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"loucura assina com o crepúsculo"

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Fotografia: Mercedes Lorenzo


 
 
eça em havana

metido num hotel como em um museu: intocado intato
o quarto funciona como uma máquina do tempo
velho cômodo da literatura não inclui privacidade
livros como tesouros saqueados pela crítica
& a bela reconstituição autêntica de Havana
ressoam pela praia fraca tênue truncada
por andares alas quartos claustrofóbicos
sombras do vento carcomido nas torres
se entrecruzam se espalham & inundam
que fizeste ali trancado? que sugaste pelas fendas?
o quarto funciona como uma máquina fotográfica
 

 


a casa de frank gehry em santa mônica para uso próprio

embrulho velhos poemas como Frank Gehry embrulhava velhas casas
que tivessem um pouco a ver com sua esposa
(queria explorar a relação entre as duas)
amava sua esposa mesmo no auge do boom imobiliário
(pagou o preço mais alto possível)
construiu em torno delas uma parede de metal corrugado
podiam morar muito bem ali agora havia espaço suficiente
ambientes interiores se juntam em um diálogo com os exteriores
tudo em camadas em constante tensão
a casa é o centro a esposa o invólucro nada está terminado
 



 
a loucura alimenta os lobos que a devoram

guardo a notícia de que o sol incendiará a si próprio
enquanto o outro não souber enquanto não houver recuperado
o silêncio que ainda não chegou a minha vida
o silêncio que supõe a mortalidade dos peixes
admitamos momentaneamente que se poderia
meu nome num poema no lugar de deus
para ser falado por todos para ser temido resignado à sombra de árvores
para desorientar a desgastada música nos nervos
para dizer e continuar sem dizer
o que é um pai o que uma pedra
aqui agora a data da morte as demonstrações do medo
as piores confusões – traços/rastros do meu mundo
escrevo meu nome no rosto da loucura
(estou enterrada não subirei aos céus
náufraga não escutarei os sinos)
loucura assina com o crepúsculo
 



 
electra distraída na fotografia de ernesto timor

você mora na fotografia você sobra você sobrevoada
pela sombra da fotografia você olha triste cabisbaixa
será você desce será você sobe o ferro corrimão/será
você sabe a direção será você?/as pernas retesadas os
magros arcos por onde passo sirgo as margens mares
curvas numa escada cultivada por nenhuma cor/talvez
lilás talvez azul talvez cor que só você sabe enxergar
intacta escondida silenciada todas as coisas cegaram
a dor o toque a mandíbula/o sol a sintaxe o desatino

 



samuel beckett nas casas bahia

misturado a outros produtos móveis eletrodomésticos
que pode o livro de seu jeito inútil vir a ser consumido
ressuscitado ali sob luzes letreiros logomarcas
nada é mais garantido que um novo arquivo
Beckett menos perturbador que a centrífuga
tão clandestina turva intimidada é a oferta
quem se deixa pegar sem arder de paixão
Beckett aparelho psíquico peça de liquidação

 



para acabarem com as minhas fadigas

Apolo Poseidon Hermes volto a escrever-vos
(espero não ser o mesmo que importuná-los)
gostaria que vocês dessem uma olhada em algum dos meus novos poemas
que não fossem tão duros quanto os críticos contemporâneos costumam ser
fechados & sem nenhum afeto causando-nos muitos danos
a ponto de se tornarem rivais
sei que posso confiar em vós
que o outono tenha chegado
as naus voem o soturno céu
eu passo por tormentas ainda piores & resolvi aparecer de novo
para que o idílio não se arruíne

 



uma mulher no escuro da maçã

ela se volta
uma palavra áspera e duramente anasalada na boca
ela cospe as frases como se estivesse com raiva
sem tentar tirar conclusões, não há mais tempo
ela se volta. não será reembolsada
não há mais entusiasmo
uma mulher difícil de acompanhar, se dirá dela
imbrincada no silêncio como uma velha judia
o olhar é morno, reparem
o olhar sem flores e ramagens para nos ornar
ela não nos vê viver
exceto, talvez, em seu último mês de vida, ela viu a vida e decidiu
descartá-la como mais um dos começos em falso
alerta. cansada. escreveu romances de amor fixados no tumulto.
poemas que falharam como poesia e entraram na noite antiga indestrutível
– em disparada. para uma vida própria.

 



o fim do clássico

você me pergunta se a data de estreia está confirmada
se Verlaine virá ("responda por favor")
se Rimbaud virá com ele ("por assim dizer")
a parte extraordinária é que às vezes artistas ficam juntos
andam juntos fazem o que podem quando não dá para fazer o que querem
quanto mais livres mais sutis – quer dizer: há longos percursos indesbotáveis


 

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