Os poetas do "Cenáculo": Dario Vellozo, Antônio Braga, Silveira Neto e Júlio Perneta
(créditos da foto: blog do Paulo José da Costa)
Entre localizações em que o Simbolismo produziu fartamente e se propagou notavelmente no âmbito popular, Curitiba reside sem hesitações. Uma considerável parte da produção simbolista brasileira veio dessas terras paranaenses. Mas da mesma forma que Curitiba foi importante para o Simbolismo Brasileiro, o Movimento Simbolista foi essencial para o desenvolvimento intelectual da capital paranaense. Antes da escola dos Simbolistas, Curitiba não tinha uma organização intelectual clara e organizada, sequer uma cultura literária definida. Favoreceu a organização desse grupo – que era formado, sim, por uma elite intelectual - o enriquecimento da cidade por intermédio do ciclo da erva-mate. Dario Vellozo (1869-1937), não obstante as melhorias econômicas no Estado, assim definia a situação cultural desértica em que se encontrava o Paraná, em 1894, na revista “Club Curitibano”:
“O Paraná não tem literatura, nem possui valiosos subsídios para sua história. As raras tentativas literárias dos que têm procurado reagir contra a antipatia mesológica não encontraram reflexo na alma paranaense; e lá se foram na incolor mortalha do esquecimento, repousar no sombrio nirvana do esquecimento. (...)”
Com o Simbolismo, a região obteve um caminho cultural a seguir, como em um frêmito inspirador. Não à toa foram ao todo quinze revistas de cunho simbolista produzidas somente em Curitiba – todas, como era comum, de vida efêmera -, sendo as mais importantes a “Pallium” e a revista “O Cenáculo”. E nessas publicações, que tinham um cuidado excepcional com a parte estética é que as grandes obras do simbolismo paranaense foram publicadas e divulgadas para além dos livros, fazendo com que, por exemplo, Emiliano Perneta (1866-1921) já se tornasse o grande poeta de Curitiba antes sequer de sua Ilusão vir a lume, fato que só ocorreu em 1911. Para este estudo, utilizarei de referência três dos quatro poetas que publicavam no “Cenáculo”, que circulou de 1895 a 1897: Dario Vellozo e Silveira Neto (1872-1942) e Júlio Perneta (1869-1921) – o outro autor, Antônio Braga, foi um parnasiano, e suponho que não convenha para este texto. Além dos poetas essenciais do “Cenáculo”, é evidente que falarei do grande poeta simbolista de Curitiba, Emiliano Perneta, que eventualmente publicou na revista. Outros grandes poetas e escritores paranaenses e curitibanos residiram nessa primeira leva do movimento Simbolista, o principal foi Rocha Pombo (1857-1933), em cujo livro NoHospício (1905) está uma das grandes referências da prosa do estilo.
O advento do Simbolismo, em Curitiba, tornou a cidade viva culturalmente. As tradicionais “Festas da Primavera”, que ocorriam, por exemplo, na rua XV de Novembro (muitos poetas, em meio às festividades - de caráter pagão - declamavam as suas obras para um grande público) são o mais claro exemplo da vivacidade intelectual em que se colocou a Curitiba após a efervescência do símbolo.
Mas, acerca da poesia da época, começarei discorrendo sobre Emiliano. De poesia não raras vezes genial, de um estro harmonioso, como de uma musical retórica, é do autor de Ilusão um dos mais altos momentos poesia simbolista brasileira. Para Andrade Muricy, o seu poema “O Sol”, presente no póstumo Setembro (1934),“exprime a frescura e o matizamento das manhãs no altiplano ridente de Curitiba”. É um poema muitas vezes referenciado como um dos melhores de Emiliano, mas poucas vezes transcrito inteiramente, talvez por seu tamanho. Mas ei-lo aqui por completo:
O SOL - (emSetembro)
Ao Dario Vellozo
Crepúsculo indeciso. As estrelas começam a apagar-se,
uma a uma, como lâmpadas, que se extinguem. Zéfiro sopra.
E num vago sussurro harmonioso, a pouco e pouco, a natu-
reza acorda. Ouvem-se vozes longínquas e dispersas...
UM PÁSSARO:
- Vai despontar a luz.
OUTRO PÁSSARO:
- Pois que desponte logo.
- Tenho ânsias de subir, tenho a cabeça em fogo,
Hoje vou conhecer, pela primeira vez,
A voluptuosidade, a febre, a embriaguez
De voar, de voar, ó sonho, que me abrasas!
OUTRO PÁSSARO:
- Ah! Que bom de fugir! que orgulho de ter asas!
OUTRO PÁSSARO:
- Estou ébrio de amor. O amor é como o vinho.
Que venha logo a luz. Quero fazer meu ninho...
UM GALO:
- Dentro desta canção, tão límpida e sonora,
Há matizes de luz e púrpuras d'aurora.
UM CORVO:
- Eu sou a podridão e o vento que arrasa;
Sou a fome e a nudez... O sol é a minha casa.
O MONTE:
- Que solidão sem par, que solidão extrema,
A solidão cruel e áspera de um monte;
Mas quando o sol me toca, é como um diadema,
Aurifulgindo aqui por sobre a minha fronte...
O CHARCO:
- Água esverdeada e suja e pântano sombrio,
Mas quando o sol me doira esta miséria, eu rio.
A FLORESTA:
- Ó delírio brutal! Quando me mordes tu
A carne toda em flor, o seio todo nu,
Com teus beijos de fogo, eu como a flor do nardo
Recendo de prazer, e de luxúrias ardo...
UMA ÁRVORE:
- Quando ele bate aqui no meio da floresta:
Que sussurro, que ardor, que anseios e que festa!
UMA CIGARRA:
- Faz tamanho rumor e tamanha algazarra,
Que eu suponho que o sol é como uma cigarra...
OUTRA ÁRVORE:
- E que perfume tem!
OUTRA ÁRVORE:
- E que canções vermelhas!
OUTRA ÁRVORE:
- Nós somos como a flor, ele como as abelhas!
A TERRA:
- Quanto me queima o sol, com os seus desejos brutos!
A VIDEIRA:
- Ó glória de florir e rebentar em frutos!
A PALMEIRA:
- Como gentil eu sou! E o aroma trescala,
Quando me lambe o sol e o zéfiro me embala!
O ORVALHO:
- Ao sol eu brilho mais que a pérola d'Ormuz...
O PINHEIRO:
- Eu sou como uma taça erguida para a luz...
AS FONTES:
- É um murmúrio sem fim de horizonte a horizonte...
O dia quando nasce é bem como uma fonte...
Através da floresta e desse campo e desse
Vale, há um rumor de luz, como água que corresse...
A ABELHA:
- Quando sobre o horizonte esse astro heroico assoma:
Que orgulho, que prazer, que vibração cruel,
Pois é de sol e flor, é de luz e aroma,
Que componho esta cera e fabrico este mel!
UM PÁSSARO:
- Ah! que alado frescor tem o romper d'aurora!
OUTRO PÁSSARO:
- É tempo de fugir, é tempo d'ir-me embora...
OUTRO PÁSSARO:
- É nesse lago azul que hoje quero roçar
As asas...
OUTRO PÁSSARO:
- E eu é sobre as ondas desse mar...
UM PASTOR:
- Eu nunca vi o céu de uma beleza assim:
É todo de oiro e rosa e púrpura e carmim...
OUTRO PASTOR:
- Dentro daqueles véus ideais de rosicler,
A aurora tem a graça e o ar de uma mulher...
OUTRO PASTOR:
- Mas ei-lo que surgiu, em rufos de alvoroço,
Brilhantemente nu, divinamente moço,
Eterno de frescor juvenil e tamanho,
Como se viesse de um maravilhoso banho,
Feito de águas lustrais, e aroma, e ambrosia,
E coração, e luz, e força, e alegria...
UMA ROSA:
- E que límpido céu! Que espetáculo rubro!
OUTRA ROSA:
- É realmente bela esta manhã de Outubro!
UM BEIJA-FLOR:
- Eu nunca vi uma manhã assim luminosa...
OUTRO BEIJA-FLOR:
- É fina como o lírio e é ardente como a rosa...
UM PASTOR:
- Quando o sol aparece em ondas, a beleza
E a frescura, que espalha, é de tal natureza,
Tem um olhar tão bom, tão novo, tão jucundo,
Que toda madrugada é o começo do mundo...
A FLORESTA:
- Tu me beijas, ó sol, tão loucamente, espera,
Que eu em pleno fulgor ideal de primavera,
Debaixo desse fogo ardente de teus beijos,
Em delírios de amor e amplexos de desejos,
Arrebentando em flor, completamente louca,
Ofereço-te o seio, ofereço-te a boca!
UM PÁSSARO:
- Aqui, onde eu estou, deste raminho verde,
Quero subir até onde a vista se perde...
Quero aos raios do sol minhas asas bater,
Até cair no chão, bêbado de prazer...
AS OVELHAS:
- Luz radiosa e pura, ó fonte criadora,
Luz que faz germinar em grãos a espiga loura,
E que veste de verde os campos seminus,
Bendita sejas, flor, bendita sejas, luz!
O POETA:
- Ah que sombria dor e que profunda mágoa
De não poder ser eu aquela gota d'água,
Que depois de fulgir, assim como uma estrela,
Derrete-se na luz, funde-se dentro dela!
Outubro - 911
É uma obra de espetacular descrição, cuja ambientação espiritual paira em um âmbito panteísta de que compartilharam também alguns de nossos simbolistas. Somente por este “Sol”, a crítica de Dalton Trevisan, em 1946, então com 21 anos, já pode ser combatida e até anulada. Ao dizer que Emiliano Perneta foi um “poeta medíocre”, “de inspiração rasa como capim”, que “quando ia atrás da luz do sol, fechava as janelas e acendia um fósforo”, Trevisan cingiu a arriscada linha de resumir um grande poeta como Emiliano a um ressentido sem causa e, pior sem engenho poético. Mas o que vemos é que, para além da “torre de marfim” em que, de quando em quando, Perneta se exilava, havia um poeta com uma percepção da beleza universal, da volúpia, do amor e, quando não raro, das singularidades da alma humana. E mais que isso: a percepção melódica do poema é de uma leveza sinfônica muito oposta à rudeza sonora parnasiana.
Vejamos um outro poema de Emiliano:
ENTRE ESSA IRRADIAÇÃO...
Ao Emílio de Menezes
Entre essa irradiação enorme, que palpita
É possível que um dia, eu, pálido, a encontrasse,
Como a sonora luz de Vênus Afrodita,
Em meio do caminho, os dois, e face a face...
E que alucinação e que febre esquisita,
Que cegueira de amor e que ilusão falace,
Quando esse girassol, para a luz infinita,
Cá dentro de mim, então, desabrochasse!
Seriam negros ou dourados os cabelos?
Junto daquela flor, tremeria de zelos?
Não tombaria morto aos pés desse prazer?
Os olhos de que cor? Não sei. Porém suponho
Que seriam assim tão grandes como um sonho...
Mas já passei a vida, e não a pude ver!
1917
Para alguns críticos, a avaliação da obra de Emiliano Perneta foi prejudicada por sua publicação supostamente tardia, além de um “sufocamento da obra” de Emiliano por ele ter optado viver em Curitiba – pequena, em sua época - mas ambas cogitações não me parecem verídicas. Apesar de pairar na obra de Perneta uma grande ânsia de fuga (de Curitiba, do Paraná, do Rio de Janeiro, do mundo...), é muito curioso resumir essa busca pelo escape – que muitas vezes perambulava a procura pelo Ideal – como uma consequência de uma cidade que lhe parecia pequena, após “o gosto dos grandes centros”. Se Ilusão, lançada somente em 1911, recebeu a celebração merecida – e com a coroação do poeta na “Ilha da Ilusão”, no Passeio Público, foi pelo fato de Emiliano ser, em sua época, o grande poeta de seu estado, mas também uma das grandes referências do Simbolismo nacional. Emiliano já havia feito o seu nome Brasil afora, e a sua obra, finalmente compilada em livro, só confirmou esse fato. Nunca poderemos nos esquecer que a matéria mais importante da obra de Alphonsus de Guimaraens foi publicada após a sua morte, em 1921, mas nunca se disse – ou ninguém ousou dizê-lo - que “caso a sua obra tivesse sido publicada antes, a sua fortuna crítica talvez seria outra”, como afirmou Cassiana Lacerca Carollo, no prefácio da edição das obras de Emiliano Perneta, pela Farol do Saber.
Multidão no lançamento de Ilusão: a popularidade de Emiliano era nacional
(Créditos da foto: organismo.art.br)
Dario Vellozo foi, ao lado de Emiliano Perneta, a outra grande referência intelectual da Curitiba da época. Se o autor de Ilusão e Setembro era, essencialmente, a referência poética, Dario Vellozo cumpria o que podemos chamar de um “vaticínio” - era literalmente o vate da Curitiba em fim de século. Além de poeta, foi escritor, professor, esoterista, maçom, filósofo que bebia dos ideais de Pitágoras, expositor “irresistível”, segundo Andrade Muricy... ou seja, o grande farol do pensamento curitibano da época, sendo a criação do Instituto Neo-Pitagórico, em 1909, somente uma pequena comprovação dessa perspectiva (o Templo das Musas, a sede do Instituto, foi inaugurado em 1918 e resiste até hoje). Acima de tudo, foi um agregador do pensamento Simbolista na cidade. Das quinze revistas que foram editadas, Dario participou de cinco, sendo presença constante nas publicações nos momentos-chave do Simbolismo no Paraná, ou seja, quando o seu Ideal literário há pouco havia chegado e necessitava de ampla divulgação e defesa (entre 1890 e 1893). E que se diga: a produção simbolista de Vellozo iniciou-se anteriormente à de Cruz e Sousa (considerado erradamente como o livro iniciador do Simbolismo no Brasil, apesar de ter sido o estremecimento necessário para que se houvesse um movimento do tamanho que houve), cujo Missal sairia somente em Fevereiro de 1893. Para esclarecer as fragilidades das datas, em São Paulo, por exemplo, também se havia publicado Simbolismo antes de Cruz e Sousa, com Wenceslau de Queirós (1890), além do sempre citável com pernambucano Medeiros e Albuquerque, com Canções da Decadência (1887), que foi essencial ao movimento por trazer obras dos autores franceses do estilo ao Brasil.
Como poeta, Vellozo foi um hermético, mas de musicalidade muitas vezes cativante. A sua simbologia pairava a mística, a cultura greco-romana, o medievalismo, e um ocultismo de deliciosa revelação.
Vejamos um soneto presente em sua mais significativa obra, Cinerário, publicada em Curitiba, em 1929.
NO REINO DAS SOMBRAS
A Hermínia Schulman
Plenilúnio. O olhar molha as colunas dóricas...
Junto ao pronau medito, evocando o teu rosto.
Que saudade de ti, dessa tarde de Agosto,
De tintas outonais e visões alegóricas!
Saudade!... O coração lembra idades históricas...
Na Atlântida eras tu pitonisa... Ao sol posto,
Dizias da alma irmã os arcanos... Teu rosto
Banhava-se na luz das estrelas simbólicas...
Tantas vezes perdida! Imerso em luz ou treva,
De vida em vida, à flor do céu, te procurava,
Na dor da solidão... E, quando a lua eleva
A lâmpada votiva, eu te procuro ainda,
- Alma branca, alma irmã, alma em flor, alma eslava -,
Na poeira dos sóis da solitude infinda.
Templo das Musas, 3 de Novembro de 1928.
Além da palavra “eslava”, que não raras vezes apareceria na obra de Vellozo (“teu porte esbelto de condessa eslava”, por exemplo, na “Última Valsa”, poema de abertura de Cinerário), há a imagem da Atlântida, nome da obra à qual Dario dedicou grande parte de sua vida para realizar. Atlântida, que acabou sendo publicada somente em 1938 – portanto, um ano após a morte do poeta -, é um longo poema épico (ou como Edgar A. Poe falaria, uma série de pequenos poemas que dão a tonalidade épica ao todo) e que sofreu uma incompreensão lamentável por parte dos intelectuais brasileiros. Leminski, que admirava a obra de Dario Vellozo, chamou, em outras palavras, Atlândida de uma utopia bem menos eficiente que a Antropofagia de Oswald de Andrade, e, talvez seja um dos mais raros milagres da falta de compreensão essas palavras de Leminski para a Atlântida de Dario. O Simbolismo nunca teve o intento de criar utopias ao modo “tupi or not tupi”, como Oswald de Andrade concebeu; a “eficiência” a que Leminski se referiu era exatamente o que o Simbolismo combatia, pois que, de Cruz e Sousa a Vellozo, a essência da obra era buscar a sugestividade, a melodia do infinito, uma fluidez de pensamento e de correspondências por meio das quais atingiria-se um Ideal (independentemente de qual seja), não necessariamente “eficiente”, que, à leitura de Leminski, parece-me um sinônimo de “popular”. Atlântida foi uma “utopia fluida” sobre a criação do Brasil, na terra da América do Sul, mas também com várias outras interpretações, como numa correnteza vária de pensamentos.
Mas, enfim, dando continuidade à amostragem da obra de Vellozo, eis aqui a sua Palingenesia – um verdadeiro clássico do Simbolismo esotérico brasileiro -, cujo título significa, em termos comuns, “perpétuo retorno”, mas em termos místicos, segundo Cassiana Lacerda Carollo, que analisa o poema na edição de Cinerário,pela Farol do Saber, um “regresso à vida depois de morte aparente ou real, renascimento por iniciação ou transmigração”:
PALINGENESIA (em Cinerário)
Ocaso! Opalas e amaranto,
Jalne e opala;
Curva azul de horizontes,
Montes...
Além o Sol trescala
Ânforas de óleo-santo,
Lírio e nenúfar...
Unção da noite, prece.
Voguemos!
O Ocaso é mar
De violetas e crisantemos...
Ceifeiro a messe
De meu amor vai ceifar!
O Sol mergulha
E a Noite crepes negros estende,
Crepes da alma,
Crepes sobre o mar!
Esperança! Esquife e hulha!
Impiedade,
Crueldade,
Esperança – Flor de Lírios – vão te incinerar!
Carregam traves...
Fumega a pira!
Lira
Entra a cantar!
Ó Torre do Ideal, fechada a sete chaves,
Torres de ametista e de luar!
Abri-vos!
Quero subir, subir mui alto,
Sobre a Terra, no Azul, além! - no Astral...
(Lázaros! sonhos meus! espectros redivivos!)
As tuas sete chaves, Torres do Ideal!
No asfalto
Esporas tinem de cavaleiro
(Quem abrirá?)
Esporas de ouro de cavaleiro!
Cavaleiro ou coveiro?
Alguém... do Au delá...
Velas, ao Oriente...
O Oriente é mar.
Ave, Istar!
Morro de frio em minha ermida branca,
Alva de luar...
Urzes da vida,
Urzes da ermida branca...
Que mão de piedade arranca
Urzes de bruma de meu tédio, Istar?
Mendigo
Cego e morto de fome...
Dá-me a luz de teu nome,
O sol do teu olhar!
-Amigo!
- Istar!
Alto e longe!
Minhas vestes de monge
São de chumbo, Istar;
Prende-me à terra,
Soldam-me à Terra,
Vestes de húmus: corpo, algar!
- Benze-me! Asperge-me com um ramo de alecrim!
Mirífica, eleva-me!
Eterifica, eleva-me!
Sete chaves! Torre de Marfim!
Arcano da Harmonia!
Harpa ceciliana!
Soberana!
Horto de Anael!
Tens a meiguice de Maria,
Rachel!
Tens a meiguice de olhar de monja,
Istar.
Meu olhar é uma esponja
Que bebe a luz de teu olhar.
Vais tão alto e tão longe!
Cego! Que serei eu?
Monge
Que nos repes da noite se envolveu.
Atanor,
Terra,
Em teu cálix de húmus e de amor
Encerra
Meu corpo, ó Mãe misericordiosa!
E meu astral
No seio de uma rosa
Irá brilhar..
Lírio escultural,
Istar,
No cálix de esperança de teu olhar.
Vais alto, longe e distante...
Para o Levante?
Para o Poente?
Onde quer que tua alma se ausente,
Minha ermida levanto,
À luz dos ocasos de amaranto
Saudosamente,
Discretamente,
Nos sete palmos de um campo santo.
Curitiba, 17 Novembro 1901
Ao lado de Dario Vellozo e dos companheiros do “Cenáculo”, Silveira Neto teve absoluto destaque no Simbolismo brasileiro. Nestor Vítor chegou a chamá-lo de “um Castro Alves que se desesperasse”. E do autor de Luar de Hinverno (1901) - que também foi um dos mais importantes ilustradores do movimento, chegando a fazer as ilustrações presentes na edição original do “Cavaleiro do Luar” (1901), de Gustavo Santiago, das mais importantes obras da escola -, vejamos um dos mais belos sonetos:
NO ALTO - (No Luar de Hinverno)
Vago terror congela-me o aspeito
Nos profundos silêncios da Matéria:
Dorme o corpo, e a alma num clamor desfeito
Ergue-se imensa à vastidão sidérea;
Excelso mundo se abre à vista aérea,
Num tom ideal de evangelários feito,
E onde Visões e Idades, numa etérea
Ronda, desfilam para o Grande Eleito.
De idas espécies a atra caravana,
O Íbis e o Lótus, a Esfinge e o Mahabarata,
Toda a vertigem da nevrose humana,
Pelos meus olhos passam. - E à sedenta
Súplica da alma, que delira e mata,
Por que não passa o Ideal que me atormenta?
Muito curiosa é a aparição da “Mahabarata” nesse soneto. A mais antiga das duas epopeias indianas também foi citada pela paulista Francisca Júlia, de quem Silveira Neto admirava a poesia (tanto a parnasiana quanto a simbolista). Para os simbolistas, ao espelhamento de imagens não bastava uma simples descrição decorativa, mas uma grandiosa abertura espiritual de visões que se pudessem renovar com o passar das leituras.
Uma das grandes características do Simbolismo foi prezar pelo culto às outras artes. Não são raras as vezes em que nos deparamos com homenagens a Chopin, Debussy, aos Impressionistas, Pré-Rafaelistas, aos próprios pintores do Simbolismo, com um grande destaque ao francês Gustave Moreau, o grande mestre do símbolo. Se na obra de Silveira Neto essas homenagens não foram tão constantes – eis aqui um belíssimo soneto ao inolvidável compositor da Nona Sinfonia:
BEETHOVEN (em Ronda Crepuscular)
A música dos mundos, a poesia
Da terra em flor ao espaço constelado,
Fez-se alma e o gênio em ti, grande isolado!
No estro maior que o Ideal comportaria.
Da muralha em que – trágica ironia -
A surdez te encerrou, transfigurado,
Surge teu gênio, mais profundo e ousado,
Na amplidão fulgural da Sinfonia.
Miguel Ângelo de outra esfera imensa,
Legaste à Vida, que te fez proscrito,
Na epopeia do Som, tão larga e intensa,
Um poema como nunca fora escrito,
Para que a Terra um dia aos astros vença
Na harmonia assombrosa do Infinito.
Junho – 1920
E do “Cenáculo” falta-nos somente uma pequena exposição da obra de Júlio Perneta, irmão de Emiliano. Para muitos, talvez perambule a sua memória literária no aspecto do regionalismo – área em que também Emiliano, Dario Vellozo e Silveira Neto palmilharam -, mas há em sua poesia um rico simbolismo, de característica solar – mesmo sol que serviu de inspiração para o poema homônimo de Emiliano, e que serviu de ambiente para embelezar a “musa espiritual” dos poentes de Dario. Citando o caso de Vellozo, Andrade Muricy chegou a dizer que poucas cidades puderam inspirar tantos poemas solares (crepusculares, muitas vezes) como Curitiba, pois que o poeta ficava “rodeado dos mais belos poentes do mundo”. Eis, de Júlio Perneta, um soneto que exemplifica o exposto:
CREPÚSCULO (em Antologia Paranaense)
No túmulo do ocaso iluminado,
Como nau afundando em tírio porto,
O dia tomba, triste, abandonado,
Nostálgico de luz e de conforto.
Horta em que o coração, genuflexado
Ante a visão feral do desconforto,
Vê desfilar das sombras do Passado,
Aos merencórios raios do sol morto.
Hora de dor, profunda de saudade,
Feita de lágrima e de prece ungida,
Soturna de velhice e mocidade!...
Como eu te sinto em mim, como eu te quero!
És a imagem fiel da minha vida
Que, apesar da desgraça, inda venero!
1897
Jornais como “O Cenáculo” e “Esphinge” foram de grande serventia à posterioridade de nosso Simbolismo. O caso de Júlio Perneta é um dos mais clássicos. A sua obra em verso continua, lamentavelmente, esparsa, sendo, muitas vezes, as únicas fontes as publicações em jornais e também, evidentemente, no Panorama do Movimento Simbolista Brasileiro, de Andrade Muricy, que dá uma maior importância à obra do autor do que em qualquer outra antologia lançada no Brasil. O poema poema que transcreverei a seguir foi publicado no “Cenáculo”, em 1896. Ei-lo:
OS TEUS OLHOS SÃO FEITOS DE LUAR...
I
Os teus olhos são feitos de luar,
E o céu, sorrindo num rendilhamento
Sonoro de astros, põe-se a meditar
Nesses teus olhos, com deslumbramento,
Feitos de estrelas, lírios do luar.
II
Olhos de imagem, olhos de oração,
Num misticismo eterno de saudade.
Olhos que o céu contempla da amplidão,
Cheio do tédio da infelicidade
Por não possuir teus olhos de oração.
III
Olhos que têm fluidos de ternura,
Olhos que fazem tantos desgraçados;
Olhos que os astros, da infinita altura,
Contemplam mudos e maravilhados...
Olhos que têm fluidos de ternura.
IV
Olhos que têm a dor perolizada
- Branco Missal das minhas devoções -,
Quanta tristeza, ó santa ciliciada,
Nesses teus olhos de constelações,
Onde soluça a dor perolizada!
A obsessão pelos olhos pairou pelo Simbolismo brasileiro. Foi de Cruz e Sousa a Alphonsus de Guimaraens, de Da Costa e Silva a Emiliano Perneta, Maurício Jubim, entre outros... para os Simbolistas, os olhos não somente recebiam as visões terrenas, mas também aportavam as extra-mundanas visões, quando não raramente prenunciavam-nas nos olhos alheios. Os olhos têm, para o Simbolismo, uma representativa percepção mística.
Sendo o foco deste estudo os autores simbolistas que se formaram acerca do “Cenáculo” - além do essencial Emiliano Perneta -, não pude, é evidente, falar de grandes poetas que também participaram do movimento Simbolista, muitas vezes bem além de 1922, data muitas vezes utilizada para determinar o ponto de transição final entre Simbolismo, Parnasianismo, Pós-Simbolismo e, finalmente, Modernismo. Poetas, por exemplo, como José Gelbcke (1879-1960), Euclides Bandeira (1877-1948), Clemente Ritz (1888-1935) e Adolfo Werneck (1879-1932) merecem um outro estudo, anotando algumas mudanças estéticas e características particulares de cada um desses autores, que, de Curitiba, já ministravam importantes revoluções na literatura brasileira bem antes do movimento modernista, com exceção, talvez, de Gelbcke, que manteve uma postura clássica em sua poesia. Os ensaios do filho de Silveira Neto, Tasso da Silveira (1895-1968) – que em sua poesia foi simbolista - produziu sobre o movimento também podem entrar facilmente no estudo.
Para a capital paranaense, o Simbolismo foi um iniciador cultural, o primeiro feito em um grupo realmente concreto, organizado e com repercussão nacional. Mesmo após 1911, data do lançamento de Ilusão, a influência do movimento Simbolista manteve-se vigorosa na cidade. Ataques desproporcionais, como o já citado de Trevisan, ou admirações sinceras, mas que caem às vezes para a timidez, como de Leminski, vieram por meio de uma curiosa necessidade de “rompimento” com o passado literário (que à época da crítica de Trevisan, determinante para o atual desprestígio dos Simbolistas em Curitiba, tinha só cerca de cinquenta anos de produção literária!). Faz-se necessário um redescobrimento desses poetas, que antes do Movimento Modernista, já traziam ao Brasil, e especificamente à capital do Paraná, sonetos em versos livres, exemplos de poesia visual, versos assimétricos, assonâncias... Mas não somente isso: por terem sido o frêmito inicial e essencial da cultura paranaense, sem o qual a região não se desenvolveria intelectualmente da mesma forma nos deságues do vigésimo século, o redescobrimento é um encontro indispensável com o florescimento espiritual do local.