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Cadernos bestiais - 6 poemas de Claudio Daniel

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 TEU VERDE

Para Nina Rizzi

Todas as mulheres são tigres desenhados em teus olhos.

* * *

Há um vocabulário do verde,
inumeráveis ecos do teu verde
que se desdobram na noite estrelada:
olhos-pés, olhos-mãos, olhos-boca, olhos-peitos, olhos-nada.
Cada letra de teu nome tem a sua própria cabeleira,
denso alfabeto que incita à iniciação no segredo de teu segredo.
Tua sombra segue minha sombra em cada passo mínimo.

ANÔNIMOS

Há um louco solto na rua.

(Os livros dos uigures foram escritos para serem esquecidos.) 

Um policial pede os seus documentos. 

(Há três ou quatro especialistas em língua suméria.) 

O louco entrega-lhe um tijolo.
 

(Uma tribo na Ásia Central escreve seus livros sagrados nos ventres de mulheres-anãs.)

O policial fica furioso porque queria um sapato.
 

(Um miniaturista persa escreveu um longo poema épico numa pena de faisão.)

Eles começam a discutir e logo aparece uma mulher gorda que entra na confusão. 

(Sobre o que conversam as abelhas?)

O louco declara o seu amor pelos incêndios.
 

(Nuvens serão letras de um alfabeto cabalístico?)

O policial é apaixonado por boxeadores e telepatas.

 
(Os melhores poemas ainda não foram escritos, disse para mim um asceta tuaregue.)

A mulher gorda ataca o louco com a sola de um sapato.
 

(Quem conhece um grande romancista da Lituânia?)

O cinegrafista do Grande Telejornal filma todo o episódio para exibir no horário nobre.
 

(Há indícios de vogais e consoantes em teus pequenos lábios.)

 Logo surgem legiões de publicitários, jornaleiros e vendedores de apólices de seguros e tem início uma pancadaria.
 

(Poucos são capazes de ler as mensagens ocultas no interior das nozes.)


PORQUE VOCÊ É O MEU ANJO

solitários, caminhamos em terra ignorada, espectros de nós mesmos.

há uma letra em cada pétala, mas nenhuma para traduzir estrela.

há uma pétala em cada seio, e um seio em cada lábio que morde cicatrizes.

há uma cicatriz em cada imagem que não cala, em cada memória que recusa o esquecimento.

porém, a delícia de caminharmos, lado a lado, sem destino, nessa terra ignorada, quando lagartos devoram cicatrizes.

e então, mais uma vez, você é para mim um anjo, e eu a sua sombra.


ANTIMÍDIA

Tunisiano de cabeça nervurada assenhora-se
da unha mínima
da história
enfurece letras que são bichos
de um minucioso horror
quando a morte engole manápulas
e adensa paisagens-vértebras
daqueles que não têm nome daqueles que
não têm nome nenhum nada além
de ninguém
tudo é um jogo desjogado de lacraus
letras que são bichos no escuro letras que
são lepras de lorpas no escuro
tateando entre os tufos da fome tateando
entre os húmus da usura tateando entre
assemelhar-se anfíbio
assemelhar-se reptante no asco
da rachadura no asco do desvão
em que se obliteram as anfetaminas
da desmemória
linhas incisivas num crescendo menos o focinho
menos a mandíbula menos as
tíbias esmagadas no
fosso monocromático do não –
há uma caixa torácica que canta
sozinha no deserto de Mojave
onde marines enrabam desvestidas traqueias
antes de matarem qualquer coisa viva – 
dentes-de-leão ressonam numa tarde esfumada de setembro
em que um poeta (tunisiano?) soletra a sub-reptícia
sombra da vivissecção.


CONTRA A ENTRANHA

Contra a entranha —
multiplica o medo
no borrão desfigurado;

unhas enegrecidas,
maxilares arrancados,
miuçalha de carcaças.

Nenhuma língua enterrada
na fossa onde caranguejos
copulam com capulhos;

mistério ou talvez corrosão
de ácidos na decapagem
para a despossessão de tudo.

Retrátil, contra teu sangue,
a exaustão do que esfiapa
o símile do pensamento.

Esta pele, tua pele, nenhuma pele:
tudo é número e o número
é legião; meu nome é legião.


CABEÇA DE NEGRO

Cabeça de negro – não entra –

cabeça de branco –

entra – cabeça de pobre –

não entra – cabeça de nobre –

entra – cabeça de pardo –

não entra – cabeça de podre –

entra – cabeça de cobre –

não entra — nem cabeça,

nem pés, nem mãos,

nem joelhos, nem nada –

não entra, neste passeio;

não entra, neste passado

se é preto ou pardo;

por isso, o poeta contesta, 

por isso o poeta protesta,

por isso o poeta desafia,

por isso o poeta desafina,

se alinha junto a esses e a essas,

por isso, por aquilo, por tudo, por nada.



Claudio Danielé poeta, tradutor, ensaísta e editor da revista Zunái. Doutorando em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP), é curador de Literatura e Poesia no Centro Cultural São Paulo e colunista da revista CULT. Os poemas publicados aqui fazem parte do livro inédito Cadernos bestiais
 


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