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Pequena Cartografia da Poesia Brasileira Contemporânea: Aline Rocha

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Por Marcelo Ariel

Existe uma força da poesia, que nasce do misterioso  deslocamento que ela é capaz de fazer dentro do uso corrente da língua criando a possibilidade do poema como uma conversação contínua entre duas interioridades, algo que quando acontece exemplifica bem aquilo que Paulo Leminski disse nos anos 80 em seu curso ‘ Poesia oito lições’, como é forte a poesia que nasce daquilo que deveria ser o nosso modo de falar e de viver cotidianamente, nos poemas da jovem poeta Aline Rocha, percebo essa intenção de transfigurar a linguagem cotidiana em poema, a maior força da poesia contemporânea é seu mergulho dentro do dialógico e sua ruptura com o monólogo da perplexidade, grandes poetas como Drummond & Ana Cristina César   tensionaram até a anulação este recurso que ora se vale do sentimento trágico do mundo ,ora de um certo distanciamento irônico, A geração a qual pertence Aline Rocha tem essa missão de ruptura com o poema como efeito da perplexidade diante do mundo,  a partir de um estranhamento e deslocamento dialógico da linguagem cotidiana, talvez um novo rumo para a poesia brasileira, esteja sendo buscado por esta nova geração de jovens poetas, representada aqui por Aline Rocha.  Segue abaixo uma pequena entrevista  seguida de uma   seleção de poemas  feita por ela a pedido da Mallarmargens...

Marcelo Ariel : Como você vê a sua relação com a chamada ' geração marginal', Cacaso, Ana C. , Chacal, Roberto Piva e outros, existe alguma ' angústia da influência' ou tensão ou você se vê desvinculada de qualquer tipo de contágio ou contaminação por esta geração?

Aline Rocha:    A Ana Cristina, o Cacaso, o Piva e outros escritores desta mesma geração, como o Caio Fernando Abreu, Wally Salomão e muitos outros, exerceram sobre mim uma influência brutal e decisiva, mas não apenas textualmente. A influência se deu sobretudo no que diz respeito à maneira como todos eles encaravam a literatura e a dimensão fundamental que ela atingia em suas vidas. Uma noção de literatura como uma maneira de estar no mundo, de existir (tanto como leitor quanto como escritor). É dessa forma que eu encaro. Não é uma profissão e nem um estado; não é temporário e nem permanente, é uma essência que eu posso transformar no que eu quiser e manipular da forma como bem entender. É liberdade!!!!

MA: Qual seria o centro para o qual converge tudo o que você escreve?

AR:    Não sei se posso chamar de centro, mas eu gosto de falar sobre gente. De contar histórias, imaginar encenações e jogar com as possibilidades dialógicas. Isso implica uma série de questões que me atraem muito: o eu, o outro, o dúbio, o duplo, o observador, o observador do observador. As pessoas em geral, o humano (e não o humanoide), são como constelações que me guiam quando escrevo. Ou pelo menos no Gravando. E aí entra o ritmo. Afinal literatura é ritmo, poesia é ritmo, a arte em geral é ritmo que se estende de um corpo ao outro. Quando você lê um livro, ou assiste a um filme, enfim, quando você está diante de um quadro ou ouve uma música que mexe com você, seu corpo entra em consonância com a obra a partir do ritmo que está sendo proposto. E quando me refiro a isso, penso em termos bem concretos: as batidas do coração, a respiração, o olhar, a dilatação da pupila, a garganta seca, a vontade de trepar, a vontade de chorar. Fazer arte é lidar com seu próprio corpo e com o corpo do outro através de uma tensão criada pelo ritmo. É lindo e dá tesão. Eu não sei você, mas quando me deparo com uma obra que mexe comigo tenho vontade de correr, de me movimentar, liberar adrenalina. Eu achava que isso acontecesse só comigo, mas outro dia, num bar, conversando com alguns amigos, falei com eles sobre essa sensação e em certa medida todos sentiam algo parecido, precisavam se movimentar, andar, falar alto, rir.  É disso que estou falando. É assim que penso o ritmo e é assim que o entendo no que escrevo.

MA: Na sua opinião, qual seria a função social da poesia nos dias de hoje?


AR:    Pra mim, se a poesia – e a literatura em geral – tem alguma função social, é a de exercitar o olhar sobre o mundo, de fazer enxergar possibilidades no mundo no qual se vive, mas que antes não estavam tão evidentes. Isso pode ter desdobramentos políticos e pessoais, tanto para quem escreve quanto para quem lê. Seria um instrumento de estímulo de perguntas e respostas que vão aparecendo e construindo o indivíduo, algo que te ajuda a estar atento ao que acontece ao seu redor, de entender as nuances da vida e dos discursos que a compõem. Mas disso eu não tenho certeza. A função social da poesia é um tema no qual penso muito, mas que ainda é uma incógnita para mim. Por vezes eu vejo a poesia sendo usada como “objeto de intervenção social” de um jeito careta e oportunista, vejo a poesia sendo estuprada pra suprir “necessidades” sem levar em consideração o lance do olhar que eu falei agora há pouco. E acho que não é por aí. De qualquer maneira, penso agora em tudo que já foi dito sobre isso: a literatura como instrumento de oposição ao poder, de autonomia individual, de estímulo à imaginação, de contraposição ao mundo utilitário etc. Mas pra que ela chegue a estes estágios, tem que deslocar o olhar, assustar, mostrar as possibilidades do que e de como se pode ver, de um jeito gostoso, lúdico, envolvente, corpóreo.

MA: Você lança seu primeiro livro em Novembro deste ano, fale um pouco sobre este livro?

AR:   Em novembro lanço o Gravando, meu primeiro livro de poemas, pela Editora Patuá. É um livro que trata de cenas, de realidade, de fantástico, de vida e de morte. Trata do que está dos dois lados da câmera e de todos os lados da existência.

MA: Como você vê a cena literária do Brasil de hoje, sendo editora e escritora, você conseguiria esboçar um quadro a partir destas suas duas vivências ?


AR:   Há algumas semanas assisti a uma palestra do Paulo Henriques Britto na qual ele dizia que a grande proliferação de poetas hoje é totalmente benéfica na medida em que apenas assim seria possível pincelar a produção e encontrar dentro dela vozes com qualidade, vozes que realmente têm algo a dizer. Ele toma como exemplo o caso da música brasileira nos anos 60 e 70. Concordo com ele, mas me pergunto: será que o que está sendo produzido na atual literatura está realmente sendo pincelado? E principalmente: quais são as instâncias que estão pincelando esta produção? Durante o tempo que trabalhei na Editora Patuá fizemos um trabalho magnífico, muitos bons poetas inéditos foram publicados, arte de boa qualidade veio à tona, abriu-se uma alternativa inédita no tenebroso atual mercado editorial. Mas não posso deixar de problematizar uma questão: para quem estamos fazendo isso? Para os já estigmatizados círculos de poesia? (E isso me remete à questão anterior sobre a função social da poesia nos dias de hoje). De forma alguma desqualifico todo o trabalho que vem sendo desenvolvido acerca da disseminação da poesia por diversos grupos, não apenas em São Paulo. Mas acho interessante colocarmos nosso próprio trabalho em xeque para entender e construir a verdadeira razão de ser dele. Muitas vezes dizemos e fazemos uma porção de coisas como se estivéssemos falando para o mundo quando na verdade estamos falando para meia dúzia de amigos. Todos nós, ninguém está isento. E é necessário estar atento a isso.
Há uma cena em minha vida que me marcou muito. Logo quando comecei a trabalhar na Casa das Rosas – Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura (experiência única e fundamental para alguns caminhos que decidi tomar), em meados de 2008, uma mulher que visitava o lugar me perguntou (após conhecer todos os cômodos da casa, após visitar as exposições, após passar pela biblioteca e apósver o folder com a programação): “Mas aqui não é o espaço de poesia? Onde é então que eu encontro a poesia?”. Foi um baque. Me fez perceber que o diálogo com o leitor deve ser estabelecido com maior cuidado. Conversei muito tempo com aquela mulher, apresentei coisas a ela, e não soube entender muito bem o que ela esperava sobre a poesia, mas seja lá o que for, ela não encontrou ali.
Mas vejo um cenário muito rico na literatura de hoje, no que é escrito. Porém é preciso explorá-lo mais, fazer com que as potencialidades se expandam. Não penso que a literatura esteja em crise (como muitos afirmam), porque para mim a literatura é um permanente estado de crise, em todas as instâncias que a compõem. Se há, hoje, uma crise na literatura – especialmente em países como o Brasil –, essa crise liga-se muito mais a questões práticas do que a questões filosóficas. Quando me refiro a “questões práticas”, penso em tensões próximas e palpáveis não apenas aos literatos, mas também – e, talvez, principalmente – a toda uma sociedade que gira em torno do livro. Ou seja, a crise e as transformações estão ligadas a todo o sistema de produção, recepção e disseminação da literatura. Sem falar no sistema de educação. Mas pensar em crise pra mim é uma tautologia, afinal não estamos falando de produção e recepção de carros, computadores, celulares, que podem ser mais ou menos estáveis de acordo com as tendências do mercado. Estamos falando de arte e arte é desequilíbrio.

  

Visita

Pouco se sabe do dia em que Rosinha apareceu,
mas sua pele era mais dourada. O olho brilhava
que dava gosto. Dona Fátima já esperava no
portão, e a menina vinha calminha, dava pra ver
de longe. Longe, tão longe, que a vista até
doía de tanto forçar. Depois que Rosalinda chegou
até canção teve naquela casa, mas pouco se sabe.
O que se sabe bem é que no final da tarde, depois
do almoço, e depois do café, e depois do doce de
amora no pote, a Rosa deu um abraço esquisito de
forte naquela velha solitária, segurou bem a
cabeça dela e disse aquela frase que faz sentido.
E aí Dona Fátima estremeceu, e os meninos da
bicicleta pararam; o fusca que cruzava a esquina
parou; a Solange que varria a calçada parou;
e até a flor que caía do ipê também parou se
bem me lembro, e até eu que não fazia nada parei
quando a velha falou de um jeito meio calado
meio cantado, meio dizendo sem querer dizer,
mas na verdade dizendo porque tinha que ser dito.
Tudo parou quando Dona Fátima viu a menina
indo embora de novo e disse: Apareça mais.



Córdoba

Da janela do meu quarto posso ver uma das janelas do convento
Nossa Sra. Imaculada Maria de Jesus. Seguramente é um quarto.
Quando chega a noite, sento em minha cama a observar as intimidades vizinhas,
mas não há ninguém, apenas uma luz amarelada de um abajur do século XIX.
Imagino que a velha senhora
(por que velha, meu deus? Existem também freiras jovens, joviais)
Esteja lendo um dos livros proibidos pela Inquisição.
É verão, a noite está quente e cheia de mosquitos, então penso que logo
virá fechar a janela para que eles não piquem seu corpo.
Como não vem, imagino que não os tema
porque veste aquelas roupas de freira que cobrem todo o corpo,
não me lembro agora como se chamam.
– queria muito saber o que veste enquanto lê seu livro
proibido pela Inquisição sob a luz do abajur do século XIX –
A noite está quentíssima e pela minha janela vejo entrar um pernilongo
que pousa direto no meu peito e me detenho por alguns segundos,
poucos segundos, talvez milésimos, me detenho em sua estranha
coragem, o vejo ali, pousado no seio esquerdo,
(os mamilos estão duríssimos), com um leve sopro o retiro de mim
e sigo com o olhar o seu trajeto em direção à janela vizinha
Agora fechada.
Vejo meu rosto refletido à luz da lua.



Este poema foi escrito na cidade de São Paulo

Repara: hoje as ruas parecem mais calmas.
Não quietas, veja bem, não nesse sentido: mas
parece que todos desceram na estação exata.
Quando estiver à calçada, repara bem nas frases
que conversam inertes no muro, nos orifícios do muro,
na história deles. Lembra que tijolo por tijolo, alguém
os firmou ali. Repara nas mãos que firmaram os tijolos

e na língua surda que compactua com a tinta fresca
embebida de memória e coragem.

Quando caminhar pelo asfalto maciço das ruas de hoje
e de repente entrar em desespero por perceber que
pisou na linha, repara: as linhas não demarcam mais
as sortes de nossas vidas. As linhas, agora, são listras
em nosso próprio corpo: Repara: hoje as ruas são lineares.
Este poema foi escrito na cidade de São Paulo.



gravando

porque a gente só sabe amar feito cinema
a gente é tudo fresco
e precisa ter a maldita cena
do casal correndo na chuva do beijo
em câmera lenta
ou então a gente ama feito novela
aquele melodrama todo
a gente devia era desligar a câmera
pra se amar, apagar as luzes
devia era se amar no camarim
me espera na saída


Aline Rocha nasceu em 1990 na cidade de São Paulo. É graduada em Letras pela USP e atualmente realiza pesquisa sobre literatura latino-americana contemporânea, além de escrever, lecionar e traduzir. Durante dois anos foi coeditora da Editora Patuá. Contatos com a autora: aline.rocha.oli@gmail.com

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