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5 POEMAS DE LUCIO CARVALHO

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Fechado


não há poder
quando as árvores cedem ao vento
nenhum poder
nas estrelas cadentes
quando os olhos se fecham
ou os joelhos dobram

não há silêncio
quando o grito se espreme na boca
nenhum silêncio
nas quedas d'água
quando as cortinas se fecham
ou as palavras não dizem

não há quem ainda faça
quando o tempo já passou
nenhum gesto
no abraço impedido
quando as mãos se fecham
ou os corpos não amam

não há saber
quando os sentidos não sentem
nenhum saber
nos dicionários abertos
ou quando se fecham
em si mesmos pasmados




About us


quem somos
diz no site

ali finalmente a resposta que procuramos,
desde os antigos, nas estrelas

os marinheiros, nem se fale,
até se perderam na busca

e os mensageiros, emboscados pelos inimigos,
levariam a resposta aos do front, conflagrados

mas se nunca soubemos quem fomos
por que então saberemos quem somos?

somos iguais a vocês
principalmente ao dormir

sem contar o conforto de nossa cama
e o desjejum amanhã

(a cidade é tão nossa
quanto os ônibus são das avenidas)

e quando não sabemos o que fazer
temos a lei para a ordem
regras para os equívocos
queijo para o almoço
e o resto do dia pela frente

somos estes, diz ali
e depois os respectivos números e e-mails

nosso passado é um código
nosso futuro uma incógnita

outras respostas sobre nós
estão no balde, como as gotas de água

à cata de cada grão e moeda
rompemos dias e noites

além e aquém
antes e depois

a matemática nos explica mais e melhor
que a própria literatura

estes somos nós
e o troco que temos nas mãos não é nosso

fodidos e mal pagos
fazemos perguntas erradas

o certo não é dizer quem somos
o certo não é nem perguntar por quê




O plano inclinado


não é de agora
que os patos migram silvestres
que os cacos caem quebrados

mas a partir de amanhã
tudo será diferente

os números ímpares, de dois em dois
o vento preencherá tudo, tijolo a tijolo
e todas as coisas abstratas, de tocar, quebrarão

as filas serão circulares e aleatórias
e o sol errará de posição, nascendo a oeste

(e os sapatos, ah os sapatos,
finalmente eles calçarão sozinhos os pés)

a partir de amanhã, mas não ainda,
a faca adormecerá no meio do pão
o filete de água no canto da boca
a sede dentro do copo

e o mundo atingirá, finalmente,
o estágio de compreensão das crianças
enxergando a si próprio
como uma brotoeja inesperada
escapando do espelho

o tempo a bordo de uma ave maluca
voando sem direção
encontrará um destino qualquer com o qual se conformará

(e os vagabundos condecorados
por terem mantido por tanto tempo a lucidez)

isso amanhã, posso dar certeza que sim
nessa noite, entretanto,
tudo seguirá igual ao que tem sido
anos a fio, e essa barba interminável
sempre a crescer

uns mais felizes, outros menos
e outros ainda que sequer podem se ocupar disso

sempre há tanto a fazer
dirão os mais inconformados
que o mundo não pode seguir assim
ele só anda por impulso
não tem vontade própria
como uma roda num plano inclinado
embora os patos duvidem disso, e revoltem-se,
e os cacos se antecipem à dor

amanhã acordo mais cedo
e congelo a paisagem com os dedos
não que já seja tarde
mas eu não gosto de dúvidas
sou previsível como um cubo
tenho um lado invisível portanto
sempre prestes a me revelar
trata-se de um inimigo foragido
eu sei de quem estou falando

mas nessa noite eu penso em estar
com a cabeça deitada nas nuvens
de suas histórias escolherei uma apenas
que saiba esquecer de tudo
ou pelo menos me faça dormir




Sugestões de atividades


3x/semana
checar o paradeiro do continente
(como quem pensa em partir)

1x/mês
procurar os rastros da lua nova
(sem uma vela nas mãos)

2x/dia
abrir a janela emperrada da infância
(no mesmo quarto de dormir)

4x/a cada 15 dias
refazer recados não recebidos
(cuidando de sempre mudar o destinatário)

2x/dia
confirmar a posição do vento
(e a deriva oposta dos pássaros)

pelo menos 1x/ano
faltar a um compromisso imperdível
(mas não por um lapso da memória)

tantas vezes quanto necessário
dormir no cinema ou abandonar um livro
(o corpo tem sua própria vontade)

nunca, jamais
infringir os limites do outro
(sem, todavia, deixar de buscá-lo)

sempre que houver
olhar os terremotos e as tragédias com o devido respeito
(como se fosse própria a dor alheia)

decorar 1x só
os mandamentos das mães
(já que aprendemos de seus líquidos)

e, às vezes, mas nem tanto assim,
simplesmente procurar não fazer nada




Desde ontem


eu aprendi desde ontem
o mundo é uma coisa nova
mas igual a outros mundos

abaixo do céu as nuvens
acima de tudo o além
desde ontem pela manhã

correr é com as cheetahs
e os tigres são listados
desde o meio da tarde

pedras não andam sozinhas
o fogo é filho do vento
desde ontem à noite


2


eu aprendi ontem cedo
o tempo é permanente
e o agora é para sempre

e quando todos estão em perigo
a salvação vem a caminho
num cavalo ou numa astronave

os problemas serão lavados
com água e sabão azul
(na terceira fila, ao lado do saponáceo)

o mundo já é tão velho
e desde ontem está sem memória
a inauguração será hoje



imagem: Sarolta Bán


*    *    *



Lucio Carvalhoé poeta, ficcionista e editor da revista digital Inclusive - inclusão e cidadania. Autor de Morphopolis e outros inéditos. E-mail.


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