o que a palavra diz
morro – e a palavra não diz
quem me quer
se te amo ainda
ou se me guardam ódio
aqueles que permanecem mudos
morro – e a palavra não diz
que um dia vi
do alto
um mundo em que não cabia
o que o olhar abarca
o que fotografei em olho-de-peixe
dessa vida
ficou gravado em ouro
entre corais
por isso quando digo morro
sonho
e a palavra é essa.
inútil paisagem
Mi táctica es quedarme en tu recuerdo // no sé como //
ni sé com qué pretexto // pero quedarme em vos
Mário Benedetti
saber que bebes,
em pé, o café na padaria
e não pensaste em mim
desde que levantaste
olho pela janela (conheces a paisagem)
penso comigo: mais um dia a vencer
enquanto te esqueço
e me esqueces
condição humana
visto preto e meu marido
é vivo
sou seu lençol
mãe de seu filho ausente
lavo seus colarinhos
não dormimos juntos
juntos
só colocamos
sal nas feridas
sutil vingança
estendo a cama e faço
a comida
entrego meu corpo e ainda
lavo a louça
mas
no varal
o lençol desfralda
a meio-pau
despedida
pratos e lençóis o dia
acossado e atento
meu corpo inaugurado
meu desejo
um sangue branco
de pudor e medo
a mãe de costas
o cachorro alerta
um zumbido tonto
de terror e ânsia
a torneira aberta
disfarçando o rito
um dia não voltaste
a mãe veio vazia
perguntei
mataste?
não respondeu
nem eu queria
vesti o que tinha
o resto numa trouxa
o tempo em que fizeste
ouvidos moucos
rígida e fria
eu te matava aos poucos
ante-sala
a noite passa lenta e fluorescente
purgam feridas
sobre a cama metálica
equipada para gestos mínimos
o corpo é vasto para delírios
e flutua inflado
pelos limites do quarto
onde se esgota
úmido
cada vez mais longe
da porta
na repartição
são tantas as vozes
tão pouca luz na única janela
que dá para o nada
por onde o nada
também se introduz
são tantos os ruídos
timbres em volumes
variados
lembrando gansos desatinados
a cortina em coma
espera que eu a chame
manto e se teça
invólucro do assombro
o arcaico se sobrepõe
ao milénio
bug ou babel
vozes ruídos sirenes
campainhas gritos motores
na repartição
o sol nunca o ar
vazado
azedo rarefeito
nenhuma luz na janela
nem ao menos
jogar-se dela
fome para todos
o homem chega ao trabalho
cumprimenta os colegas
alguns não respondem
lá dentro as cortinas o papel as máquinas
o pretenso comprador e sua pose
na hora do almoço todos vão ao restaurante
ele vai ao cais onde sopra a brisa
abre um livro e por momentos
é um homem sem paredes
retorna ao trabalho
cumprimenta os colegas
alguns não respondem
não importa
está saciado de uma outra fome
fraternal
três machos sem direito a cópula
cagam três vezes ao dia
num cativeiro moderno
recolha-se a merda
banho e ração
Ralph, Mateus e Subcomandante
Pastores pastoreando, passarinhos
ó como eu gosto de animais
três machos sem direito a cópula
ouvem o canto da sereia
no quintal de seu monastério
atacam-se decepando orelhas
mordem saco lombo jugular
em meio a latidos vão fazendo
vermelha a arena do combate
agora aí estão lambendo-se
lambendo-se as feridas como irmãos
palavras feias
do escombro ao cotovelo
descendo
cintura sexo joelho
crescente carícia em cada
orifício
num afã de mãos
a latejar no escuro
senha sinal insistência
suposição talvez
de alguma improvável
resistência
explicação nenhuma
quem sabe vício
memória de outro poço
não importa
do pé ao pescoço
poema gemido
a partir da segunda estrofe
duma lonjura (parecia)
chegavam palavras feias
(ele dizia tantas)
Sem nome ou dia definido
não sentir o chão
apenas vislumbrar seus dentes
brancos bruscos cintilantes
e o grave (sábio) movimento
dos duzentos dedos
tarde
o sol de inverno atravessou o dia
como em outros lugares
serenos céus de outras cidades
onde estive sentada em silêncio
me aquecendo
tantos anos
e ainda estou fria
esperando a hora
não ouço mais teus gritos
não corro mais atrás de ti
não te abraço
não gozo teu riso
não me espanto
trago em mim esse grito
que não rompe
esse tédio de sala de espera
quieta
onde minha ficha é a última
e talvez não haja tempo para hoje
foto: Marie Gilot
* * *
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Helena Ortiz, por Natália Grill |
Helena Ortiz nasceu em Pelotas, no Rio Grande do Sul, é jornalista e taquígrafa, Idealizou o projeto de poesia panorama da palavra – jornal de literatura. Poeta e editora (Editora da Palavra), reside no Rio de Janeiro. Estreou em 1995 com "Pedaço de Mim". Em seguida, vieram "Margaridas" (1997); "Azul e Sem Sapatos" (1997); "Em Par" (2001); "Sol Sobre o Dilúvio" (2005); "O silêncio das xícaras" (2009); "Alfinetes" (2012). Além disso, escreveu "baseado em quê?", em dois volumes, sobre a descriminalização da maconha. Mantém o blog "integrada e marginal". Leia mais sobre a autora aqui e aqui.