ainda tenho sono e má vontade para as coisas de grande importância. minhas costas doem como se eu tivesse antecipado nesta madrugada os meus cinquenta anos. durmo o meu interior mas continuo de olhos abertos, olhando para o nada, procurando fagulha inútil de continuar a viver. me arrumo na cadeira e imagino uma história. a minha esquerda um prédio enorme com todas as luzes acesas. isso me assusta. para além dos carros que não param jamais de passar e das boas vontades que eu questiono incessantemente. se eu tivesse um avô dentro dessa minha história eu diria que desde sempre ele me dizia que boa vontade é coisa genética, é como tua mão assim pequenininha, uma mistura dos seus. não vê que tem gente deformada, com a boa vontade defeituosa. não vê.
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tenho dormido como uma árvore. daquelas miúdas ainda. que não faz distinção: rega-se de sonhos tanto quanto de realidade. tenho me fortalecido. descobri que a coisa que no mundo mas faz crescer, mais faz humano, é a verdade. é verdade que às vezes minto, e sou criança. é verdade que tenho um tamanho que já preguiça medir, que já não se tem dúvidas.
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Comboio de pedra,
O meu coração fecundo. As minhas saudades. A minha ternura. O meu turbilhão de pensamentos noturnos. O meu medo. O meu maior medo. Os meus dias que passam agora como jamais passaram um dia. Como jamais passarão. Os meus olhos ardem algumas ausências, a minha boca sorri. Algumas ausências. Algumas presenças. Algum melodrama, alguma frivolidade. Uma ponta de faca. Um afago. Tudo ao avesso. O doce sal do atlântico que me insinua liberdade. Que me aprisiona no pequeno e sufocante terreno da distância. Rostos novos. Lábios novos. A mesma conversa velha de não saber o que é o amor. Um lado mais frio, corações mais frios. A minha raça. A vossa raça. A nossa raça. Nossos corpos similares aos outros corpos - passíveis de destruição. Tão frágeis. Tão abandonados. Tão absolutos de coisa alguma. Nossos corpos, nossos pés debaixo da mesa. Tão enganados entre si. Tão incolor. A tua história. O teu segredo. O presente sempre passado em teus olhos úmidos, sempre recém-molhados, sempre confusos. Os dias feitos de cinza, os dias feitos de pedra. Os domingos iguais a todos os outros dias. A minha segunda-feira roubada do cotidiano. A minha disponibilidade, o teu cheiro. A minha propensão constante a fantasia do pensamento. A minha vontade de tudo o que não posso. A minha vontade tua. Os nossos cigarros descontraídos. A tua mente fechada. O meu aborto destrutivo de palavras. A tua falta de jeito de ser. Um comboio de ferro. Videiras, verdes, viagens e trilhos. Um dócil bestiário faminto. Paragens confinadas à pequenas estações. Um espinho no meio do caminho - tomado pelo mar. Bem perto de um porto. Um porto tão inseguro. Porto tão desconhecido. O norte mais frio. As pontes de ferro. Os homens de ferro. Os ciganos de ferro. Peões pela esquerda. Ribeira, caves e vinhos na minha garganta azul, no meu sorriso amarelo. A minha embriaguez solitária. As minhas declarações corajosamente virtuais. O meu aborto destrutivo de palavras. O teu não martelando o caminho. O meu corpo caído de sono. Os meus planos de cinquenta e cinco minutos, o tempo de um comboio. O tempo de um transtorno.
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o outro não poderia ser a sua casa. a sua casa não chegaria nunca a ser propriamente um lar. e ela mesma não saberia dizer se era possível ainda assim sustentar o seu corpo de medos, um corpo desarrumado, fragmentado, um corpo que ao mesmo tempo passível de mudanças (aquelas tão bruscas, físicas e morais) era também tão estável e tão pronto das coisas de se saber no indeterminado do tempo.
às vezes tinha a intuição de um grande dever com o mundo. uma dívida assumida e negociada inconscientemente entre o seu ego, a sua culpa e a sua garra magnífica toda provida de uma liberdade, uma fonte de amadurecimento forçado. todos esses enganos para a palavra dolorosa abandono. perda da coisa viva que devia sim ter durado para a vida inteira. e que agora sensivelmente se mantém vegetativa, às vezes até com um impulso maior de existência dentro dela. da menina
que às vezes inventava um passado melhor. isso era algo que me surpreendia nela então: inventava às vezes um passado melhor. por que é que não planejava um futuro incrível ou remediava o próprio presente? porque para ela inventar um passado melhor é que a resolveria no espaço e no tempo de agora. um passado sem tantos danos e mentiras faria dela agora um alguém tão mais
frágil eu digo a ela. a tua força reside na superação de uma dor. os teus lapsos incríveis de maturidade se revelam a partir daí. dessas dores do caminho. a verdade é que sim. esse teu passado estragado te fez tão bem. é que você tem olhado as coisas de um ângulo muito mesquinho, tomado de pequenez. as coisas se tornaram muito, muito maiores. não vê?
foto: Robert Mapplethorpe
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Anna Beatriz Mattos estuda Letras na UFRJ e é escritora nas horas mais ocupadas. Em 2012, publicou o livro de contos Mãos Azuis pela Editora Oito e Meio.