se em desvelos
Boca grande com fome e ânsias
buscando atender a meus apelos
Assim meio pássaro, meio mulher
anseios de voar em mim carrego
não aceito um viver qualquer
de minha vida eu mesma me encarrego
SERÁ AMOR?
Se você vai eu vou
onde você está eu estou
irmãos siameses
corpo e alma
metades unidas
unha e carne
...
...
amar poderia ser
fazer do outro morada
porto de chegada
fim da estrada
...
...
amar poderia ser
deixar de ser um
para transformar-se
num nada
...
amar poderia ser...
mas esse fim não concebe
...
amar poderia ser...
mas esse fim não concebe
a dor de perder-se
abandonar-se no outro
inexistir em si
é pura fábula
...
amar é ser inteiro
...
amar é ser inteiro
foto: Oleg Dou
* * *
Ianê Mello, carioca, é professora, pós-graduada em Pedagogia. Tem textos publicados na sua fanpage no facebook, "Tessituras e Tramas" e em seu blog "Labirintos da Alma". Ela também participa ativamente de Saraus Poéticos no Rio de Janeiro, tais como "Pelada Poética no Leme”, "Corujão da Poesia", "Um Brinde à Poesia de Niterói", “Da Boca Para Fora”, “Identidade Cultural”, “Pizzarau”, dentre outros. Em sua maratona diária, ainda edita e participa de sites e fóruns literários, tendo textos publicados na Comunidade Literária Benfazeja, na Antologia Momento Litero-Cultural, na Revista Zunai e na Revista Biografia. É autora do livro "Tessituras e Tramas" (Verve, 2013).