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6 poemas de Leopoldo Comitti

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Oracle - Oscar Sancho Nin


A Mordida do Cordeiro

1.
Sinto a mordida,
não do lobo,
mas do cordeiro.

Manso e cordato,
abre a boca pequena
como quem afaga,
com os dentes frágeis
e ligeiro recato,
a carne que sangra,
crua.

2.
O pecado não nasce da luta
cativante entre Deus e o Diabo;
mas de longa criatividade
da firme e repetida disputa.

Não há fábula no cotidiano:
horas devoram minutos
numa carnificina eterna.

3.
Lobo e cordeiro andam juntos
no talho aberto da multidão
perene. Anjos! Eis os Demônios,
no avesso dos tempos anônimos
e na pele que sempre muda.

De lã se faz o pelo duro
e nos endurece no esquecido
silêncio da ferida aberta.

Fingimos mal, e o mal nos prende
na voz petrificada sob os muros
respingados de sangue impuro.

Da janela escancarada, um animal
nos espreita, sequioso do bote exato
no momento certo. Espera, e ainda
espera atento. Enfim nos rasga,

silencioso.


Detergente

Vomito-me em palavras escorridas
pelo ralo da pia, em meio à gordura
e ao sabão asséptico do meio-dia.

Meio-dia! Hora dos mortos,
dizem. E talvez seja,
porque as palavras sujas
que descarrego em jorros
igualmente sujos
depositam-se em lápides
quotidianamente limpas.

(Ai! as mãos!
sempre sem luvas!)

Não por lapidares, mas porque
os túmulos reservam para si
a mediocridade das frases mortas,
hoje cobertas pelo musgo e fuligem.

Também pela placa nova
no brilho de bronze

que anuncia outro.
mais outro cadáver,
e ainda mais um
ainda fresco ou quase vivo.

Deixo sumirem as palavras
pelo ralo imundo da pia
porque a piedade se foi.
Restou dela um buraco,
um esgoto sem fundo,
fossa perdida onde as emoções
tornam-se biodegradáveis,
em meio a detergentes caros
e frases cáusticas.


Noite

1.
Eis o verbo que se adjetivou
entre nós. Não há cálice amargo
nos passos das ruas barrentas
do vinho barato do sangue
regado em suor e calafrios.
Paramentados oficiamos
a missa da vida torpe
nas calçadas repisadas,
respingadas de nossa
própria lama, de nosso
pó barato e sempre inerte.
Sem incenso, sem sorte
rendemo-nos à onipotência
da carne e dos rituais mundanos.

2.
Um Cristo de barro tolo
desce a ladeira em procissão.
E vamos em paz:
que os loucos e imbecis
nos acompanhem.


Bibelô

A pétala azul
de porcelana antiga
despencou sobre a mesa
amarela. Inteira e fresca
a dália se mantém

ereta.


Lição de anatomia

As vísceras atentas
se encolhem ao olho meu.
São tantas!
Mas tão suaves!
No amor do corpo
tão leves se agitam.
Em cabeça, tronco e membros,
a vontade é quem se estira.


Cardápio

Vermelho de carne crua
meu dedo sangra em palavras
velhas. Calejada, a mão
ainda escreve sobre a linha.
Late um cão na rua, lateja
a carne. Sofreria não fosse

o tempero que arde sensual
na boca agora meio aberta;
de voz deserta; de sensação
sobeja. E a vida come-se
pelo rabo e defeca ainda
mais vida sobre a ladeira
da manhã que nasce inútil.
Pimenta, sal, talvez salsa
constroem rosbife nosso
de cada e todo e mesmo dia.


Os poemas fazem parte do livro A Mordida do Cordeiro a ser lançado brevemente pela Editora Patuá. Seleção de Jandira Zanchi.



Leopoldo Comitti nasceu em Rio Negro – PR, em 03 de abril de 1956. Cursou Letras (UFPR), Especialização em Literatura Brasileira (UFPR), Mestrado em Literatura Brasileira (UFMG), Doutorado em Literatura Comparada (UFMG) e Pós-Doutorado em Comparada (UFF). Em Curitiba, foi um dos fundadores da Coo-editora, pela qual publicou Jornada (contos), e As manhas da Filó (Infantil). Foi Professor Adjunto da universidade Federal de Ouro Preto, onde, além das atividades de ensino e pesquisa, também se dedicava formal e informalmente a oficinas de criação poética. Lá publicou Fundo Falso, sou primeiro livro de poemas. Obteve uma Bolsa de Escritores da Biblioteca Nacional, em 1999, na categoria de Poesia, com Por Mares Navegados. Foi também premiado, na mesma categoria, no IV Festival universitário de Literatura, com Jardim Inóspito. Em 2012, publicou O Menino Debaixo da Mesa (poemas), e Natureza Morta (romance). Além da produção poética, possui dois livros de ensaios, e extensa produção de artigos publicados em revistas especializadas. Em breve lançará o livro de poemas A Mordida do Cordeiro, pela Editora Patuá.




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