Considerado um dos principais poetas da Belle Époque brasileira, o piauense Da Costa e Silva (1885-1950), participante da escola simbolista em grande parte de sua vida, teve, na mais importante obra sobre o Simbolismo – o Panorama do Movimento Simbolista Brasileiro, de Andrade Muricy(1895-1984) -, a sua importância e longevidade no movimento diminuída, resumindo-se ao Sangue, de 1908, quando ainda a produção ortodoxa da escola estava em alta. Ao mesmo tempo em que os argumentos de Muricy são inegáveis para Zodíaco (1917) e Verhaeren (1917), pois estes são evidentemente neo-parnasianos, os seguintes livros de Da Costa e Silva esbanjam um simbolismo filosófico, estilo que, por exemplo, foi a tendência das obras derradeiras de Cruz e Sousa e, quando não raramente, do sergipano Hermes-Fontes e do carioca Raul de Leoni.
![]() |
Foto: Da Costa e Silva, em 1929 (Créditos: Portal Somos Notícia) |
Andrade Muricy, na seção dedicada a Da Costa e Silva, assim definiu a fase posterior ao Sangueda poesia do piauense: “O seu segundo livro, Zodíaco, demarcava visível tendência para o Parnasianismo, que o feitio verhaereniano do poema Verhaeren, do mesmo ano, parecia desmentir, mas que se acusou ainda mais em Pandora e Verônica, onde a sua poesia tomou uma objetividade um pouco fria, apesar da brilhante virtuosidade e do seguro senso construtivo do poeta.” As críticas contemporâneas beiram uma maior radicalidade: Oswaldino Marques, no prefácio das Poesias Completasdo autor (pela Editora Nova Fronteira), chegou a escrever que não encontra “em nenhuma de suas páginas um genuíno poema dessa corrente (simbolista)”, talvez excluindo o fato de que, em Sangue, há verdadeiros clássicos da primeira fase do movimento, como “Madrigal de um Louco”, além de poemas que, do nome ao desenvolvimento, esbanjam características simbolistas, como o soneto “Turris Lucifera”.
Diante do exposto, proponho uma visão diferente: a de um Da Costa e Silva renovador de sua poética e da própria estética simbolista, atingindo – quando a sua poética alcançou o sumo, em Verônica e Pandora– o pós-simbolismo, em um equilíbrio entre as temáticas do Simbolismo e o citado “senso construtivo do poeta”, que é inegável.
Em Pandora (1919) – livro que tem como epígrafe um quarteto de Rubén Darío, simbolista da Nicarágua -, há uma série de sonetos sob o título de “Poema dos Olhos”. São obras que fogem totalmente do descritivismo parnasiano ou de uma suposta frieza objetivista, referida por Andrade Muricy, sendo, na verdade, uma formidável construção de símbolos por intermédio de um signo maior e coordenador. Vejamos dois dos cinco sonetos:
POEMA DOS OLHOS (em Pandora)
III
Olhos que não sois nem amarelos nem pardos,
Olhos de estranha cor em laivos vespertinos,
Com a indecisa visão dos olhos dos felinos:
O ambíguo olhar dos leões, dos tigres e leopardos;
Olhos de âmbar, sensuais nos movimentos tardos,
Cheios de seduções e brilhos assassinos;
Olhos de onde, a alvejar sobre os nossos destinos,
Despede o deus Amos seus venenosos dardos;
Olhos fulvos de lince, olhos vagos e estranhos,
Indecisos na cor, porque não são nem gázeos,
Nem verdes, nem azuis, nem negros, nem castanhos;
Olhos para temer, porque, através dos cílios,
Ocultais, sabe deus! Nesses imóveis topázios,
Sanguinárias paixões e trágicos idílios.
V
Olhos de noite hiemal, olhos de céu sombrio,
Fascinantes faróis, negros, dúbios e vagos,
Que ao destino me sois como a estrela dos Magos
Na noturna extensão do horizonte vazio;
Olhos, a cuja luz a alma treme de frio,
Em desejos febris e receios pressagos;
Olhos de placidez sonâmbula dos lagos,
Povoados de visões como um profundo rio;
Olhos negros, com a luz dos espelhos sem lustre,
Cada um a recordar um pântano palustre,
Num funesto condão que não há quem no quebre;
Por vos fitar, talvez, lindos olhos tristonhos,
Vago, cego de amor, pelo mundo dos sonhos,
Tiritando de frio, abrasado de febre...
Apesar de uma construção clássica – alexandrinos e uma chave-de-ouro destacada -, o poema não pode ser classificado como parnasiano. A insistência no vocábulo “olhos” - inclusive essa fixação, que foi tão comum aos simbolistas – cria uma sonoridade alheia à retilínea música parnasiana; lembra-me mais o belo “Olhos”, de Alphonsus de Guimaraens, com a evidente exceção da forma, já que o poema do mineiro é uma série de quartetos. Da Pandorade Da Costa e Silva, posso destacar também os três sonetos de “Sugestões do Poente”. Vejamo-los:
SUGESTÕES DO POENTE (em Pandora)
I
Poentes! Quanta tristeza há no céu ao Sol-Posto!
A tristeza do céu se concentra no mar...
Ave, Maria! Unção de esperança ao desgosto
Dos que vão pela Vida a sofrer e a esperar...
Poentes de ouro! Evocais Nosso Senhor exposto
Na custódia do sol, à luz crepuscular!
Poentes de sangue! Em vós deixou Jesus o rosto
Na verônica azul, num símbolo solar...
Poentes no mar! Em vós, como em delírio, avisto
Moisés no Mar Vermelho os vagalhões a abrir...
O mar reverberando à passagem de Cristo...
Poentes! Naus de Nadir! Galeras do Porvir!...
Esquadra em Siracusa, ante o incêndio imprevisto...
Frota de Salomão em demanda de Ofir!
II
Poentes! Que sugestões à hora do entardecer,
Quando em místico enlevo o olhar longe acompanha
O áureo disco do sol, aureolando a montanha,
Que, nimbada de luz, fica a resplandecer...
Poentes! Púrpuras, ouro e pedraria a arder,
Como me deslumbrais na vossa pompa estranha!
Vossa fascinação no meu ser é tamanha,
Que atônito me deixa, a cismar sem querer...
Poentes! Eternizais a beleza tristonha,
Jardins suspensos de Nabucodonosor,
Florindo em íris sob o céu da Babilônia!...
Poentes sobre a montanha! Ante o vosso esplendor,
Nos êxtases da Fé, meu espírito sonha
Com a transfiguração de Jesus no Tabor!
III
Poentes no campo! O céu pelo ocaso, ao declínio
Do sol, que sugestões fantásticas nos dá!
Sobre a paisagem verde, o horizonte sanguíneo
Lembra as sarças de fogo ao verbo de Jeová...
Poentes de ouro, num céu de cobalto e alumínio,
Evocais Salomão, que ora aguardando está,
Sobre a púrpura em luz de radioso triclínio,
A Noite – a negra e astral rainha de Sabá.
Poentes! Simbolizais, num mito estranho ou errôneo,
O almo trigo do Bem no campo azul da Fé,
O ígneo joio do Mal nas ceifas do Demônio...
Poentes rurais dourando as árvores, como é
Que a tarde está tão linda e tão triste o campônio,
Poentes da compunção do Angelus de Millet!
![]() |
The Angelus (1859), de Jean-François Millet Créditos: All Paintings |
Nesses interessantes sonetos, claramente palpita a influência católica que foi tão comum a um considerável grupo de simbolistas. Não é um catolicismo bilaquiano – cheio de culpas e remorsos -, mas é de uma sugestividade e grandiloquência visual, em que trechos bíblicos dialogam com essa descrição tátil do poente - “ouro e pedraria a arder”. Salomão, personagem várias vezes retrabalhado pelo simbolismo no mundo, é referido no soneto terceiro; a imagem, aliás, no mesmo soneto, em que a “Noite” transfigura-se para “a negra e astral rainha de Sabá”, é uma das mais místicas e belas da época. O referido “Angelus”, de Jean-François Millet (da francesa Escola Barbizon) dá, além de um aprofundamento da coloração do poema, uma ambiguidade estética, já que Millet foi um Pós-Romântico, supostamente Realista, mas nunca atingindo, de fato, aquela frieza expressiva imersa na suposta grandiosidade da natureza e do homem per se do Realismo.
Em Pandora, ainda há outras manifestações evidentemente pós-simbolistas, seja neste terceto do soneto primeiro do Símbolo:
No seu dorso febril mundos e céus transponho;
Que esse alado corcel sem rumo é o Pensamento,
- O hipogrifo imortal, o Pégaso do Sonho!
Ou no terceto final terceiro soneto de o “Eterno Símbolo”:
Tempo! Força Imortal do Bem nascida!
Crisol da Perfeição que, em forma e essência,
Apura, em sete círculos, a Vida!
Todos esses temas – o Tempo, o Sonho, o Pensamento - foram desenvolvidos, da particular forma de cada poeta, pelos Simbolistas. Apesar da poesia de Da Costa e Silva focar, não raramente, em um aspecto filosófico ao modo de Antero de Quental, beirando a mais profunda perscrutação metafísica do ser, claramente atingiu uma percepção pessoal – quando não social – de questionamento filosófico e poético. Mas tudo, basicamente, sob influências claras da poesia simbolista, em cuja estética – vista de forma evidente em seu primeiro e belíssimo livro, Sangue - desenvolveu o seu berço intelectual e artístico.
Da Costa e Silva, em seu Verônica (1927), atingiu, sem dúvida alguma, o ápice de sua criação poética. Dividido em duas partes - “Imagens da Vida e do Sonho” e “Imagens do Amor e da Morte” -, é com certeza uma das melhores obras da poesia brasileira, e sem dúvida alguma do pós-simbolismo. E eis que esse ponto se faz claro: se o poeta piauiense desenvolveu, em sua estreia, um livro de um Simbolismo sombrio, ortodoxo, partindo depois para um descritivismo da natureza aos moldes parnasianos, foi, pouco a pouco, renovando o seu estro, atingindo, por fim, em Verônica, um Simbolismo renovado, personalíssimo, de ritmo clássico nos sonetos, mas não raramente utilizando-se das assonâncias e dos versos e soltos em formas mais livres. Da Costa e Silva foi um renovador do estilo. Vejamos, da obra citada, um dos evidentes poemas de tonalidade simbolista:
DIÁLOGO INTERIOR (em Verônica)
Ante o infinito,
Cismo e medito.
Mas vou pensando
E interrogando.
Dialogo a esmo
Comigo mesmo.
- Tudo convida
A amar a vida.
- E a amar se deve
A um bem tão breve?
- A vida é bela
No que revela...
- Mas como existe
O homem tão triste?
- A vida é a luta
Divina e bruta.
- Onde o heroísmo?
Páramo ou abismo?
- A vida encerra
Os bens da terra.
- Se esses dons temos,
Por que sofremos?
- A vida inquieta
É a mais completa.
- Mas por que a alma
Aspira à calma?
- A vida é intensa
Para quem pensa.
- E onde a esperança,
Que não descansa?
- A vida é pura
Quando há ventura.
- E por que sinto
A ânsia do instinto?
- A vida é chama,
Que apura e inflama.
- Por que a resumo
Em névoa e fumo?
- A vida é a glória
Sempre ilusória.
- Mas como é insano
O sonho humano?
- A eterna esfinge
Ninguém atinge...
- Que reticências
Nas existências!
A perambulação filosófica destes dísticos é impressionante. Esse aprofundamento do ser em si mesmo, é bem possível, foi uma característica da poesia da época, pois que outro grande poeta da Belle Époquebrasileira – Raul de Leoni – também cingia um simbolismo filosófico, com certas estéticas parnasianas em um poema ou outro. Impossível não citar Augusto dos Anjos e seu pessimismo à Nietzsche, mas também muito influenciado pelo filósofo brasileiro Raymundo de Farias Brito, considerado por muitos o único filósofo simbolista(talvez por uma imensa ânsia de infinito) do Brasil.
O poema introdutório do “Imagens da Vida e do Sonho”, em Verônica, que de certa forma introduz a tonalidade filosófica da obra, tem como temática a Peregrinação – que foi considerada, por Andrade Muricy, uma das quinze principais tópicas do movimento simbolista. Vejamo-lo:
O HOMEM QUE VOLTA... (em Verônica)
Quando fui, com o meu sonho ingênuo e lindo,
Pelas estradas amplas, luminosas,
Vinham as Graças desfolhando rosas.
Ergui os olhos para os céus, sorrindo,
A beleza da vida pressentindo...
Quando vim, com o meu tédio miserando,
Pelos estreitos e áridos caminhos,
Iam as Parcas espelhando espinhos...
Baixei os olhos para o chão, chorando,
E fiquei para sempre meditando...
Um das tradições, se assim podemos falar, do Simbolismo em geral foi um abundante uso do Latim e uma grande tendência arcaizante da Língua Portuguesa – o que fez surgir casos como Alphonsus de Guimaraens, Arcangelus de Guimaraens, livros como Luar de Hinverno, a utilização de vocábulos como “psalmo” em lugar de “salmo”, além de uma tendência quase fetichista pelo Y em lugar do I (segundo Andrade Muricy, alguns poetas defendiam que o Y, por si somente, já trazia a imagem do pranto escorrendo de dois olhos). Da Costa e Silva, em sua produção ortodoxamente simbolista, manteve a tradição; mas também na produção pós-simbolista utilizou-se do latim, fosse como título ou no próprio desenvolvimento do poema. Eis um dos casos:
VELUT UMBRA (em Verônica)
Vivo sempre a seguir-te em toda a parte,
A todo o tempo, a todo o transe e em tudo;
E tanto mais me esforço em procurar-te
Mais de te conseguir me desiludo.
Busca-te o meu ideal num sonho de arte;
E sem te ouvir, nem te falar, contudo
Eu não me canso em vão de desejar-te,
Cego para te ver e, ao ver-te, mudo...
Vento-te ou não, o meu olhar divaga
Sempre a seguir-te; e as vezes que te vejo,
Como que te diluis, visão pressaga!
Quando te encontro, num fortuito ensejo,
Sinto que és uma sombra que se apaga
Ao sol crepuscular do meu desejo.
Um poema, também de Verônica, que em nada lembra o “objetivismo um pouco frio” a que Andrade Muricy se referiu é o tocante “Sombra e Névoa”. De certa forma, pela comoção espelhada entre o sujeito-lírico e a natureza, lembra-nos algumas imagens de Camilo Pessanha e Verlaine. Ei-lo:
SOMBRA E NÉVOA(em Verônica)
Cai o crepúsculo. Chove.
Sobe a névoa... A sombra desce...
Como a tarde me entristece!
Como a chuva me comove!
Cai a tarde, muda e calma...
Cai a chuva, fina e fria...
Anda no ar a nostalgia,
Que é névoa e sombra em minh'alma.
Há não sei que afinidade
Entre mim e a natureza:
Cai a tarde... Que tristeza!
Cai a chuva... Que saudade!
Há vários outros notáveis trechos no que se refere à percepção neo-simbolista da Verônica de Da Costa e Silva. Por exemplo, ao desenvolvimento da assonância, mas sempre com o referencial da música, em que se alicerçou factualmente a melodia do movimento simbolista:
SUBIA A LUA, LEVE... (em Verônica)
Um luar fluido e veludoso como um bálsamo
Ungia a noite voluptuosa e ardente.
A sua luz era tão branca que tornava o céu diáfano...
Subia a lua leve como o pensamento.
Eu dialogava com o silêncio... Uma toada rústica
De flautas e violões transportou-me à saudade.
E, abstrato de mim mesmo, eu te bendisse, ó música,
Que da tristeza de pensar me libertavas!
Ou no soneto “Memento Homo...”, em que, novamente, demonstra-se o uso do Latim, além de uma evidente negatividade tão típica ao estilo. Vejamos o primeiro quarteto:
Quem somos nós – Pulvis et umbra sumus.
Horácio, o teu pentâmetro latino,
No mais sábio e conciso dos resumos,
Diz o que é a vida em face do destino.
Em alguns dísticos de "Litania das Horas Mortas" o pós-simbolismo é evidente:
Por estas horas é que eu sinto florescer,
Como os astros no céu, o jardim do meu ser.
É nestas horas de quietude que deponho,
Ó Noite! em teu altar, minha lâmpada - o Sonho.
Mas aqui chamo atenção para os derradeiros versos de Da Costa e Silva. O seu último poema, de nome “Velha Interrogação”, publicado em suas Poesias Completas, é de uma tocante sugestividade e harmoniosa composição. Dos melhores poemas do autor. Ei-lo:
VELHA INTERROGAÇÃO
Passa a vida? Continua...
Porque o tempo é que flutua,
como um rio de veludo,
sobre todos, sobre tudo...
À sua margem sonhamos:
de onde vimos? aonde vamos?
E o destino indiferente
vai impelindo a torrente...
Passa a vida? Continua...
Com o tempo quem passa é a gente.
Mas, vida, se nós passamos,
de onde vimos? aonde vamos?
Somente por esse poema, a tese de Andrade Muricy - a de um Da Costa e Silva de estro definitivamente neo-parnasiano mesmo após o seu Zodíaco – já encontra limitações. Esta “Velha Interrogação” é uma obra de profunda espiritualidade, com uma percepção da temporalidade dos seres raríssima.
Andrade Muricy, em seu Panorama do Movimento Simbolista Brasileiro, com a ausência de uma exposição de alguns poemas de Verônica e Pandora, perdeu, por certo, a oportunidade de mostrar a renovação da poesia simbolista através dos anos por meio do interessante exemplo de um poeta que, solitariamente, imprimiu em seu estro tais mudanças. Seria, basicamente, equivaler o tratamento dado a um Onestaldo de Pennafort, a uma Cecília Meireles, a um Manuel Bandeira – todos com uma grande importância no pós-simbolismo – todos também com uma grande importância na poesia modernista (Pennafort e Meireles mantiveram bases temáticas extremamente circundantes às do Simbolismo em toda a carreira; Bandeira nunca negou a sua influência – chegando a organizar uma coletânea sobre a poesia simbolista – mas a sua poesia desviou-se do Simbolismo, aproximando-se, curiosamente, em sua clássica canção de fuga – que nos rememora tão bem as tão criticadas “torres-de-marfim” simbolistas – “Vou-me Embora pra Pasárgada”); no caso, evidentemente, Da Costa e Silva teve uma passagem pelo movimento neo-parnasiano, mas, que, se posta em comparação com a fase final de sua obra, é claramente menor – e, aí sim, objetivista, e um tanto fria. De restante, o que vemos é um poeta vivamente espiritual, em cujo verso palpita o pensamento de um cantor sereno e a voz de uma alma inundada por mágoas e símbolos eternos.