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POEMA DE RONALDO CAGIANO

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CONVERSA COM MURILO MENDES

         para Moacir Amâncio



A poesia está em pânico, Murilo, 
diante desse mundo
e seu quartel de demônios.

Penso em Almodóvar
enquanto minhas mãos fatigadas
enchem uma bacia de estercos
para adubar novas dúvidas.

Penso em Kiarostami
enquanto Deus não se envergonha
de suas núpcias com o silêncio:

não sabe o nome das coisas
não sabe o peso da vida
não socorre a mulher que será apedrejada em Teerã
negligente com o festim das guilhotinas
surdo à algazarra dos bárbaros
cego diante dos coturnos de 64
ouvidos moucos aos dissidentes de Kadafi
impassível à germinação da morte

e não percebe que,
nessa cordilheira de livros
há mais vida que nas igrejas
                          nos palácios
                          na justiça

que em cada canto do planeta
explodem cogumelos de ofensas

E eu penso em Ginsberg,
enquanto me sinto nômade
nesse mar absoluto
de tristezas renovadas

e uivo nas esquinas do inferno
comendo das pastagens fúnebres
enquanto na noite ocidental
um silencioso vírus
desintegra a ética
e blasfema contra 
toda existência

                                
Sim, Murilo,
estamos vestidos de alfabetos
mas não descobrimos nossas culpas
não conseguimos nomear nossos delitos

a vida passa por nós,
como o Paraibuna que
atravessa Juiz de Fora
sem olhar para os lados

Indiferentes como ele,
entramos e saímos 
como água esquiva
serpenteando entre ruínas
ziguezague líquido tentando renunciar
                                  ao esquecimento.

Quantos cultivam lírios
em autárquicos vasos de plástico
eles não sabem que a política 
ou é paralítica 
ou é criminosa

O amor 
repatriado tantas vezes
não nos salvou dos esgotos
             nem cauterizou nossos desgostos.

O dia começa a clarear
abraço de novo o calendário
e não sei que dia é hoje,

mas
enquanto escrevo poemas no vazio
o pensamento,
animal estropiado e sem rumo,
leva-me até Win Wenders
ou me mostra 
os relógios derretidos de Dali

E o vento
que em algum lugar
(será no Vietnã? será em Bagdá?)
tateia os morros
e segue seu curso penteando os arrozais,
ensina que há de ter nome
a bile incontida dos meus atos


Contemplo a cidade (uma estufa, uma salmoura):
e sua falta de rumo nas coisas

observo os homens:
estão sisudos, inertes, detidos, incomunicáveis
picados pela mosca da indiferença

Olho dentro dos ônibus, táxis, automóveis, metrô:
carruagens de manequins

As ruas e suas vísceras
As avenidas e seus coágulos
As praças e suas próteses

O asfalto obturado
expõe os delgados caminhos da solidão
nessa ilha venenosa e incurável
em que escre
                     vivemos.




Foto: Luca Pierro


*    *    *





Ronaldo Cagiano é mineiro de Cataguases, viveu em Brasília e desde 2007 reside em São Paulo. Autor, dentre outros, de Dicionário de pequenas solidões (contos, Língua Geral, Rio, 2006) e O sol nas feridas (poesia, Dobra Ideias, SP, 2011), organizou a antologia “Todas as gerações – o conto brasiliense contemporâneo” (Ed. LGE, DF, 2006).




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