Resumo
Resultado de entrevista realizada com Antônio Sodré: poeta que passou toda a sua vida na cidade de Cuiabá, capital de Mato Grosso. Um dos expoentes mais fortes da poesia e música marginal, ele arquitetou em sua escrita o que de mais forte pode ter a vida: ser uma extensão da arte. Distraído, pensativo, no entanto, irônico e audaz, Sodré viveu como morreu: no ano de 2011 num dos vários saraus de poesia realizado em uma noite quente falece o Poeta de la transmutación - como ele mesmo se definiu - declamando uma poesia. Muitos pensaram ser uma performance.
Palavras-chave
Poesia – Cuiabá – Vida.
Abstract
Resultado de entrevista realizada con Antônio Sodré: poeta que pasó toda su vida en la ciudad de Cuiabá, la capital de Mato Grosso. Uno de los más fuertes de la poesia e de la musica marginal, ideó en su escrita aquello que de más potente pode tener la vida: ser una extensión de la arte. Distraído, pensativo, sin embargo, irônico, audaz, Sodré vivió y morió del mismo modo: en año de 2011 en uno de los vários encuentros poéticos realizados en una noche caliente muere el Poeta de la Transmutácion – como él mismo se define – recitando un poema. Mucha gente piensa que és una performance.
Palabras clave
Poesia – Cuiabá – Vida.
I
A cabeça erguida,
o vento que balança o cabelo
e o meu próprio zelo
onde foi parar?!
II
Passos no corredor marcando/marcando as
horas,
trafegam sem parar.
Vozes no burburinho recheiam o ar,
onde uma brisa leve
varre de leve a manhã.
Antônio Sodré
Como nuvem que vai disposta aos desejos do vento os cartazes pendurados num varal são solfejados no saguão do Instituto de Linguagem da universidade. O poeta Sodré caminha até a banca, antes ia de bicicleta. Os passos lentamente carregam os leves pensamentos do poeta da transmutação.
Pensamentos distraídos que rondam os corredores da UFMT, na banca onde Antônio Sodré passa as suas tardes na sombra mormacenta do calor de Cuiabá. Quando fala em sua poesia deixa entrever que é ela quem manda, fruto de meditação a poesia é uma paisagem que se deixa ver pelo poeta. A poesia sem forma é vista pelo poeta sem forma. A poesia completa é autônoma e se deixa conhecer.
Sodré é ser mutante, incorporou o tempo a seu próprio jeito: os passarinhos nas ruas da cidade que ele toma por rédeas próprias, num “galopar torto y veloz”. Sodré poeta é poesia, do dia sua distração. Ser poeta da transmutação é distrair-se com os rodopios da Terra que com seu movimento dilui dias, meses, tempo, fluidifica céu, sonhos, memória, amores, serafins sem asas.
O desvario do muito, do exagero, pode levar num fluxo errante ou estacionar permanecendo no tempo. Continente de migrações, o espaço fica num grau de movência em que o percepto abre-se e fecha-se no paradoxo da instantaneidade, pronto a seduzir, derreter pessoalidades e ser absorvido por um grau de intensidade qualquer afetando-as. Talvez o paradoxo maior da instantaneidade esteja na capacidade de se traçar uma linha de continuidade, habitar um estado de permanência, mas que só pode ter essa potência da permanência pelos esbarramentos dos fluxos que resvalam essa pretensa calmaria, e o resultado é um indivíduo trêmulo em relação ao que é: profundidade e superfície, sendo esta tanto uma camada mais externa do corpo, quanto a mais interna do espaço.
O cotidiano que passa por seus olhos, como em um registro fotográfico é transposto para as poesias em forma de cinema: de tão imagético e sensorial que são as palavras que molham as folhas como chuva rala ritmada em seu olhar, um tanto terno, como o podem ser um personagem do cinema mudo. É como explica Mário César Silva Leite (2005) no prefácio escrito no seu primeiro livro produzido por uma editora, o Empório Literário – versos e diversos: “E que nos conduzam e confirmem as vanguardas! Assim, era isso que Antônio Sodré difundia pelos corredores em muitas línguas, em outras línguas, em línguas não línguas, profundamente poesia. Uma poesia em ebulição e inquieta que não se organizara ainda em textos, sentidos e/ou formas” (p. 7).
Sua poesia simboliza o que Sodré é e por isso transmuta-se continuamente poeta e poesia, numa alucinação sua, sonoramente perceptível em seus poemas: que é quando todas os dias se apresenta também aos olhos dos passantes, modificando com delicadeza, por ser um ponto de poesia no espaço acadêmico de pernas que sobem e descem a rampa do saguão, professores, alunos, carregados de livros, muitas vezes apressados para a poesia que se estampa em frente à janela banhada de sol.
Antônio Sodré, ou Sodrezinho para íntimos ou quase íntimos, é herança da década de efervescência cultural que a cidade vivia na década de 80. Os agitos dessa época criavam grupos que discutiam cultura e outros que viviam em si mesmos a agitação e quebra dos valores culturais. O bairro Boa Esperança abriga o reduto do saber acadêmico, a Universidade Federal de Mato Grosso, e existia um forte poder de atração entre a comunidade em volta e os estudantes e agitadores artísticos que pertenciam à instituição, extrapolando os muros – que até então não existiam em concretude, esbaldando nas mesas dos bares inclinações poéticas, verborragias, loucuras e lucidez molhadas à cerveja e luar.
O espaço acadêmico e sua estreita ligação com a comunidade permitiu que no local fosse palco de reuniões e eventos como discussões sobre artes plásticas, poesia, música e teatro. Nesse sentido a participação de Sodré ocorreu como um artista multimídia abarcando para si a ligação com a arte da palavra e da performance, porém sempre com um sentido pessoal, íntimo, quase fechado nas próprias aflições de sua alma. A espera, o amor e a natureza são temas recorrentes em sua poesia.
A escritura de Sodré está nas poesias, já esteve nos seus vários cadernos de filosofia escritos à mão. Está no corredor do saguão do IL (Instituto de Linguagem da Universidade Federal de Mato Grosso) penduradas em varal. Mas está acima de tudo na própria encarnação da poesia que existe nos olhos de Sodré, nos seus gestos e modos, na sua doçura surreal quando o mundo que o rodeia, que lhe faz voltas se torna pano de fundo.
Ele se destaca por sua forma de pensar, pois pensa distinto. O poeta vivencia as poesias. E as poesias mais que formadas por ele são expressões de si mesmo.
Pensar Sodré com seu primeiro livro publicado por uma editora não é pensar que Sodré tenha virado produto, que tenha aderido ao mercado, ainda que de arte. Como a arte, a poesia nesse caso de Antônio Sodré, e mais que isso, a veracidade de seus sentimentos poderiam ser impressos e vendidos em livros que ironicamente se chama, em seu subtítulo, futilidades literárias?
O próprio poeta fala sobre isso:
Você pode pensar numa coisa mais de mercado, né? Que é uma coisa mais posterior, pode virar produto, a poesia pode... A arte pode... Tem que se produzir com uma coisa de qualidade, né? Não vai ser uma coisa verdadeira. Porque a inspiração não tem explicação, você pode estar aqui e dar vontade de escrever. Mas se pode trabalhar com a musicalidade das palavras, com rimas... De repente você pode fazer um jogo. Mas isso é uma coisa incompatível, porque quando a coisa vem de dentro ela já vem pronta. É o que acontece no geral, a coisa já vem pronta, principalmente com os poeminhas curtos. E também acontece de você trabalhar depois. Quando você pega o produto materializado, é outro aspecto, é uma mercadoria, do ponto de vista material ela é um produto como qualquer coisa, lógico que tem a essência que não tem nada a ver com isso. Tem aí a própria relação individual.
Partindo desse ponto de vista de Sodré pode-se perceber que entre a arte e o artesanato não há discriminação, o abandono da arte como profissão se expressa na vontade de que artistas se voltem para o princípio da criação artesanal. Quando Sodré nos fala sobre a inspiração, recompõem essa primeiridade, esses olhos voltados para dentro de si e abertos ao novo, buscando forças internas conectadas com os espíritos do universo.
Se o espírito que conduz a criação é parte desse homem conectado com as pulsões existenciais, o labor artístico não deixa de ser um lado de Deus que nos instrui a criar e elaborar formas de vida.
O sentido da existência e o posicionamento estético de um livro de poesia não subtraem, portanto, o contato que o poeta absorve da realidade, porque o raciocínio e a sua visão são próprias, como ele mesmo diz.
Seria isso um não-enclausuramento do potencial de vida do artista. Ainda que tenha a capacidade de criar produtos o seu devir não pode ser apreendido enquanto não lhe cooptado seu pensamento livre, seu desejo.
Perturbar as estruturas do pensar é do domínio da arte quando deixa de ser parte de um poder de mercado velhaco que as molda em fetiche, possibilitado pelo condensar do virtual e atual definidos por Suely Rolnik como acontecimento em que se dá:
(...) a passagem do transhumado (plano virtual, constituído pelos problemas gerados pelas diferenças em suas aglutinações) para o humano (plano atual, constituído pelos modos de existência criados como resolução para os problemas colocados no virtual). Mas o instante que antecede o relâmpago parece não ter fim: somos lançados numa espécie de vácuo (1995: 02).
É sobre essa desmedida do encontro e a sequência dos afectos e de um certo domínio dentro dessa improbabilidade que se alcança um levitar por entre brisas, e um certo levitar mais selvagem durante a guerra. Política de um corpo espinosista traçando lentidões e movimentos, envolvendo-se e impregnando-se num íntimo contato com o ambiente, afetando-o num grau, sendo afetado num outro... Nesse rodopiar de sensações atingir os sentidos dos super-poderes, reconhecimento de potências sim, entretanto um desígnio exemplar num dobrar forças adversas que nos atingem, fazer da temeridade um dejeto volátil pronto a ser desmistificado. Instantaneidade da “arte aqui visada só pode ser feita de momentos breves: a alegria é instantânea e os instantes que ela valoriza são apenas instantes” como nos diz Blanchot (2005: 27).
A arte invoca justamente esse lugar de perigo porque seu corpo é expansivo no ambiente: ele pretende chocar-se com outros corpos, com outros espaços de ressonância, e é por esse mesmo motivo que há ameaça na arte, porque sua matéria-prima principal é o pensamento e é nessa sem-forma positiva e de afirmação que induzirá o passageiro.
Fará do seu caminhar uma peregrinação, um sem-fim, proporcionando os acontecimentos. O pensamento que não se submete aos signos impostos regendo os desejos. O pensamento que advém de uma sustentação dos sentidos aguçados, ao funcioná-los que eles atinjam a velocidade onde o equilíbrio é possível.
Sua criação poética se distingue por ser produto, isso sim, de seu próprio sentido que ele define como sendo um olhar atento e um ouvido atento. Talvez essa atenção de Sodré se deva a sua distração. Mesmo parecendo antagônico essa relação binária é própria do poeta, quando define a poesia como “uma coisa meio dialética, quando você afirma uma coisa você nega ao mesmo tempo. Então não ter compromisso é uma forma de ter compromisso”. Essa relação descompromissada que para ele só afirma seu compromisso é a força determinante na sua arte.
Gostaria de recorrer a Deleuze e Guatarri na interpretação que Amália Boyer faz de seu conceito sobre a Máquina de Guerra como sendo não uma contraposição, um espelho, uma oposição de contrários entre ela e o Estado, que aqui representamos como o pensamento e comportamento uniformes, mas sim como “ambas formações, o Estado e a Máquina de Guerra, ocupam o mesmo campo, em que a interioridade descreve a formação dos Estados e a exterioridade aquilo que escaba e se opõem ao Estado” (p. 15). O que tem o poder que não é aprendido e nem tornado modelo pela ordem fica possível apenas ao que é mutante.
Sodré incorporou para si o codinome de Poeta de la Transmutación. Para ele a transmutação insiste em romper com o velho, sendo mais que uma mudança que se continua fixa a sua origem, a transmutação não. O sentido de transmutar é para Sodré como o esoterismo dos alquimistas que pretendiam transformar tudo em ouro, beira o inconsciente e é avesso ao racional e explicativo.
Há uma atenção e uma distração permanente que não permitem que Sodré tenha formatado seus pensamentos de forma padrão, seu comportamento muitas vezes não pode ser explicado ou entendido por ele mesmo.
Nos seus primeiros anos como escritor suas palavras tinham de teor filosófico, a base de seus conceitos era o estudo sobre o ser humano e o egoísmo, tido para ele como um dos sentimentos mais negativos na natureza humana. Ao se descrever diz: “Eu tento ser o mais democrático possível. Até porque até internamente tem a relação de poder com os próprios órgãos que habitam em nosso organismo”.
Quando Sodré diz que a poesia para ele surge de maneira espontânea, pronta a ser escrita, ele está se referindo a esse mesmo universo dos signos através agora da palavra em seu sentido pleno, e no corpo da poesia num sentido do encontro, como um ideograma talhado em ferro.
A filosofia e a religião tem uma coisa mais vinculada à verdade, já a poesia não tem isso, esse compromisso com a lógica e com a verdade. A poesia não tem compromisso. É uma coisa meio dialética, quando você afirma uma coisa você nega ao mesmo tempo. Então, não ter compromisso é uma forma de ter compromisso.
Então não ter que dizer a verdade é dizer a verdade. Entre pólos contrários, há o impulso de atração. Como disse uma vez Sodré “vou por essa estrada suspensa no ar”. Sodré hoje deixa o espaço inevitavelmente sem ele, ainda que ressoe nas suspensões seu olhar terno de um segredo leve como uma pluma, mas não foi sem deixar uma saudade no coração que lembra muito quando na infância perdemos o passarinho que acabamos de salvar.
A arte para Sodré vivia nele como instinto de vida, instinto de arte criadora, porque a ela, a criação, a arte, quando correm na mesma velocidade desprestigiam a morte, o que se acaba e nada alcança, para se perdurar como um canto da sereia, uma outra via, uma outra possibilidade, um outro canto poético, como nos diz Blanchot:
a arte não é mais capaz de portar a necessidade do absoluto. O que conta absolutamente, doravante, é a realização do mundo, a seriedade da ação e a tarefa da liberdade real. A arte só está próxima do absoluto no passado, e é apenas no Museu que ela ainda tem valor e poder. Ou então, desgraça ainda mais grave, ela decai sobre nós até tornar-se simples prazer estético, ou auxiliar da cultura (BLANCHOT, 2005: 286).
Bibliografia
BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
BOYER, Amalia. Devir bárbaro ou a potência do Caos. In: Nietzsche e Deleuze: Bárbaros, civilizados. Org: Daniel Lins e Peter Pál Pelbart. São Paulo: Annablume, 2004.
LEITE, Mário Cezar Silva. Mapas da mina: estudos de literatura em Mato Grosso. Cuiabá: Cathedral Publicações, 2005;
ROLNIK, Suely. O mal-estar na diferença. In: Anuário Brasileiro de Psicanálise, 1995.
Entrevista
SODRÉ, Antônio. Depoimento (agosto 2008). Entrevistadora: Ana Paula de Sant’Ana. Mato Grosso – UFMT, 2008.