Manhã. Atenta à passagem dos aviões. Muito sono e nenhum café. Atenta aos movimentos do bebê. Nenhum ganho. Manhã. Ruas claras, sol pequeno. Frente à um dia morno. Dois ensaios de música.
Poesias de Paul Auster. Passa outro avião na janela do seu quarto. Estuda os danos do açúcar. A vontade se manisfesta: mudanças na alimentação. “Produção maior de insulina pelas células beta das ilhotas de Langerhans" agora sem capacidade de secreção. Ela também sem capacidade de expelir raiva e/ou felicidade. Por isso o dia morno dá de encontro à sua temperatura: estável nos minutos iniciais do dia. Os livros sem pó escolhidos na estante do quarto. O dano do sono. Prepara-se para Algo que não os aviões se repetindo aos turnos na janela. Este, o barulho que a acordou. O bebê dorme, mas ela não. Depois se arrependerá, na certa, mas o que fazer se não quer (embora seu corpo) dormir.
"Esses testaram o Horizonte - e desapareceram pássaros"
Emily na manhã de terça feira.
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A bola azul
Procuro ajustar os dedos no violão, visualizar sétima quinta terça em seus diminutos e meio termos, dividir a tarefa com a tela e o bebê . Beni batuca a grande bola azul de pilates, que corre ao menor toque. Suas mãos pequenas principiam registros. Minhas mãos calejadas estudam, se emaranham. Mãos ligadas pela genética. Eu ensaio a transição dos dedos. Meu filho ensaia seu corpo acrobático. Escala minha perna para ficar em pé. Seus olhos me descobrem sob o desenho do braço do violão. Protejo cabos para que não deligue o computador. Não poderia repetir palavras de cor. Das 6 posições de Dó, estou na primeira. Uma desvantagem ser violoncelista. Imagino deva haver um jogo de plaquetas de madeira. Sou a maquete de um submarino na instabilidade do início. O armário aberto, suas mãozinhas curiosas apalpam sem julgar perigo, forma, uso. Neste sentido são imensas. Nossas mãos praticam, se especializam. São a forma da mente ver o mundo, sob ângulo literalmente palpável. Taco, tapete, sapato. Perto do chão. Boca. Traste, som, metal. Voz.
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para Chico Fortunato
Este azul de força lírica, de serestas ao violão. As fotos dos cinco filhos remam: sons que se repetem pelo quintal em dias de festas. Estivemos juntos no amor por uma fêmea. Era a nossa casa, invadida pelos familiares restantes. Os parafusos que estavam nas gavetas da mobília do quarto, no espelho onde espantei os medos, misturavam-se às pedras. Andava de bicicleta em busca de pedras. Pulava o muro da escola abandonada para brincar no parque, e correr da mãe. Que correu de seu pai. E abandonar o posto da hipocrisia. Subimos os dois e você e os outros netos a escada da maquinaria da igreja cuja foto hoje é ostensiva. Tempo de pequenos ritos acabados. Divergência que a vida toma.
Ponte no arquipélago das lembranças. Pequenos espasmos. Lembro-me que dizia sobre os parafusos terem que afundar, do rodo segurando a janela do banheiro para ela não bater. No andar de cima, onde também já moraram morcegos, quartos e quartos para as expedições infantis. Domingo de massa caseira . No sábado, vinho de garrafa e frios.Os relógios da casa configuravam amor.
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Mariana
Casca de mexerica e sementes no prato. Menos que meio dedo de vinho ao lado do computador. A planta secou dentro da terra. A casa querendo entrar em seus sonhos. Um pulo entre cidade e ninho. Fecha o dia com pílulas e a promessa de sinusite. O tempo tem corrido à frente. Por mais que se esforce, a música é descompassada. Atrela afazeres e satisfação sem equacionar. O sorriso às vezes comparece. As mãos se ocupam de forma que não vê oportunidade de alongá-las. Em uma aula descobriu que o menor dedo do pé esquerdo está virado com a unha para baixo. Possível joanete. Não se pode calcular o efeito desta descoberta.
foto: Cy Kuckenbaker
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Nora por Fabricio Menicucci |
Nora Fortunato nasceu em Jundiaí, SP, em 1975. Tem poemas publicados na revista Inimigo Rumor (números 18 e 19), na revista Modo de Usar & Co (número 2), na revista francesa Action Poétique, com a antologia "Poètes du Brésil aujourd´hui" e no blog as escolhas afectivas. Faz e fez cursos na Estação das Letras (RJ). Lançará em breve seu primeiro livro, Dublê.