Onestaldo de Pennafort (1902-1987) configura-se em um clássico caso em que, apesar da convivência com os Modernistas e crescimento intelectual e artístico concomitante aos deságues da Semana de 1922, pouco se deixou afetar por modismos, criando uma poética própria, “longe da fanfarra e das estrepitosas recompensas imaginárias”, como Lêdo Ivo dissera. Onestaldo foi, sem dúvida, um poeta completo: desenvolveu as várias formas de soneto, o verso livre, a assonância, o poema sintético e, se não bastasse, foi um exímio tradutor de Verlaine, Baudelaire, Shakespeare, entre outros. Viveu o período do Modernismo, Concretismo, Poética Práxis – e o que mais se experimentou à época – como um exilado em seus “jardins de nostalgia”, muito parecidos com os de Eduardo Guimaraens, outro simbolista que, independentemente das formas que tomassem seus versos, cantava, sobretudo, a Saudade, o Amor e a Beleza.
Em muitos trechos da obra de Onestaldo parecemos ler um prolongamento da ideia deMon Rêve Familier, de Verlaine, ou até mesmo de Oaristos, do português Eugênio de Castro. Mas muito além desse amor ideal, a volúpia foi uma grande presença na poesia de Onestaldo. Talvez, dos últimos simbolistas foi um dos menos fúnebres um dos mais românticos – mas a sua percepção do que era finito beirava a genialidade, como vemos neste soneto estrambótico:
SONETO XV (em Interior)
Sob o consentimento das estrelas,
nós dois, repletos do silêncio antigo
que os que vivem a amar trazem consigo,
nos amaremos ternamente, pelas
noites de calma e de luar profundo
em que as almas, dos olhos que se abordam,
em gotas de água trêmula transbordam,
como a água que enche o olhar do lago fundo...
E se um dia sentirmos que se finda
o amor, mais triste do que a morte, ainda
tentaremos uma última ternura
para que o nosso amor morra a viver,
como uma nota de órgão que perdura,
como as chamas sonâmbulas que acordam
e ardem mais alto, no ar, para morrer...
Os versos soltos de Onestaldo eram musicalíssimos e não raramente continham rimas esparsas. Por meio deles, inclusive, foi que o poeta desenvolveu grande parte de seu trabalho com as assonâncias, desenvolvendo ainda mais tal verso, já trabalhado, no Simbolismo, entre outros, por Guerra Duval, Hermes Fontes, Da Costa e Silva e, principalmente, Gilka Machado. Vejamos um exemplo:
SILÊNCIO – CANTO III (em Perfume e outros poemas)
Palavras e palavras e palavras...
Algumas, sem sentido, sem razão
de ser; outras, alucinadas como as lavas
de um vulcão...
Mas sempre as mesmas... palavras...
(Escuta o meu silêncio...)
A poesia de Onestaldo cingiu aquela decadência dos primeiros Simbolistas somente em espírito – naquela doce melancolia e mistério de fim de século que se mantinham vivos na alma de Pennafort -, pois em sua obra não se via a apocalíptica luz de Cruz e Sousa, a funesta obsessão de Alphonsus de Guimaraens, a ânsia intérmina de fim de Emiliano Perneta, ou o misticismo de Dario Vellozo, por exemplo. Sobretudo – e principalmente na primeira fase de sua obra -, em Onestaldo, a nostalgia do amor e do sonho se sobrepunham a qualquer tópica:
CANTO I (em Interior)
Sob o céu tão azul que se espiritualiza,
o jardim vai fechar as pétalas das rosas
como alguém que cerrasse as pálpebras medrosas
para ver o que só no sonho se divisa.
Tudo adormece em torno... E a paisagem, mais lisa
que um esmalte, desfaz-se em sombras vaporosas...
Nascem apenas no ar, vêm das moitas cheirosas
arabescos de sons de flauta, pela brisa...
A sombra desce e abranda as cores... E do luxo
do jardim silencioso, onde as luzes se enfeixam,
subsiste só o esguicho esvelto do repuxo.
E, sob o céu que foge em tons de anoitecer,
fecham-se as flores, como os olhos que se fecham
para ver o que só no sonho podem ver.
Pennafort, apesar de não ter ligação com algumas das tópicas mais radicais ao Simbolismo, escreveu um dos sonetos que, sem dúvida alguma, pode ser posto como um dos melhores da escola – e, que se diga, trata de um dos temas mais clássicos ao Simbolismo: a peregrinação espiritual feita por um cavaleiro. Vejamo-lo:
CAVALEIRO ANDANTE (emEscombros Floridos)
Se vais em busca da Fortuna, para:
nem dês um passo de onde estás... Mais certo
é que ela venha ter ao teu deserto,
que vás achá-la em sua verde seara.
Se em busca mais do Amor, volta e repara
como é enganoso aquele céu aberto:
mais longe está, quando mais parece perto,
e faz a noite da manhã mais clara.
Deixa a Fortuna, que te está distante,
e deixa o Amor, que teu olhar persegue
como perdido pássaro sem ninho.
Mas, ó sombrio cavaleiro andante,
se vais em busca da Tristeza, segue,
que hás de encontrá-la pelo teu caminho!
Que se faça aqui um comentário: na poesia portuguesa, em que Onestaldo teve grande influência, é que se encontra muita matéria sobre poesia cavaleiresca. A aproximação com os Simbolistas se deve, em muito, à fixação com temas medievais e à influência de Antero de Quental em nossos escritores. Entre os vários poemas sobre cavaleiros andantes, há “Os Vencidos”, de curiosa feição decadente. Alphonsus de Guimaraens – cuja poesia esbanjava influências lusitanas -, foi um dos que mais desenvolveu o tema.
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Onestaldo de Pennafort: simplicidade oposta ao dandismo de sua juventude. Créditos: Peregrina Cultural |
Ainda acerca dos temas mais clássicos ao Simbolismo, os “jardins da nostalgia” - em que os símbolos ganhavam uma conotação atemporal, num grande exílio espiritual do externo de Onestaldo foram constantes (e, apesar de tudo, não sendo tão radical quanto uma torre-de-marfim). Muito comuns à poesia simbolista gaúcha – influenciada pelo Simbolismo belga e francês -, teve em Onestaldo um consciente representante; o também carioca Duque-Costa reviveu espetacularmente o tema em sua “Reveria Poética de Inverno”. Eis aqui um soneto que exemplifica bem o estilo:
HORA AZUL (em Perfume e outros poemas)
Hora azul. No parque, o ocaso
tem sugestões de pintura.
Crescem as sombras e a alvura
dos cisnes, no tanque raso.
O velho jardim de luxo
parece um vaso de aromas.
Harmonias policromas
sobem da água no repuxo.
A tarde cai dos espaços
como uma flor, a um arranco
do vento, cai aos pedaços.
E a noite vem... No jardim,
o luar, como um pavão branco,
abre a cauda de marfim.
Tradutor de Verlaine, Baudelaire, Théophile Gautier, Shakespeare, entre outros, o seu Sob a Vinha Alheia, de traduções feitas entre 1925 e 1931 obteve bastante sucesso. Foi, ao lado de Guilherme de Almeida, o melhor tradutor dos decadentistas franceses que já tivemos - e o que mais compreendeu aquele idioma. Transcrevo a sua tradução para "O Albatroz", de Baudelaire:
O ALBATROZ (em Sob a Vinha Alheia) - Charles Baudelaire
Às vezes, em recreio, os homens da equipagem
pegam um albatroz, enorme ave marinha
que segue, companheiro de viagem,
o navio que sobre o agro abismo caminha.
Mal no convés se vê, todo desconjuntado,
logo esse rei do azul, em passos desiguais,
como dois remos, põe-se a arrastar a seu lado,
desajeitadamente, as asas colossais.
Esse alado viajor, como é grotesco andando!
Inerme, o que antes no alto era a esbelteza brava!
Um chega-lhe o cachimbo ao bico, e outro, coxeando,
arremeda no andar o pobre que voava!
O poeta é o albatroz que nas nuvens se espraia,
que afronta a tempestade e ri das setas no mar;
exilado no solo, em meio ao riso e à vaia,
suas asas de gigante impedem-no de andar.
Dos vários gêneros trabalhados por Pennafort, os poemas sintéticos configuraram-se como uma espécie de confessório sugestivo mais breve do que a já curta estrutura do soneto. Desde o seu Perfume e Outros Poemas (1924) a presença desse gênero é constante, desaguando em um livro dedicado somente a ele: o belíssimo Nuvens da Tarde, de 1978. Não me recordo de algum poeta simbolista ou pós-simbolista ter trabalhado tão bem com quatro, cinco versos, no limite oito versos; Eduardo Guimaraens escreveu belas peças, como “Concha”, “Noturnino” e “Inocência”; Alphonsus de Guimaraens trabalhou com o estilo em Pastoral aos Crentes do Amor e da Morte, publicado em 1923, mas sem o mesmo êxito; Edgar Mata, com a sua “Estalactite” e seu “Lembro-me desse misterioso poente...” - poemas de oito versos – teve considerável sucesso no gênero; Da Costa e Silva, em sua fase derradeira, em que esbanjava um domínio absoluto do engenho da escrita, os poemas sintéticos tinham uma beleza espiritual e dolente, como em “As Horas” e “Síntese”. Mas Pennafort foi um mestre nesse estilo – e exatamente mestre na perfeita definição de Fernando Pessoa: porque tinha o que ensinar. E o que ensinou, para além das técnicas poéticas e rimas renovadas, foi que a serenidade alheia aos alardes sociais do tempo não significa frieza ou modos aristocráticos, sendo, em realidade, o mais profundo nível de confissão do ser consigo mesmo: todos nós morreremos, e a única eternidade é a arte:
POEMA V (em Nuvens da Tarde)
Basta que a sombra desça e o silêncio de faça,
para que tudo assuma as proporções, a graça,
o espírito, a cadência, a estranha realidade
das cousas de arte, mais reais do que a verdade.
A poesia de Pennafort beirava, muitas vezes, a pura eterealidade, numa união do ser com o universo que o cerca:
POEMA II (em Nuvens da Tarde)
Nuvens que ides vogando pelo espaço
- tão alto quanto o meu mais alto sonho -
também eu de vapores me componho
e, igual a vós, em água me desfaço.
Mas, para o poeta, pouco importava se o que se observava era o céu ou a terra, uma nuvem ou uma árvore, não porque tinham o mesmo valor, mas porque o céu, em sua essência de Beleza, vivia conosco no mundo:
INSCRIÇÃO (em Espelho d'Água)
A beleza do céu anda na terra....
No silêncio das árvores verdes,
no luxo
dos jardins de sombras onde passeiam
as aves ilustres
em torno aos lagos, que são taças de luar...
A beleza do céu anda na terra...
A percepção de contemporaneidade em sua poesia é evidente também. Morador do Rio de Janeiro, portanto, convivente do caos urbano que se instalou nas grandes cidades brasileiras a partir da década de 1950, como não concordar com esses versos?
POEMA XLVI (em Nuvens da Tarde)
Eu irei pelas ruas ignorado,
simples transeunte entre outros, meus iguais.
Depois o dia será bem chegado
em que eu serei um nome – nada mais.
Mas sempre exilava-se em seu amor o poeta. Se em sua juventude assim falou, ternamente, como em um diálogo silencioso entre almas amantes que querem adorar-se na quietude do prazer,
NOTURNO IV (em Perfume)
A noite é um lago
de água azul, de reflexo vago...
onde as estrelas são lótus
imotos,
ignotos...
(O silêncio, para falar
aos teus olhos, vestiu-se de luar.)
em sua maturidade, cantou desta maneira:
POEMA XXXVI (em Nuvens da Tarde)
São formas do meu pensamento
os teus gestos e o teu andar.
Às vezes os ponho nas voltas do vento
e outras vezes na ondulação do mar...
Mais evidentemente simbolista, com a utilização de aliterações e sinestesia, esse “Cítara” (não nomeado assim em Nuvens da Tarde) foi um dos escolhidos por Andrade Muricy para configurar em seu Panorama do Movimento Simbolista Brasileiro:
POEMA III (em Nuvens da Tarde)
Soa o silêncio a apagam-se os ruídos.
Só de uma rosa o aroma, de repente,
na sombra, como em cítara dolente,
dedilha o dédalo dos dias idos.
Onestaldo de Pennafort foi, sem razão para incertezas, um dos melhores poetas de sua geração. Respeitado pelos Modernistas e Simbolistas e por outros que se sucederam, seguiu um caminho próprio, cheio de ecos de Baudelaire, Verlaine e das canções Portuguesas – como vemos em Romanceiro d'Além Mar. O fato dele ter se mantido fiel ao seu estilo poético do início ao fim, sem ceder à propaganda facilitada das vanguardas da moda, só comprova que ele foi verdadeiramente artista e, como defendi, um mestre em sua poesia e um devoto da ideia de que a eternidade, em terra, só vem por meio da mais sincera e confessa arte... ou como ele próprio cantou:
Ouve: só este postulado é eterno:
mais do que o dia, a noite invade as vidas,
no silêncio, de que, como de um poço velho,
sobem murmurações de aras partidas.
(POEMA XLV, em Nuvens da Tarde)