Judging (1997), Mark Tansey.
− René Magritte, certa vez, apontou em Martin Heidegger uma incoerência entre suas preferências e a maneira como escrevia a respeito delas. Usava, então, como exemplo, o seu amor declarado por Friedrich Hölderlin: "Fala do significado filosófico dos poemas e a essência da poesia que quer definir se refere a outro conhecimento distinto do poético que não nos é necessário definir". O que parece a você ser necessário definir em se tratando de poesia? [1]
− A poesia não define outra coisa que o próprio pensamento. Gostaria, porém, de deixar claro o que entendo por pensamento: menos a costura racional dos conceitos do que todo e qualquer impulso de interpretação das coisas rumo à fabricação de seu sentido. Tal ato de fabricação é aquele que se mostra intenso e matizado a ponto de perfurar, como uma seta, as nossas experiências psicológicas e (mais do que nunca) as nossas percepções não embotadas das parcelas de realidade que julgamos, adiante, poder remontar sob o precário nome de “mundo”. A experiência poética se dá quando nos permitimos (ou nos é consentido) contemplar, desinteressadamente, o que nos cerca, toca ou atrai nas (infelizmente, cada vez mais) raras ocasiões em que conseguimos nos desvencilhar do abraço mortal do que se poderia chamar − na esteira de estudiosos como Guy Debord e Jean Baudrillard − de espetáculo ou de hiper-realidade, ou seja, dessa elisão homogeneizadora do real que as próteses tecnológicas (em particular, as que envolvem a visão) nos impõem de um modo astucioso e insolente.
Minha concepção pessoal do ato poético se deve a poucos, entre eles, Friedrich Nietzsche e Martin Heidegger. Toda vez que penso em definição, no que tange à poesia, não consigo deixar de me remeter às ideias de fluxo, potência e campo de forças. Por outro lado, também não consigo furtar-me a construtos conceituais como essência, saber e verdade. Sem dúvida, ainda mais do que o pensamento, é a própria realidade que a poesia se propõe definir: seja como profundidade, espessura ou totalidade intuída. Entretanto, o calor que as coisas expelem − no momento exato em que nos conectamos com elas, de uma forma aberta e direta, sem outra intermediação que a da sensibilidade − indica a sua precariedade, digamos ontológica, intrínseca... A percepção poética é sempre instável e incompleta. Diria que é, antes, estabilizante e completante de si mesma, pois demanda o improviso da palavra, a busca de uma materialidade que julgamos adequada para a expressão de nosso pensamento acerca daquilo que seja, sendo que ela nunca se arremata, visto se lançar a um gesto vertiginoso de completamento que não se basta.
Creio que a linguagem poética é milenar por isso: por preencher, como nenhuma outra via discursiva, essa experiência quente de um mundo eternamente capturável em seu esplendor de totalidade (falsa). O poeta intui o que o cientista e, mesmo, o filósofo não conseguiram com suas descrições minuciosas, universalistas, idealizadoras e, mais ou menos, competentes. Por isso, a poesia conseguiu resistir, até agora, a todo tipo de rigores e armadilhas. Com certeza, persistirá muito tempo ainda − na condição híbrida de incômodo e dádiva − ao menos enquanto persistir no homem a consciência de sua condição de humanidade honesta, isto é, a de um ente que se sabe fadado à imperfeição.
− Muitos comentaristas de sua poesia destacam nela um diálogo íntimo com a imagem plástica. Como você lida com a relação entre as imagens e a escolha das palavras para descrevê-las?
− Tenho buscado, desde a minha produção mais remota, este diálogo, mas ainda não estou certo de tê-lo realizado como deveria, poderia ou gostaria. De qualquer modo, a minha concepção de poesia é ampla o suficiente para que nela também caiba a minha paixão pela pintura. Desde cedo, aprendi a admirar poetas e pintores em cuja obra percebi a presença de um espaço adequado para tal diálogo. Entre os poetas, os primeiros que me chamaram a atenção foram Murilo Mendes, Tristan Tzara, William Carlos Williams, Wallace Stevens, Marianne Moore e John Ashberry. As poéticas ditas pós-modernas também se tornaram objeto de uma curiosidade (por que não dizer desejo?) que logo deixaria de ser acadêmica para se tornar visceral. O contato com o trabalho de alguns pintores contemporâneos, como os estadunidenses Eric Fischl, Mark Tansey e David Salle, veio reforçar um apego espontâneo pela relação entre poesia e imagem pictórica que eu já nutria desde os anos noventa, quando passei a conhecer melhor o dadaísmo e o surrealismo (a partir dos quadros de Kurt Schwitters, Giorgio de Chirico e René Magritte). Na ocasião, esbarrei com imagens de tal modo eivadas de poeticidade e vigor conceitual que não conseguiria ficar impassível diante delas.
Como tive a oportunidade de esclarecer em outras ocasiões, a relação que venho fomentando em meus poemas não quer ser a da simples ilustração. De pouco adiantará ao leitor a checagem das telas (e outras dicções alheias, já que também cito esculturas, instalações, poemas e canções) a que os títulos remetem. Não se trata ali de captar, com a palavra, a poesia da imagem ou de descrevê-la, textualmente, mas de transcriá-la em um processo de dupla captura. O objetivo sempre foi gestar uma espécie de transpoesia do pictórico na mesma proporção que os pintores citados acima tentaram gestar uma espécie de transpintura do poético (seria importante atentar para a definição de poético que formulei anteriormente). A referência-chave aqui seria o que Gilles Deleuze propõe como dispositivo figural em seu ensaio sobre a pintura de Francis Bacon.[2] Mais do que explorar uma possível continuidade discursiva entre o texto e a imagem, busco extrair a capacidade (potencialidade) textual da imagem, o que, de modo algum, implica em qualquer tipo de redução de uma à outra.
− Jorge Luis Borges observa uma distinção entre James Joyce e Stéphane Mallarmé no sentido da relação com a linguagem como um jogo. Para Borges, Joyce se divertia enormemente com a criação: “as aliterações, as consonâncias, são para ele um jogo, um belo jogo, do qual se ri”. Por outro lado, seguindo seu raciocínio, Mallarmé não se divertia em nada: “Sente-se sempre o esforço. Sente-se que está demasiado consciente do que faz”. Como você se relaciona com tal distinção entre jogo e consciência?
− Não me parece fácil distinguir entre uma coisa e outra. Não tenho dúvida de que todo autor tem consciência plena do grau de loucura e de agressividade que pode conferir às suas soluções poéticas (não comungo, com alguns críticos, a crença em uma isenção hipotética do Autor em relação à Obra). Agora, se conseguirá extrair de seus atos certa dose de divertimento ou de bom humor é outra questão. Gilles Deleuze aludiu algures às gargalhadas de Franz Kafka, acerca dele próprio e do que (e como) escrevia, quando na presença dos amigos mais chegados. No entanto, ninguém parece mais circunspecto do que ele na galeria de retratos da literatura europeia moderna. Como Jorge Luis Borges soube melhor do que ninguém, a relação com a linguagem como um jogo só pode ser viabilizada a partir de uma conscientização plena de seus poderes perversores. Por outro lado, é sabido que tal conscientização, sem dúvida, nos libera de uma série de bloqueios, o que, certamente, nos torna mais leves e predispostos ao riso, a acentuar o aspecto lúdico-libidinal dos acontecimentos.
Veja bem: Stéphane Mallarmé nunca me pareceu menos hermético do que James Joyce, nem suas inversões sintáticas menos insólitas que as propostas pelo irlandês. Uma antiobra como Igitur ou A loucura de Elbehnon pode ser muito divertida se considerada como a maioria encara, por exemplo, o Finnegans wake. Mesmo Borges, que muitos consideram um autor bem-humorado, amiúde não consegue disfarçar que uma dimensão trágica e infame subjaz em seu texto. Creio que tudo isso depende mais da recepção da obra do que das intenções do autor. No meu caso específico, nunca considerei divertido driblar, ao escrever poemas, as possibilidades expressivas habituais da linguagem. Sob este prisma, creio que me identificaria mais, aos olhos borgianos, com Mallarmé, pois o esforço da manipulação das palavras é demasiadamente árduo e as possibilidades de sua boa assimilação pelo leitor (de haver, no caso, uma comunicação efetiva entre escritor e leitor) mínimas, o que é frustrante e, portanto, doloroso. Algumas vezes (não muitas), devo confesso, porém, que consigo rir do que escrevo (e também por perder grande parte de meu tempo escrevendo) e desta situação de inércia intelectiva e embotamento sensorial que infortunadamente necrosa a nossa cultura. É o caso de um riso nervoso, é verdade, que, no meu imaginário, deve se assemelhar com o que acometia Joyce e fez com que Mallarmé o introjetasse.
− Ao comentar o teu Arcangelo (1991), João Guilherme Quental se refere a “alguma afinidade” de sua poética com a de Sebastião Uchoa Leite, embora considere distinto do bestiário de Uchoa o vigor simbólico que você aplica à sua seleta fauna. Haveria tal afinidade? Acaso você se sente vinculado a alguma família poética em particular?
− A observação de João Guilherme é perspicaz e capta um detalhe revelador, porém circunstancial. Embora admire a poética de Uchoa Leite, não creio de partamos do mesmo vigor imaginal. Ele me parece mais antenado na vibração que as coisas produzem quando, simplesmente, “vêm à luz”. Isso o inseriria em uma poética mais fática, muitas vezes brilhante em sua habilidade em se conectar à presentidade do tempo, à sua autoconstituição (crescentemente adulterada pela mídia) como fluxo de vida. Entretanto, se tivesse que me referir a uma família, me remeteria a uma que enfatizasse a suspensão do fato do tempo.
O que, em verdade, busco desenvolver são conceitos e sensações (assim como conceitos de sensações e sensações de conceitos) relativos ao que, no entorno, me passa sentido, porém situando-o no abismo da própria linguagem, embora hoje me pareça cansativo insistir nos apelos de sua materialidade fácil. Tento ser o mais criterioso possível no tratamento da palavra, porém ela não me atrai a não ser como um domínio onde é (ou se torna) possível instituir uma linguagem outra, uma que seja intestina a si mesma, que consiga sintetizar, como uma gramática geral, todas as racionalizações e vivências que as leituras superficiais deixam escapar pelos lados.
Tal domínio, embora cifrado, se revela instigante se insistimos em escavá-lo, em um acercamento em camadas, prospectivo, lento, porém sequencial. Não conheço muitos poetas filiados a essa família. Creio que Robert Creeley faz isso e eu o admiro. Por aqui quem chegou mais perto foi João Cabral de Melo Neto. Conheço, no entanto, vários artistas plásticos que perseguem (e atingem) este resultado. Talvez por isso ache que minha poesia deva tanto às artes plásticas quanto à própria literatura.
− Em todos os seus livros há capítulos compostos por uma prosa poética que, a rigor, tem sido, raramente, praticada em nosso país − mencionemos os casos de Américo Facó, Augusto Meyer, Murilo Mendes, Cláudio Willer, Roberto Piva, entre esses raros que a ela se dedicaram − constituindo-se em um verdadeiro gênero de exceção. A sua ausência não poderia ser vista como contraditória em uma modernidade fundada, entre outros aspectos, em uma ruptura de gêneros?
− Acredito que sim. Afinal de contas, a energia da prosa poética se funda na ambivalência de sua usinagem discursiva, em sua capacidade de transcender os limites habituais do “que se diz” (ou do “como se diz”). Aprendi a admirá-la cedo, não a partir dos Pequenos poemas em prosa, de Charles Baudelaire, ou de As iluminações, de Arthur Rimbaud, mas de experiências doloridas com Heinrich von Kleist, Lautréamont e Franz Kafka. Desde então − e graças à contaminação dadaísta e por René Char, Francis Ponge e Yves Bonnefoy − venho deixando-me atrair pela estética do fragmento não só na literatura, mas por toda parte.
Não escondo minha inclinação por poetas que conseguem dizer o máximo com o mínimo necessário. Admiro a concisão na mesma proporção em que admiro a figura, a capacidade de falar, longinquamente, das coisas, sem deixar de produzir um pensamento terrivelmente próximo delas. Pude apreciar isso, há pouco tempo, no trabalho de Norma Cole, uma poetisa canadense que vive nos Estados Unidos. Gostaria de fazê-lo ainda mais.
− Em A dor da linguagem (1996), você se pronuncia, à guisa de um prólogo, mencionando uma investida recorrente “em velhos cacoetes”, o que, de alguma maneira, estaria impedindo que alcance a “identidade diccional” que busca. Poderia nos falar um pouco acerca dessa identidade? Além disto, quais os motivos essenciais que o levam a escrever?
− Preocupo-me muito em ser contemporâneo na vida, no pensamento, na poesia, mesmo que, para tanto, precise atingir um nível quase insuportável de extemporaneidade. Digo contemporâneo, é claro, no sentido mais forte da palavra: o de estar ligado ao meu tempo, pensá-lo com seriedade, rir com ele (e não dele) de tudo aquilo que ainda lhe falta e ninguém vê. Problematizar a deriva de seu tempo, mesmo que este venha a deserdá-lo, eis o melhor caminho, a rota a ser seguida por todos aqueles que fazem questão de ser contemporâneos.
Quando usei, no prólogo de A dor da linguagem, a expressão “velhos cacoetes”, quis me referir a uma obsessão que, na época, parecia ser um grande obstáculo para a disseminação de meus escritos. Preocupava-me o fato de ser considerado um poeta hermético, de difícil comunicação e excessivamente acadêmico. Hoje, sinceramente, isso não me incomoda nem um pouco. Creio ter explicitado antes, com clareza, as razões dessa mudança de atitude.
De qualquer modo, a minha identidade diccional já está suficientemente delineada e só me resta assumi-la, lapidá-la, enraizá-la na produção futura. Como já disse, sentir-me totalmente contemporâneo em minha própria extemporaneidade, contribuir para que, em minha obra, a literatura de meu tempo se suponha, é o motivo que me leva a continuar escrevendo, apesar dos pesares.
− No prólogo de Belveder (1994), Lucio Agra se refere a “formas ultrapassadas”, como se fosse possível uma leitura temporal das mesmas. O que parece a você isto? Tais distorções, ao lado das esquematizações simplificadoras, ao invés de uma leitura dos matizes que particularizam cada obra, não resultariam no estado pleno de degenerescência em que se mostra a crítica que circula hoje entre a imprensa e os livros no Brasil?
− Por saturação, a crítica em nosso país há muito não justifica nem a própria etimologia. O que ela menos faz, hoje em dia, é “discernir” e “separar” (cf. grego krínein). Caracteriza-a o ressentimento e a má consciência assim como uma grande habilidade em disfarçar tudo isso com uma aura traiçoeira de encantamento estilístico, de teatralidade fácil e eficiência técnica.
Houve um tempo na vida em que apostei no valor ativo da crítica (como uma contraposição clara ao que considerava ser o papel inevitavelmente passivo do receptor). Hoje acredito bem mais no desejo de acertar inerente àquele que comenta algo. Isso se ele (o comentário) se der espontaneamente e não a reboque de alguma demanda alienígena ou de um sentimento mortificador.
Talvez importe perguntar, como disse Gilles Deleuze, em sua carta-resposta a Michel Cressole: “isso funciona, mas como é que consegue?” Poucos se contentam com tão pouco. Menos ainda percebem a grandeza desse ato.
[1] Entrevista concedida a Floriano Martins. Publicada, originalmente, em 2002 na revista eletrônica espanhola Espéculo, 22, Novembro-Fevereiro.
[2] Gilles Deleuze, Francis Bacon. Logique de la sensation. Paris: Éditions de la Différence, 1981.
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Jorge Lucio de Campos é poeta, ensaísta e professor da ESDI/UERJ. Publicou os ensaios Do simbólico ao virtual (1990), A vertigem da maneira (2002), A travessia difícil (2015), Lembretes filosóficos para jovens sábios (2019), O império do escárnio (2019) e as coletâneas Arcangelo (1991), Speculum (1993), Belveder (1994), A dor da linguagem (1996), À maneira negra (1997), Prática do azul (2009), Os nomes nômades (2019), Sob a lâmpada de quartzo (2019), Paisagem bárbara (2019), Através (2019), O triunfo dos dias (2019), A grande noite perdida (2019) e Desimagens (2019).