pudim
come pudim no meio da rua
sacola nos braços
o prato nas mãos
a calda a escorrer
contra o congestionamento
a dentadura no leite
depois da sopa
come com avidez
alheia e diabética
antes da amputação
sem mesa ou apoio
no meio da rua
come o pudim
sob a luz condensada
em banho-maria a memória
e um perfume de baunilha
que o trânsito e a fumaça
as dívidas e a velhice
já não podem corromper
a segunda vez
lava os pés na água escura
que corre pelo meio-fio
o homem que até ontem
sorria com todos os dentes
mesmo dormindo ao relento
não entrará nesse rio
uma segunda vez
até porque
segunda vez não há
nem rio existe
somente essa água suja
que lambe o meio-fio
com restos de óleo e comida
mãos
depois as mãos
nessas circunstâncias
as mãos tremem
falo com a autoridade
de quem tudo perdeu:
a esperança não me avilta
não sei se respondi à sua pergunta
de todo modo agradeço
o aplauso dos que não me ouviram
atenção, degrau
planos que se erguem
comprimindo as partes altas
e solavancos brancos
quando papéis se espalham
o cabelo que tudo espana
e logo engancha
nas reeentrâncias
troca rápida de mãos na balaustrada
e o sanduíche de pés
queixos nos cotovelos
até que o chão me beije a boca
e a língua se desmanche em fogo brando
manual de instruções
cuidado: ágil
contém material sórdido
feche a puta ao sair
este fado para cima
a persistirem os sintomas
procure a cartomante
não ultrapasse a faixa amarela
não obstrua as esmolas
conserve a calma e agite
antes de queimar
escreva com moderação e
se estiver sodomizado
não entre no chão nem saia dele
cheques cairão sobre a sua cabeça
observe as luzes de demência
enquanto aciona as saídas sobre a asa
recolha as fezes de seu pai:
mesmo que os outros não vomitem
a rua é pública e um país se faz
com homens e tiros
agora aqui
este poema está sendo filmado
caso prossiga
o leitor e seus herdeiros
cedem ao editor
por tempo indeterminado
seus direitos de imagem
sorria, este poema está sendo
rastreado por satélite, por GPS,
está no Google Maps, no Facebook
em tempo real, perto e longe
em qualquer todo lugar
este poema compra ouro
faz amarração do amor
traz sua língua de volta
em cinco dias
este poema testa seu sangue
mapeia seu DNA
trafica seu sêmen
comprova a paternidade e reclama
o direito à pensão
não olhe para o lado
nem saia de fininho
este poema não o representa
porém toma a sua voz
e o corpo que ela maneja
feche os olhos e repare:
até seus gestos de protesto
estão agora aqui
imagem: Pierre Beteille
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Fábio por Pádua Fernandes, 2010. |
Fabio Weintraubé poeta e editor, doutorando em Letras pela USP. Entre outros títulos, publicou Sistema de erros (1996), Novo endereço e Baque (2007). Por Novo endereço obteve o Prêmio Especial Casa de Las Américas em 2003. Saiba mais sobre este autor aqui (wiki), aqui (germina), aqui (entrevista na germina) e aqui (antonio miranda).