não era o espelho
nem o flash refletido
no olho errado
eu sei bem o que era
o retrato da luz
acordou no dia em que
despedaçado meu
dedo apontava um inocente
culpado de todas as suas
inocentrocidades
o retrato da luz
no sorriso de beco
cheiro estranho de
mulher
uma barba rude criada
sob o pulso de um anarquista
o retrato da luz
já sei
era incolor como a cor
rosa náufraga à espera
do primeiro hospital
o retrato da luz
amarelado nos dentes
colchão com pelos de cão
ladrilho de bar enxugando-se
num eletrônico seminovo
o retrato da luz
descendo as escadas do metrô
trocando de linha na estação
enguiçado no terminal
que precede o outro e além
o retrato da luz
puta perdida numa ilusão
de revista de moda
saliva embebida de álcool
trazendo sonho trazendo tato
rato sôfrego procurando seu tribunal
o retrato da luz
casa fechada na beira da praia
adolescente escrito com agulha
na beirada de uma mesa longa e velha
o retrato da luz
os profetas dizendo que a bandeira tremula
palavra dura se apagando enfim
deixando o esboço de futuro
o retrato da luz
tem a cor e o corpo
de uma nação invisível
praticando ginástica na escada do colégio
enrolada no cabelo crespo da musa
perna roçando num espírito enjoado
das mesmas montanhas
o retrato da luz
é um arquivo extenso detalhando
infâncias curtas
a pulseira rosa partida pelo machado
de uma vertigem antiga e crua
o retrato da luz
cadeira novamente vazia
reação inesperada aos oitenta anos
lábio encostado nas costas da orelha
receita para madames solteiras
receita para madames solteiras
o retrato da luz
discretamente sentado na arquibancada
observando a criança e a bomba
brincando sem preconceito
olho no olho
olho no olho
o retrato da luz
subindo indeciso os degraus
pousando os dedos na prateleira certa
sentando na cadeira da igreja no colo da freira
peito murcho na fila da autópsia
peito murcho na fila da autópsia
o retrato da luz
triste e com medo
rasgando-se com estrondo
para enfim revelar seu valente corpo
de escuridão.