POEMAS DE LUÍS COSTA
UMA ferida aberta na têmpora do poeta:
esta é altura em que as feras nocturnas
s’ afirmam
– benéficas.
( para o Luíz Pires Dos Reys)
LEMBRO-ME do barbeiro da minha infância:
a mão branda, os longos dedos finos aprumando-me a cabeça
e a navalha avançando, exacta, pela nuca loura
ao lado, flutuando na luz, a escarradeira
onde os homens cuspiam a obscuridade que os apoquentava.
e a água o nosso maior destino
Isabel Mendes Ferreira
ERGO-ME da água. do excesso das fontes. ergo-me sobre a água.
ardo. ando. pegadas de uma fabulosa podridão. os meu passos.
ando na noite da água. ouço os sonhos dos cavalos no fundo da água.
cego de luz,
atravesso as portas e as janelas fechadas, os espaços carnívoros,
as grandes falésias, as vozes dos mortos
no destino da água.
sou uma poderosa mutilação. o carrasco e a vítima na corda da água.
e deste modo emudeço. e deste permaneço. no cântico.
SEI da criança velha
da criança brutal que nada como um peixe antigo
pelos labirintos da minha casa
a criança de olhos muito azuis
com a boca cheia de amoras
com as mãos sujas de fezes
a criança sem palavras na cegueira das portas
a criança com uma faca na boca
a criança - minotauro
que se faz em mim ao meio da noite
com vários rostos
com máscaras primitivas
com uma doçura metálica
a criança que amo e odeio
uma cavilha de crinas cravada nas vísceras
uma lâmpada apagada
fervilhando ao centro de toda a minha luz.
HABITO este momento que nos envenena.
que nos abala. um assombramento.
uma orbita de planetas rebentando na escuridão.
o palato submerso no rigor do veneno.
uma morte maravilhosa.
uma morte cantante capaz de viver para lá do cântico.
uma morte. um movimento
de candeias na boca dos noivos antigos.
a beleza do golpe que nos atravessa.
como uma estaca de duas pontas.
uma estaca avermelhando a luz.
o súbito rasgo na carne. firme.
e o corpo electrizado entre a dor e o prazer.
uma revelação digna de todo o amor e ódio que nos alimenta.
como o regresso do filho pródigo ao colo
ensanguentado de sua mãe.
esta mãe que canta, sorridente, com as mãos mutiladas
à altura do poema.
QUE SEI eu de tudo isto? da noite
que corre das gárgulas, das flores, das fontes
dos animais deslumbrantes que pela calada me visitam?
vivo na espessura das estátuas. (indigno do vento. )
rente ao silêncio.
QUERO uma morte alta. isenta de rosas.
quero morrer como um cavalo sob a lucidez do relâmpago.
puro e cruel. sem morte.
FECHAVAM os olhos
e sentados à beira das fontes
aprendiam a ouvir
a doçura das navalhas
(a febre das cobras no peito das mães )
*
AGARRAVAM-SEàs estátuas
aprendiam a beijar
com a ternura das auroras devastadas.
ARREGAÇAM as mangas:
com o escalpelo abrem sulcos nos braços
para que a luz se liberte
e ansiosos bebem a urina dos cães
/ cantantes/
pela noite adentro.
ESTENDEM os corpos sobre as pedras das esquinas
em volta os sonhos e os cães
e trazem coleiras como cães e furos de amargura
e o abandono no nariz e nas orelhas
e as faces são jovens (por vezes belas e angelinas)
mas marcadas pelos bisturis da destruição
ao anoitecer flutuam como grandes morcegos
– o ouro das seringas
argumentando-lhes nas veias.
RODEADOS pela geometria da água avançam
procuram o meio - dia dos magníficos troféus sob os oásis embandeirados
quando os punhais relincham nos peitos dos avós
sabem , lá no fundo, que tudo não passa de um equívoco
um erro de luz, linguístico talvez,
pois quem pode soletrar a essência das coisas sem as falsificar?
quem pode dizer o indizível?
soletrar o silêncio e impor-lhe a astúcia do fogo humano
sem que antes se perca no labirinto das sombras
no ódio e no amor, nos excessos da luz, nas honras do crime
e sinta um álcool amarelo terrificar-lhe a garganta
duro e amarelo como um mel petrificado nas ânsias dos velhos?
nada pode ser dito sem o perigo da queda
sem o erro que habita os limiares e ilumina os salões
com uma fúria a que chamam o amor da verdade
nada pode ser dito sem o perigo da queda
e assim avançam pela corda bamba exímios equilibristas
os queixos belos e altos as coleiras brilhando ao pescoço
orgulhosos dignitários dos estandartes dos deuses
senhores da morte
ah.. ! mas tão perto da podridão que se ergue dos abismos
dos perfumes nauseabundos que os habitam
com os seus pequenos animais roxos que espreitam através das
frinchas, no puro silêncio das fezes.
EIN JEDER ENGEL IST SCHRECKLICH
Rilke
A ESTAS HORAS vejo o anjo com cabeça de cão.
vejo-o.
vejo como avança pelo meu campo visual.
como arde.
como se propaga.
vertiginoso.
como se revolta contra as coleiras deifícas.
e relincha.
com um céu quebrado nas pétalas dos dedos
relincha.
relincha
quase rachando a madeira do silêncio.
quero ouvi-lo.
quero saber-lhe o sabor das palavras.
o tilintar das suas correntes.
a sua dor metálica
crepitando nos açougues.
a brutalidade do sangueque lhe bate na garganta
e se alastra pelos jardins abandonados.
mas súbito
apaga-se
como uma lâmpada velha sob a fúria do machado
apaga-se.
Imagem de Picasso