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12 POEMAS DE HELENA ORTIZ

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o que a palavra diz


morro – e a palavra não diz
quem me quer
se te amo ainda
ou se me guardam ódio
aqueles que permanecem mudos

morro – e a palavra não diz
que um dia vi
do alto
um mundo em que não cabia
o que o olhar abarca

o que fotografei em olho-de-peixe
dessa vida
ficou gravado em ouro
entre corais

por isso quando digo morro
sonho


e a palavra é essa.




inútil paisagem


Mi táctica es quedarme en tu recuerdo //  no sé como //
ni sé com qué pretexto // pero quedarme em vos
Mário Benedetti


saber que bebes,
em pé, o café na padaria
e não pensaste em mim
desde que levantaste

olho pela janela (conheces a paisagem)
penso comigo: mais um dia a vencer

enquanto te esqueço
e me esqueces




condição humana


visto preto e meu marido
é vivo

sou seu lençol
mãe de seu filho ausente

lavo seus colarinhos
não dormimos juntos

juntos
só colocamos

sal nas feridas




sutil vingança 


estendo a cama e faço
a comida

entrego meu corpo e ainda
lavo a louça

mas
no varal
o lençol desfralda
a meio-pau




despedida


pratos e lençóis o dia
acossado e atento
meu corpo inaugurado
meu desejo
um sangue branco
de pudor e medo

a mãe de costas
o cachorro alerta
um zumbido tonto
de terror e ânsia
a torneira aberta
disfarçando o rito

um dia não voltaste
a mãe veio vazia
perguntei
mataste?
não respondeu
nem eu queria

vesti o que tinha
o resto numa trouxa
o tempo em que fizeste
ouvidos moucos
rígida e fria
eu te matava aos poucos




ante-sala


a noite passa lenta e fluorescente
purgam feridas
sobre a cama metálica
equipada para gestos mínimos
o corpo é vasto para delírios
e flutua inflado
pelos limites do quarto
onde se esgota
úmido
cada vez mais longe
da porta




na repartição


são tantas as vozes
tão pouca luz na única janela
que dá para o nada
por onde o nada
também se introduz

são tantos os ruídos
timbres em volumes
variados
lembrando gansos desatinados

a cortina em coma
espera que eu a chame
manto e se teça
invólucro do assombro

o arcaico se sobrepõe
ao milénio
bug ou babel
vozes ruídos sirenes
campainhas gritos motores

na repartição
o sol nunca o ar
vazado
azedo rarefeito
nenhuma luz na janela
nem ao menos
jogar-se dela




fome para todos


o homem chega ao trabalho
cumprimenta os colegas
alguns não respondem

lá dentro as cortinas o papel as máquinas
o pretenso comprador e sua pose

na hora do almoço todos vão ao restaurante
ele vai ao cais onde sopra a brisa

abre um livro e por momentos
é um homem sem paredes

retorna ao trabalho
cumprimenta os colegas
alguns não respondem
não importa

está saciado de uma outra fome




fraternal


três machos sem direito a cópula
cagam três vezes ao dia
num cativeiro moderno

recolha-se a merda
banho e ração
Ralph, Mateus e Subcomandante
Pastores pastoreando, passarinhos
ó como eu gosto de animais

três machos sem direito a cópula
ouvem o canto da sereia
no quintal de seu monastério

atacam-se decepando orelhas
mordem saco lombo jugular
em meio a latidos vão fazendo
vermelha a arena do combate

agora aí estão lambendo-se
lambendo-se as feridas como irmãos




palavras feias


do escombro ao cotovelo
descendo
cintura sexo joelho
crescente carícia  em  cada
orifício
num afã de mãos
a latejar no escuro
senha sinal insistência
suposição talvez
de alguma improvável
resistência

explicação nenhuma
quem sabe vício
memória de outro poço
não importa
do pé ao pescoço
poema gemido
a partir da segunda estrofe
duma lonjura  (parecia)
chegavam  palavras  feias
(ele dizia tantas)

Sem nome ou dia definido
não sentir o chão
apenas vislumbrar seus dentes
brancos  bruscos  cintilantes
e o grave  (sábio)  movimento
dos duzentos dedos




tarde 


o sol de inverno atravessou o dia
como em outros lugares
serenos céus de outras cidades
onde estive sentada em silêncio
me aquecendo
tantos anos
e ainda estou fria




esperando a hora


não ouço mais teus gritos
não corro mais atrás de ti
não te abraço
não gozo teu riso
não me espanto


trago em mim esse grito
que não rompe
esse tédio de sala de espera
quieta
onde minha ficha é a última
e talvez não haja tempo para hoje




foto: Marie Gilot


*    *    *



Helena Ortiz,
por Natália Grill


Helena Ortiz nasceu em Pelotas, no Rio Grande do Sul, é jornalista e taquígrafa, Idealizou o projeto de poesia  panorama da palavra – jornal de literatura. Poeta e editora (Editora da Palavra), reside no Rio de Janeiro. Estreou em 1995 com "Pedaço de Mim". Em seguida, vieram "Margaridas" (1997); "Azul e Sem Sapatos" (1997); "Em Par" (2001); "Sol Sobre o Dilúvio" (2005); "O silêncio das xícaras" (2009); "Alfinetes" (2012). Além disso, escreveu "baseado em quê?", em dois volumes, sobre a descriminalização da maconha. Mantém o blog "integrada e marginal". Leia mais sobre a autora aqui e aqui.









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