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O Simbolismo Invulgar de Alceu Wamosy

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Considerado muitas vezes como autor de somente uma obra relevante para a poesia brasileira, o gaúcho Alceu Wamosy (1895-1923) foi um poeta dos mais sensíveis de nosso Simbolismo. Muitas vezes assemelhando-se às influências francesas de seu conterrâneo Eduardo Guimaraens, foi Wamosy detentor de uma poesia crepuscular, sereno em seus mais belos cantos, e outoniço por essência: o calor não lhe atingia em beleza, mas somente o frio, com a sua atmosfera brumosa, de mistério, que evocava em suas fibras as mais belas canções. Não obstante a sua preferência ao Simbolismo, como bem definiu Massaud Moisés, em sua História da Literatura Brasileira, a poesia de Alceu Wamosy passava longe da metafísica de muitos do movimento. Em fato, a sua poesia cinge o sonho, a perscrutação do Eu, o descortinar das coisas mundanas em clara relação ao ser, quase nunca à busca do infinito e do absoluto, característica quase inevitável em uma poesia simbolista.

Alceu Wamosy aos 18 anos
(Créditos da foto: Wikipédia)
O seu primeiro livro, Flâmulas, publicado em 1913, é claramente influenciado por Cruz e Sousa, mas sem atingir a qualidade poética do último, apesar de certas características já começarem a se mostrar evidentes, como a preferência ao soneto. Somente em Terra Virgem, de 1914, é que o real valor da obra de Wamosy começa a se demonstrar. Sonetos como “Desiludido”, “Cítara” e “O Meu Anjo” já demonstram o grande poeta que estava se desenvolvendo. Em “Desiludo”, a poesia filosófica – não atingindo a mesma profundidade das de Augusto dos Anjos e Raul de Leoni -, segue um pouco do estoicismo muito buscado à época de Alceu:

DESILUDIDO (em Terra Virgem)

Por que te hás de aquecer ao sol dessa esperança
Nova, que despontou na tua alma ingênua e crente?
Se ela é como sorriso em lábio de criança,
Que se há de transformar em pranto, de repente...

A ventura completa é céu que não se alcança,
Mas que a gente vislumbra, além, perpetuamente:
Esse céu mentiroso é um céu que foge e avança
Se é maior ou menor a aspiração da gente.

Sê simples e sê bom, mas não julgues que um dia
Hás de o teu coração, repleto de alegria,
Para sempre fechar como quem fecha um cofre!

Crê que a desilusão é o sonho pelo avesso,
E que só se é feliz dando-se o mesmo apreço
Ao gozo que se goza e à mágoa que se sofre!

Em “Cítara”, a sua poesia simbolista atinge uma percepção temporal sensibilíssima, mas o próprio jogo de sensações, que não chega a ser uma clássica sinestesia, afasta-se da descrição simples do Parnasianismo, mas também daquele imaginismo sensorial transcendente do Simbolismo:

CÍTARA (em Terra Virgem)

Firo-te as cortas, cítara dormente,
Velha cítara poenta, abandonada,
Que um régio artista fez vibrar, pulsada
Pela divina mão, antigamente.

E, assim, por um instante despertada,
Na mesma vibração profunda e ardente
De outrora freme, cítara dolente,
Toda a tua alma, trêmula, acordada.

Nessa maviosa música embebido,
Escuto as notas, múrmuras, chegando
Como um coro celeste ao meu ouvido.

E eu julgo, então, sentir, no derradeiro,
No último som que morre, a alma chorando
Desse que as cordas te tangeu primeiro...

O belíssimo “O Meu Anjo” já nos soa mais clássico, principalmente no que se refere ao sentido que o soneto toma em sua finalização: é o amor que obtém as direções redentoras, em imagens luzentes, evocadoras, e não obstante, de certa inocência. É mais um soneto que mostra o berço Neo-Romântico em que se desenvolveu a poesia simbolista:

O MEU ANJO (em Terra Virgem)

Estende as asas pálpites e mansas,
Brandas, aéreas, tépidas, serenas,
Como um pálio de amor e de esperanças,
Sobre os meus males, sobre as minhas penas!

Desçam eflúvios mágicos, bonanças
Infinitas, etéreas cantilenas,
Num chuveiro de risos de crianças,
E de perfumes castos de açucenas!

Tudo desça, cantando, das tuas asas,
Sobre minha alma cheia de abandono,
Que a orfandade do amor de mágoas junca...

Para eu sonhar na luz em que me abrasas...
Para eu poder dormir um grande sono,
Um sono bom... que não se acabe nunca...

Em Coroa de Sonho, publicado em 1923, ano da morte do autor, é que vemos, enfim, surgir uma precoce maturidade literária em sua poesia. Contando com três partes, o clima penumbrista à Maeterlinck e à Rodenbach (entre outros europeus que acabaram, no Brasil, perdendo espaço para Verlaine, Rimbaud, Mallarmé e Baudelaire, prógono do movimento) revela-se em composições como no soneto “No Parque de Gabriel Volland”, em referência a esse quase agora desconhecido poeta francês. Vejamo-lo:

NO PARQUE DE GABRIEL VOLLAND (no “Jardim Noturno”, de Coroa de Sonho)

A César de castro

Neste enterro do sol, dolente e mesto,
os olhos tristes volvo a ti, que trazes
nas harmonias clássicas do gesto
um perfume cinzento de lilases.

Pelo estranho prestígio que te empresto,
para que assim, de longe, inda me abrases,
vens num resto da tarde, como um resto
de sonho, envolta em música e gazes.

O teu vulto de brumas e de sedas
o coração da tarde todo ensalma,
num simples gesto que tu lhe concedas.

E eu te assisto passar, gloriosa e calma,
na sombra de ouro e azul das alamedas
que os loureiros do sonho me abrem na alma.

A poesia outoniça, saudosa de um cromatismo vivaz, mas por certo crepuscular, vagaroso, fazia-se mais evidente:

EM LILÁS E CINZA (no “Jardim Noturno”, de Coroa de Sonho)

O' mon âme, le soir est grave sur soi-même.
Henry de Régnier


Minha alma, agora, é como uma janela aberta
para o infinito azul de uma hora de saudade:
Todo o langor da tarde em sombra a invade,
enchendo-a de uma luz dúbia, esmaiada, incerta.

Não sei que estranhas mãos erguem véus de abandono,
num divino silêncio, entre minha alma e a vida,
para ela adormecer de distância, esquecida,
como uma flor serrôdia, às carícias do outono.

Para Massaud Moisés, as tentativas de versos polimétricos ou que fugissem de um aspecto mais rígido do engenho de Alceu Wamosy configuraram-se em “imprudências” de “resultados duvidosos”. É evidente que o domínio do soneto pelo autor fazia-o deslizar as suas palavras todo à vontade na formalidade da estrutura, porém, a avaliação de Moisés parece injusta em casos como “Eu e o Outono” e até em “Ofélia”. A estruturação rígida não se fazia necessária nesses casos, pois a criação imagética e musical do poeta acabou se tornando o princípio de sua poesia:

OFÉLIA (no “Jardim Noturno”, de Coroa de Sonho)

A lua,
- a saudade que o sol deixa na alma do espaço, -
pelas águas do lago
vai levando a doidice errante de seu passo,
como uma virgem nua,
delirante, em um sonho arcangélico e vago.

Há camélias de luz florindo entre a água verde-escura.

E como um triste cisne preto,
pela bruma,
passa a visão sonâmbula de Hamleto,
despetalando, uma por uma,
todas as rosas de um jardim de sonho e de loucura...

E em “Eu e o Outono”, o intimismo das paisagens decadentes e tão simbolistas do Rio Grande do Sul surgem-nos, talvez, da mais bela forma que o autor cantou. São versos alexandrinos de uma rara musicalidade, mas com uma quebra deveras curiosa na última estrofe. Note-se a genial sinestesia do sexto terceto:

EU E O OUTONO (em “Sonho de Estação Morta”, na Coroa de Sonho)

Quando, a primeira vez, eu encontrei o outono,
num fim de tarde triste, em um parque fanado,
o céu resplandecia em ouro, como um trono.

Andava pelo espaço um silêncio encantado,
magnífico, oriental, mágico, deslumbrante,
como se fosse a voz calada do passado.

A velha fonte, outrora alva Ninfa cantante,
que um lírio de cristal perenemente erguia
para despetalar em música um instante,

tinha os lábios sem som, de mármore, esse dia.
Tombavam, como pranto, as folhas mortas. Era
um imenso soluço verde de agonia

o parque, na atitude exul de quem espera
um mistério qualquer... Errava em todo o ambiente
a saudade da derradeira primavera.

As violetas, na sombra, iam-se lentamente
esvaindo-se em perfume – ametistas de aroma
que vestiram de luto a alma viúva do poente.

Nessa divina tarde
o outono me cobriu todo de uma redoma...
E eu, desde aí, reflito o outono, eternamente,
como um espelho ideal que um sonho guarde.


Inegavelmente, a obra-prima de Alceu Wamosy é o soneto “Duas Almas”, presente na última parte de Coroa de Sonho. O poeta, quando fora baleado durante a Revolução de 1923, na batalha do Ponche Verde, já era celebre no país por conta dessa obra. O Simbolismo, que se diga, conseguiu compor algumas obras que obtiveram sucesso no país. Por exemplo, “Saudade”, de Da Costa e Silva, foi um dos poemas mais famosos da época; o soneto “Minha Senhora, o Amor...”, de Azevedo Cruz também conseguiu vasta recepção popular, também obtida por Orlando Teixeira, com a fábula “O Sapo e a Estrela”; Edgar Mata e sua “Estalactite” só sobreviveram graças à popularidade que o poemeto atingiu em Minas Gerais. Hermes-Fontes e Gilka Machado, por outro lado, obtiveram fama para além de um poema, sendo realmente considerados os melhores poetas de suas épocas por muitos críticos e leitores (perdurando tal avaliação até os efeitos mais concretos da Semana de 1922, que fizeram com que esses poetas perdessem em popularidade e em hegemonia crítica). E o caso mais evidente: o “Eu”, de Augusto dos Anjos, livro repleto de poemas simbolistas e de um pessimismo voraz, é até hoje um dos mais vendidos do gênero no país.
“Duas Almas” é uma obra-prima porque todas as palavras nele se encaixam perfeitamente, contribuindo para a musicalidade doce, para a visualização clara e para a inquietação magnífica do último terceto. Ei-lo:

DUAS ALMAS (em Coroa de Sonho)

A Coelho da Costa

Ó tu, que vens de longe, ó tu, que vens cansada,
entra, e sob este teto encontrarás carinho:
Eu nunca fui amado, e vivo tão sozinho,
vives sozinha sempre, e nunca foste amada...

A neve anda a branquear, lividamente, a estrada,
e a minha alcova tem a tepidez de um ninho.
Entra, ao menos até que as curvas do caminho
se banhem no esplendor nascente da alvorada.

E amanhã, quando a luz do sol dourar, radiosa,
essa estrada sem fim, deserta, imensa e nua,
podes partir de novo, ó nômade formosa!

Já não serei tão só, nem irás tão sozinha:
Há de ficar comigo uma saudade tua...
Hás de levar contigo uma saudade minha...


A grande injustiça que se faz acerca do nome de Alceu Wamosy, porém, é acerca de “Duas Almas”. O fato dele ter escrito uma obra-prima superior ao resto de sua obra relativamente pequena – afinal, morreu precocemente, em batalha -, não o torna um poeta menor do Simbolismo, muito menos da Literatura brasileira. Ao menos o seu Coroa de Sonhotem de ser colocado como um dos mais belos livros da segunda geração simbolista brasileira (se há alguma referência de data, fico com a de Andrade Muricy, que defende que essa geração é a de poetas nascidos a partir de 1893), inclusive por diferenciar-se de muitos aspectos que se tornaram praticamente tiques dos nefelibatas, mas ainda mantendo-se fiel à estética do mistério. No Rio Grande do Sul, Alceu Wamosy foi evidentemente menor que Eduardo Guimaraens – este, possivelmente, foi o terceiro melhor poeta de nosso Simbolismo -, mas produziu uma poesia simbolista muitas vezes superior àquela belíssima de Filipe d'Oliveira, e inegavelmente superior às de Marcelo Gama, Homero Prates, Zeferino Brasil, entre outros. Portanto, classificá-lo como “poeta de um poema só”, como ainda se faz, não somente é uma injustiça, mas uma avaliação evidentemente errada e diminuta de uma obra de profundas belezas sentimentais, cromáticas e musicais.



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