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AS MORTES PROSAICAS

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Se amor é posse,  o pretenso possuidor
se esforça por inumar o recém-defunto:
ele mesmo, o  que é seu, como é seu o amor
agregado em solidão, disjunto.

Tantos mortos nada valem, todos juntos
- contra-exemplos do encontro acalentado
um dia, um minuto, o mais que na caixinha
do tempo  o tique-taque  vigiou, e tanto,
 
que se tornou o primeiro a sufocá-lo,
sua primeira morte, a do amor sob o relógio.

Tão prosaico, outras ainda vieram, viriam,
virão ainda que a todo gato astuto. Por que não a ele,
Amor que sobe muros,  esgueira-se entre cacos,
passa sob portas, azula por frestas?

Amor assim convida a arestas e quando
se abriga na cálida concha de um colo
adormece sua vigília, amortece toda fibra,
arrisca uma segunda morte entre almofadas.

 (Nunca se consuma. Amor escapa.)

 A posse abrange ainda filhos e nadas,
confundidos comezinhos na vastidão
de um latifúndio deserto de afetos,
aberto sempre no entanto às incursões

 da polícia, dos vizinhos, dos patrões
todos armados e implacáveis na caça
até onde mais for o faro insaciável que
produza  outra morte quem sabe entre mandíbulas,

as mandíbulas do tempo, o calibre
súbito fechado e fatal na não-espera.

Uma extensa romaria de advogados,
sacerdotes, meganhas, promotores,
promoters, liberais e assalariados
toma de assalto as ruas acesas

num acordo tácito entre incertezas
dentre as quais a única certeza avulta
a de que o amor é posse – e  rumam todos
na direção da execução pública

ou privada, entre seringas, olhos de sogra
coxinhas, empadas, o sangue em torvelinho
descontrolado ante doutores que prescrevem
sofreguidão e abstinência equilibradas.

Mas cumpra-se a sentença, clamam todos.
 
Como um aleijão súbito em delírio,
um clunâmbulo, despossuído réptil
a locomover-se resignado
aos desígnios da natureza implacável,

aquele ainda não morto se ressente
da sobrevivência,  e sonha como antigamente
- quer repousar, mas é genuflexório
ou é o beliche legado pelo faquir –

 sonhavam os poetas berço e campa
à sombra de entidades benfazejas
que lhes ensinavam o desapego ante o pavor
da solidão iminente, e lhes mostravam
um outro nascimento, outra possibilidade
de se fingir liberto para sempre

no abrigo de um baldio mais afável,
garantido pelos límpidos prospectos
de conforto, apólices, designes arrojados
em sete palmos sete vezes parcelados.

Assim Amor respira até chegar  sua hora
(sempre diferida, anti-relógio do Universo)
a sirene da ambulância não é para ele que soa
ele não é por quem dobram os sinos
não é por quem sobram as doações

imprestáveis até para desabrigados.
Amor é posse exercida sobre o que ama
e a catástrofe é cega quando se engana
quem jura que assim é o amor
- um doce projeto de mútua anulação.

Amor não morre, morre aquele que sua posse
insidiou – posse,  falsa deusa luminar.



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