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A morte o risco o grito, Indiviso, Pedagogia dos monstros, Melhor assim, Figura para outras pessoas, Leda e o cisne, e O escorpião, sete poemas de Jorge Lucio de Campos

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Undivided (2004), Patricia Piccinini.



A morte, o risco, o grito


Viver é enfrentar riscos. Mais que isso: é assumi-los. Como ainda não sabemos quase nada sobre nada, não temos opções. Mesmo já maduros e marcados pela experiência, não deixamos de arriscar-nos. Quando somos jovens, então, nem se fala... Se estar vivo representa um risco, digamos, "universal", também nos fustigam os que poderíamos chamar de "intensos" e "específicos". Exemplifico: o praticante de esportes radicais, o alcoólatra e o tabagista, aquele que se alimenta mal, tem hábitos desregrados e é sexualmente promíscuo estariam entre os que se arriscam "intensa e especificamente". Aqui o risco de sofrer seria consequência de uma ação assumida como algo que por si só vale a pena.

Há também os que se arriscam contra a própria vontade e o quadro se torna mais grave. Exemplifico: em tempos de guerra, quem combate o faz, muitas vezes, não porque quer, mas porque é constrangido (pela lei, por um ideal ou por qualquer outro motivo) a fazê-lo. Porém, a pior das situações é a de quem se vê obrigado pelas circunstâncias a assumir as consequências de riscos a ele alheios. Infelizmente, tais casos não são raros em nossa vida cotidiana. Exemplifico: o fumante passivo, o cidadão ferido em meio a uma bulha repentina no centro da cidade, o parceiro irreversivelmente contaminado e condenado à morte por outro em quem − ao menos a princípio − deveria poder confiar, etc.



In: O triunfo dos dias (Clube de Autores, 2019).







Indiviso

a Patricia Piccinini

Há os que não se cuidam, os que lidam com o perigo, os que gostam de expor-se e os que simplesmente não têm sorte. Estes irão primeiro. Os demais ficarão por aqui perfilados, contritos, atentos, à espera de um sinal, proposta ou sugestão. Há também os que − pouco ligando para isso − continuarão dormindo até o meio-dia.



In: O triunfo dos dias (Clube de Autores, 2019).







Pedagogia dos monstros

a Jeffrey Jerome Cohen

Monstros, sejam quais forem, existem, mas não como gostaríamos. Tanto quanto temê-los nas páginas dos livros e nas telas dos cinemas, urge contê-los na vida, pois são extensões de desejos, projeções de potências, simples possibilidades.

Monstros, sejam o que forem, se acumulam em nossas almas ao nascermos, até não ser possível detê-los. Aí afloram e invejam, conspiram, odeiam, matam, destroem, violam, torturam, laceram, chacinam os que a eles se opõem.

Monstros, sejam quem forem, estão sempre entre nós, conversam e brincam conosco, dormem em nossas camas, dizem que nos amam, somos nós mesmos à espera de um chamado.



In: O triunfo dos dias (Clube de Autores, 2019).).







Melhor assim

a Emil Cioran


Nasci introspectivo: "Melhor assim"− disse a meu pai, após ver os brutos. Tornei-me seletivo: "Melhor assim"− disse a mim mesmo, ao conviver com tolos. Escolhi ser só: "Melhor assim"− disse a Deus, sem salvação. Hoje, no leito de morte, digo a ninguém: "Melhor assim"− logo estarei comigo.



In: O triunfo dos dias (Clube de Autores, 2019).







Figura para outras pessoas

a Samuel Beckett

No sino do medo comestível do olhar de fogo só vale, além de si, o  



In: O triunfo dos dias (Clube de Autores, 2019).







Leda e o cisne

a Hanneke Wetzer

Não lhes foi permitido amar nem conhecer o amor. Perderam os dons do afeto e da atração que se esvaíram e retiraram de suas vidas. Já não formavam um casal, mas uma dupla de identidade suspensa.

Com o tempo, viraram corpos sem alma. Foram reduzidos à função, depois ao declínio e à morte inevitável. A pele endureceu e virou uma crosta. O toque se perdeu no espesso da carne. A sensação criou raízes no duro dos ossos.

O mundo à volta foi se alargando e engoliu-os por completo. Enfim, perderam todo traço de humanidade.

Restou-lhes a condição animal de estarem por aqui, de ficarem para depois.


In: O triunfo dos dias (Clube de Autores, 2019).







O escorpião



1


Um homem se deitara no chão e remexia em um buraco. Outro homem que por ali passava, intrigado, perguntou-lhe: 

− O que está fazendo?

O primeiro homem respondeu:

− Um escorpião ferido caiu nesse buraco e morrerá se eu não tirá-lo. O problema é que, toda vez que me aproximo, ele tenta me ferroar.

O segundo, então, perguntou:− Por que você não se vai e o deixa aí para morrer?

O primeiro, então, respondeu: − Porque ferroar-me é da natureza dele e ajudá-lo é da minha natureza.


2

Um homem se deitara no chão e remexia em um buraco. Outro homem que por ali passava, intrigado, perguntou-lhe:

− O que está fazendo?

O primeiro homem respondeu: − Um escorpião ferido caiu nesse buraco e, quando tentei tirá-lo, o infeliz quase me ferroou. Por isso, irei matá-lo com uma pedra.

O segundo, então, perguntou: − Por que você não se vai e o deixa aí para morrer?

O primeiro, então, respondeu: − Porque vingar-me dele é da minha natureza.


3

Um homem se deitara no chão e remexia em um buraco. Outro homem que por ali passava, intrigado, perguntou-lhe:

− O que está fazendo?

O primeiro homem respondeu: − Um escorpião ferido caiu nesse buraco e eu o estou matando, aos poucos, com uma pedra.

O segundo, então, perguntou:− Mas, por que?

O primeiro, então, respondeu: − Porque essa é a minha natureza. Não há outra coisa a fazer.



In: Desimagens (Clube de Autores, 2019).









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Jorge Lucio de Campos é poeta, ensaísta e professor da ESDI/UERJ. Publicou os ensaios Do simbólico ao virtual (1990), A vertigem da maneira (2002), A travessia difícil (2015), Lembretes filosóficos para jovens sábios (2019), O império do escárnio (2019) e as coletâneas Arcangelo (1991), Speculum (1993), Belveder (1994), A dor da linguagem (1996), À maneira negra (1997), Prática do azul (2009), Os nomes nômades (2019), Sob a lâmpada de quartzo (2019), Paisagem bárbara (2019), Através (2019), O triunfo dos dias (2019), A grande noite perdida (2019) e Desimagens (2019).


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