Como o luar que enleva e inebria
Mas cuja luz teu braço não alcança,
Trazes oculta contigo uma lembrança
Cheia de sonho e de melancolia,
Pois sempre, no desânimo ou na esperança,
Dentro de ti sempre haverá poesia.
Pórtico – Duque Costa
Duque-Costa (1894-1977) foi um dos poetas mais singulares e diferenciados de nossa poesia. Sobrinho do Simbolista Gonzaga Duque, contemporâneo dos pós-simbolistas, utilizava-se do verso livre com uma destreza raramente vista nos poetas da época. Foi, certamente, ao lado do catarinense Ernâni Rosas, dos últimos simbolistas a viverem totalmente absorvidos pelo Ideal da poesia; Duque-Costa jamais publicou um livro em vida, deixando publicados, somente, alguns poemas esparsos em jornais, muitos dos quais famosíssimos em sua época. Somente em 1980, graças aos esforços de seu filho, Paulo Duque, o Livro Poético de Duque-Costa foi publicado, mas seguramente, segundo o próprio organizador, com ausências significativas de textos.
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Na foto: Duque-Costa aos 26 anos e, abaixo, a sua assinatura. Créditos: Site de Antônio Miranda |
Foi o poeta um músico dos versos, acima de qualquer coisa. Independentemente da forma escolhida para o desenvolvimento da obra, o resultado era uma palpitação de sonoridades raras, orquestradas, muitas vezes cromáticas – na sinestesia típica ao estilo -, e que, não raramente, perdeu-se na poesia com a chegada dos tempos contemporâneos. Não à toa, Ramayana de Chavalier, em 1947, num estudo dedicado ao poeta, chamou-o de um “Debussy da poética moderna”. O seu soneto “Cholera Naturae”,conhecido também como “A Tempestade”, é de assustadora musicalidade, de aliterações que consistem na confirmação da ideia de uma procela natural imensurável e incontrolável:
CHOLERA NATURAE - (no Livro Poético de Duque-Costa)
Curtindo a enorme dor de um parto formidando,
trombas estouram, como em ribombos de bumbo;
e as nuvens, colossais dromedários de chumbo,
sinistramente vão passando, vão passando...
Na torva ogiva, a Lua é a sombra de um nelumbo;
revolto, o Mar é um deus fustigado, berrando;
e a noite – templo roto – é o grande caos de quando,
a blasfemar, convulso, em mim mesmo sucumbo!
Ruivo de raiva ao ruir, o raio risca, ronca,
rompe, ricocheteia e, em relâmpagos erra,
e abre brechas e brame e racha a grota bronca.
Lembra campas de bronze, indo aos tombos em pompas;
Roma em ruínas, a arder, e rolando por terra,
num estrondo infernal de petardos e trompas!
Como já mencionado, os versos livres de Duque-Costa são de particular beleza e ritmo. São dele, provavelmente, as mais ousadas tentativas de mudança na formalidade poética antes das ocorridas posteriormente a 1922 – muito mais do que algumas operadas por Gilka Machado e Hermes Fontes, notórios nomes do Simbolismo a adentrar nesse combate. Tomem por exemplo essa espetacular “Rapsódia da Hora Parada”, em que há, em alguns trechos, evidente influência da adjetivação típica de Mallarmé:
RAPSÓDIA DA HORA PARADA -(no Livro Poético de Duque-Costa)
I – Por que, afinal, em mim é muito tarde?!
- É a hora indecisa, de emoção indefinida,
É a hora vazia, lúgubre, parada,
É a hora parada e esquecida no espaço...
“e, ultimamente, eu adormeço
com as mãos cruzadas sobre o peito
como um cadáver;
e as minhas mãos eram cheias de Vida;
e pareciam erguer a taça do Triunfo!
e eu dizia: Evoé!”
É a hora-em-febre, que arde,
Fundida na treva; é a hora estagnada
Nos pântanos e nas pupilas dos suicidas!
- É a hora infecunda da derrota e do fracasso!
III – É a hora infinita das saudades imprevistas
Que soa séculos inteiros...
“... e os adeuses que ficaram esquecidos
nas distâncias?
… e os barcos perdidos, de velas rasgadas,
que não voltaram?
… e os que se foram para longe,
sem que ninguém os recordasse, nunca?...”
…Na indiferença dos maquinistas,
E no silêncio dos faroleiros...
IV – É a hora perdida nos corações sem desejo...
“... e os meus olhos seguiram uma leva
de desterrados que foram morrer num
deserto longínquo, de gelo
lá nas estepes... E o meu olhar, o meu olhar
fundiu-se numa paisagem de neve distante
como o teu corpo... no silêncio distante...”
Que o tempo esfolha num grande, num infinito bocejo...
V – É a hora verde-cólera, que abre,
Como uma névoa de cinabre,
Nos meus pensamentos serenos... serenos...
“ódio que rói, recorda... Os outros
te aniquilaram, te destruíram, e vão
trotando como um tropel de potros
na tua recordação...”
“... A flor de todos os venenos...”
VI - “... em mim é muito tarde!”
É a hora sinistra dos que não sentem mais nada,
Dos que não querem mais nada!
Mais nada!
Mais nada!
“... e aquele chinês, aquele chinês absorto
de cabaré, olhando para o fundo de sua taça
vazia... olhando...
E não sabia se eram as taças que estavam rindo
os risos das mulheres... e nem via
o grande espelho lavrado,
que derramava toda a luz dos candelabros
sobre a sua máscara de cera, e incendiava
os seus anéis...”
O Simbolismo, certamente, desenvolveu muito mais o aspecto erótico em suas páginas do que o Parnasianismo. Não obstante a grande quantidade de autores envolvidos com um conservadorismo religioso, poemas como “Afra, “Lubricidade”, “Dança do Ventre”, de Cruz e Sousa (todos esses em Broquéis), ou a constante volúpia na obra de Gilka Machado, de Onestaldo de Pennafort, e, é claro, na de Augusto dos Anjos, entre outros casos que podem ser citados, dão a ideia da comum utilização (raramente não onírica ou não trágica) dessa temática, mas bem menos enraizada na culpa ou, como Andrade Muricy definiu, na “carne-pela-carne” do Parnasianismo.
Duque-Costa, por sua vez, em muitos poemas, desenvolvia uma percepção erótica que não chegava a ser explícita, mas era evidentemente mais ousada do que o Brasil, ainda plena influência das tradições conservadoras lusitanas, estava acostumado. Vejamos um exemplo:
POEMA EXÓTICO -(no Livro Poético de Duque-Costa)
Andam línguas pelo ar coligando-te; e dedos
trêmulos e macios, em segredos sombrios,
na pelúcia langue do teu corpo exangue!...
Morna, a minha ronda insaciável aumenta,
e, lenta,
lânguida, longa,
elástica, em ondas
redondas,
vai reptando, vai serpeando,
e se estica, e se alonga,
num delírio branco!...
lenta, lânguida,
longa, elástica – serpente
indolente,
lassa, estanguida,
resvala, e vai, voluptuosamente...
…Lambe-te a pele, em flor, arrepia-te os pelos,
queima-te a carne e morde-te os seios
vermelhos,
e cheios,
e se enrola, e te abraça
os tornozelos,
e te enlaça
os joelhos,
o ventre, as mãos, o dorso e tudo
pálpito e desnudo!
Sangra-te a boca, e vai, como uma trepadeira
num arranco,
espiralada no teu corpo branco,
buscando-te os refolhos,
e te algema, e se esgueira,
e sorve todo o olhar dos teus olhos.
E, em recurvos recôncavos, e eróticas
parábolas tetânicas; tortuosas
epiléticas sinuosas,
e corcovas esdrúxulas, exóticas
de plástica,
refranze-se, contorce-se e desliza, e agoniza,
lenta, lânguida, longa, elástica...
…
Andrade Muricy, tanto em seu Panorama do Movimento Simbolista Brasileiroquanto no Prefácio para o Livro Poético de Duque-Costa, chama-nos a atenção para o poema “Legenda da Beleza Nova”. Quando publicado, em 1917, foi amplamente parodiado, principalmente pelo verso “Tua Beleza dói o meu êxtase...”, e acabou deixando a marca de “exótico” e “bizarro” no poeta. O fato é que, apesar de não ser o seu melhor poema, já demonstra a sua espiritualidade verbal em desenvolvimento – e tal evolução ocorreu rapidamente. Se aos 21 anos ele escreveu a “Legenda da Beleza Nova” e o bom soneto “Sombra Ignota”, já aos 26 anos havia escrito a “Rapsódia da Hora Parada”, a “Balada Patética”, o “Elogio Exótico”, entre outros. Ou seja, foi um poeta que, de fato, amadureceu, conseguindo atingir a sua personalidade artística antes dos trinta anos. Eis, enfim, o poema referido por Andrade Muricy:
LEGENDA DA BELEZA NOVA - (no Livro Poético de Duque-Costa)
Para a Regina das Pálidas, cujo olhar de lava,
na estagnação violeta das órbitas-abismos, era
um ritus de encantamento; e cujas mãos foram
plumas, dolorosamente...
Oh! com uma ânfora esguia e langue,
dá-me do glauco mel de aromas esdrúxulos!
Oh! como uma harpa sinistra e flava,
sonorizando sortilégios inéditos.
Oh! como um véu fluido, de flama,
em ritos de escândalo!
Oh! Todo o perfume do Fogo!
Tua Beleza dói o meu êxtase...
Sinto-te, como um sacrílego medo,
Oh! atitude lúbrica de meu tédio!
Oh! estranha volúpia de minha morte!
Sou o Sacerdote que anda a celebrar
tua harmonia nova, em noites verdes...
São nos seus longos poemas, porém, em que residem os grandes encantamentos de sua arte. De um cromatismo rubro, outoniço, e de uma sensibilidade que evoca aqueles morosos e delicados jardins aos poentes frios dos autores belgas, seguiu um caminho de incontido sentimento, de uma nostalgia viva, não obstante pairando a eternidade; não raramente, em seus longos cânticos, atingiu um estado de supra-consciência, por meio do qual a percepção das coisas materiais e imateriais confundiram-se. Nesse sentido é que a sua “Reveria Poética de Inverno” nos encanta e eleva, transformando-se, possivelmente, no melhor poema do autor, e em um dos melhores que o nosso Simbolismo já produziu:
REVERIA POÉTICA DE INVERNO (no Livro Poético de Duque-Costa)
Naquele jardim, absorto... há uma sombra encantada...
O jardim vai adormecendo...
Pelo bordo das alamedas
quedas
caladas, os tinhorões
opulentos, pintalgados,
os tinhorões
lembram pavões,
pavões estranhos... sonhando... narcotizados!...
E o crepúsculo vem, vagaroso, em véus vagos, vagando...
As árvores de exóticas silhuetas
pretas,
as árvores derramam sobre as alamedas
quedas
caladas, longas sombras pasmas
de fantasmas...
E o jardim vai adormecendo, num crepúsculo...
As folhas têm síncopes, num estalido,
num longínquo
ruído
perdido...
as folhas secas, em parábolas, pelo ar!...
… parece um surdo e plácido
plasplaciar
de sandálias
nas alamedas...
E o jardim vai adormecendo, misterioso num crepúsculo violeta...
Um repuxo heráldico murmura uma cantiga antiga;
- Uma pernalta lânguida a esquisita
grita
para o ar
crepuscular,
uma girândola monótona de pérolas
cérulas,
em lágrimas rútilas de ouro
num choro
louro....
E os nenúfares tristemente!
os nenúfares como véus de noivas, desfalecendo
saudades de emoções,
mãos de abandono,
mãos tristemente...
As corolas gélidas, de carnes langues,
exangues
tremem, inflamam-se, num beijo etéreo
de mistério...
E um fluido incandescido,
perdido,
um fluido finíssimo, de alma, se ala,
exala,
e num eflúvio flavo de lua,
flutua...
… Almas nostálgicas de rosas
voluptuosas
melonídeo... almas brumosas,
maceradas
e dolentes
de magnólias eólias...
E na alameda,
na alameda desmaia o beijo de uma pétala...
O crepúsculo desce.
Na ânfora da piscina, olhando o fundo, cisma
um velho fauno de bronze esverdeado...
Quebram-se reflexos de um prisma
de ametista,
uma água estagnada, álgida, lisa, sonolenta
e cinzenta...
E o fauno, olhando o fundo, avista
uma sombra encantada! Olhando o fundo
encantado...
Pelos gradis brônzeos e velhos das paliçadas,
as papoulas, que são bocas de sangue
vivas, túmidas,
deitam hemoptises sobre as calçadas!...
e, num desfalecimento langue,
tristes, dormitam debruçadas
nas folhagens úmidas!...
Sinistra, em forma de espantalho,
cai de um galho,
mole e fria,
a sombra suja
de uma coruja
que grasne e glosa num engulho glótico
a marcha-fúnebre do Dia... e nevrótico.
Naquele jardim absorto... há uma forma encantada...
A última nota vesperal quebra reflexos de um prisma
de ametista
na minha alma... e minha alma que está sepultada
naquele fauno de bronze, que cisma...
Duque-Costa, ao decidir não reunir em livro os seus poemas, correu um desnecessário risco de cair a um injusto esquecimento. Mesmo sendo conhecido nos meios literários cariocas, principalmente por aqueles grupos pós-simbolistas das revistas Fon-Fon e Festa, os seus poucos versos não chegaram aos ouvidos, por exemplo, de Massaud Moisés, autor do História da Literatura Brasileira(com o quarto tomo dedicado ao Simbolismo e à produção literária da Belle Époquebrasileira), que sequer cita o seu nome na obra. Andrade Muricy, ao colocar dezesseis poemas de Duque-Costa no Panorama do Movimento Simbolista Brasileiro, reconheceu a grandeza do poeta.
O autor da “Reveria Poética de Inverno” ainda necessita de um estudo mais profundo que lhe conceba a sua real posição em nossa literatura – que é das mais nobres, sem dúvida alguma -, mas também de uma edição mais recente que contenha toda a sua obra, ainda não publicada por completo, pois é certamente uma das mais revolucionárias e belas de todo o nosso Simbolismo.