Viver é enfrentar riscos. Mais que isso: é assumi-los. Como ainda não sabemos quase nada sobre nada, não temos opções. Mesmo já maduros e marcados pela experiência, não deixamos de arriscar-nos. Quando somos jovens, então, nem se fala... Se estar vivo representa um risco, digamos, "universal", também nos fustigam os que poderíamos chamar de "intensos" e "específicos". Exemplifico: o praticante de esportes radicais, o alcoólatra e o tabagista, aquele que se alimenta mal, tem hábitos desregrados e é sexualmente promíscuo estariam entre os que se arriscam "intensa e especificamente". Aqui o risco de sofrer seria consequência de uma ação assumida como algo que por si só vale a pena.
Há também os que se arriscam contra a própria vontade e o quadro se torna mais grave. Exemplifico: em tempos de guerra, quem combate o faz, muitas vezes, não porque quer, mas porque é constrangido (pela lei, por um ideal ou por qualquer outro motivo) a fazê-lo. Porém, a pior das situações é a de quem se vê obrigado pelas circunstâncias a assumir as consequências de riscos a ele alheios. Infelizmente, tais casos não são raros em nossa vida cotidiana. Exemplifico: o fumante passivo, o cidadão ferido em meio a uma bulha repentina no centro da cidade, o parceiro irreversivelmente contaminado e condenado à morte por outro em quem − ao menos a princípio − deveria poder confiar, etc.
In: O triunfo dos dias (Clube de Autores, 2019).
Indiviso
a Patricia Piccinini
Há os que não se cuidam, os que lidam com o perigo, os que gostam de expor-se e os que simplesmente não têm sorte. Estes irão primeiro. Os demais ficarão por aqui perfilados, contritos, atentos, à espera de um sinal, proposta ou sugestão. Há também os que − pouco ligando para isso − continuarão dormindo até o meio-dia.
In: O triunfo dos dias (Clube de Autores, 2019).
Pedagogia dos monstros
a Jeffrey Jerome Cohen
Monstros, sejam quais forem, existem, mas não como gostaríamos. Tanto quanto temê-los nas páginas dos livros e nas telas dos cinemas, urge contê-los na vida, pois são extensões de desejos, projeções de potências, simples possibilidades.
Monstros, sejam o que forem, se acumulam em nossas almas ao nascermos, até não ser possível detê-los. Aí afloram e invejam, conspiram, odeiam, matam, destroem, violam, torturam, laceram, chacinam os que a eles se opõem.
Monstros, sejam quem forem, estão sempre entre nós, conversam e brincam conosco, dormem em nossas camas, dizem que nos amam, somos nós mesmos à espera de um chamado.
In: O triunfo dos dias (Clube de Autores, 2019).).
Melhor assim
a Emil Cioran
Nasci introspectivo: "Melhor assim"− disse a meu pai, após ver os brutos. Tornei-me seletivo: "Melhor assim"− disse a mim mesmo, ao conviver com tolos. Escolhi ser só: "Melhor assim"− disse a Deus, sem salvação. Hoje, no leito de morte, digo a ninguém: "Melhor assim"− logo estarei comigo.
In: O triunfo dos dias (Clube de Autores, 2019).
Figura para outras pessoas
a Samuel Beckett
No sino do medo comestível do olhar de fogo só vale, além de si, o
In: O triunfo dos dias (Clube de Autores, 2019).
Leda e o cisne
a Hanneke Wetzer
Não lhes foi permitido amar nem conhecer o amor. Perderam os dons do afeto e da atração que se esvaíram e retiraram de suas vidas. Já não formavam um casal, mas uma dupla de identidade suspensa.
Com o tempo, viraram corpos sem alma. Foram reduzidos à função, depois ao declínio e à morte inevitável. A pele endureceu e virou uma crosta. O toque se perdeu no espesso da carne. A sensação criou raízes no duro dos ossos.
O mundo à volta foi se alargando e engoliu-os por completo. Enfim, perderam todo traço de humanidade.
Restou-lhes a condição animal de estarem por aqui, de ficarem para depois.
In: O triunfo dos dias (Clube de Autores, 2019).
O escorpião
1
Um homem se deitara no chão e remexia em um buraco. Outro homem que por ali passava, intrigado, perguntou-lhe:
− O que está fazendo?
O primeiro homem respondeu:
− Um escorpião ferido caiu nesse buraco e morrerá se eu não tirá-lo. O problema é que, toda vez que me aproximo, ele tenta me ferroar.
O segundo, então, perguntou:− Por que você não se vai e o deixa aí para morrer?
O primeiro, então, respondeu: − Porque ferroar-me é da natureza dele e ajudá-lo é da minha natureza.
2
Um homem se deitara no chão e remexia em um buraco. Outro homem que por ali passava, intrigado, perguntou-lhe:
− O que está fazendo?
O primeiro homem respondeu: − Um escorpião ferido caiu nesse buraco e, quando tentei tirá-lo, o infeliz quase me ferroou. Por isso, irei matá-lo com uma pedra.
O segundo, então, perguntou: − Por que você não se vai e o deixa aí para morrer?
O primeiro, então, respondeu: − Porque vingar-me dele é da minha natureza.
3
Um homem se deitara no chão e remexia em um buraco. Outro homem que por ali passava, intrigado, perguntou-lhe:
− O que está fazendo?
O primeiro homem respondeu: − Um escorpião ferido caiu nesse buraco e eu o estou matando, aos poucos, com uma pedra.
O segundo, então, perguntou:− Mas, por que?
O primeiro, então, respondeu: − Porque essa é a minha natureza. Não há outra coisa a fazer.
In: Desimagens (Clube de Autores, 2019).
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