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CASO CLÍNICO _ de João Lucas Dusi

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Do not go gentle into that good night
Dylan Thomas


Último ciclo mental. Noite quente na orla da praia paradisíaca. Céu aberto, incontáveis estrelas. Há um homem sobre um banco de madeira podre, segurando na corda que lhe aperta o pescoço, tentando se libertar, esperneando desesperado. Se pudesse gritaria, mas está asfixiado. Ao seu lado tem um espectro corpulento de bandana dizendo que isto é água. Eles estão cercados por figuras humanas sem faces, silhuetas pálidas, essas também com cordas no pescoço sobre bancos de madeira – não tentam resistir, emitem grunhidos e riem histericamente. As cordas não parecem presas em lugar algum: descem dos céus. Estão todos dispostos num círculo; no meio do círculo há uma fogueira crepitante, tremeluzindo com o vento abafado. Ninguém sabe quem a acendeu, mas é sabido que está prestes a apagar. Mar calmo, marolas. Breu em torno. A iluminação parca vem do fogo fraco e das estrelas, distantes e infinitas. Apesar de não conseguir falar, os pensamentos do homem brotam, fluem e confluem descontrolados. Não saberia dizer o que mais o aterroriza: a iminência do fim ou a impossibilidade de se expressar. É como se estivesse se afogando.
O ser humano é chato: não entende que isso é só uma piada. Recém-saído da natureza, afirmou-se como algo além de um agrupamento de células, uma fábrica de bosta, e dominou o mundo com suas verdades. Difícil pensar em algo tão inútil quanto o bebê humano: deixe-o só por uma noite e é provável que morra afogado no próprio vômito ou sufoque de tanto chorar. Nada é mais inútil que o adulto humano. A falta de sentido é mais destruidora que a fissão nuclear: já tirou mais vidas que a bomba atômica. Só a religião é capaz de salvar o usuário de crack, mas padres comem cu de criança. Os ônibus vivem lotados, deus não existe e o verão é a estação de colher imagens para tristes punhetas noturnas. Brotam, fluem e confluem. Existe uma lógica única por trás de tudo. A combinação das substâncias certas oferece a resposta. Cigarros podem ser caretas ou paregóricos. A tintura de ópio funciona contra a diarreia e também pode ser fumada com tabaco. Uma vez, quando ainda atuava, certo de que havia um propósito, o homem misturou destilado, pó, maconha e ácido e ouviu a voz de deus, mas no outro dia não conseguiu lembrar como soava. Cuidado com o macaco-demônio: ele usurpa a razão.
O espectro regurgita um Marlboro, acende-o na fogueira, traga profundamente e expele uma nuvem de fumaça inicialmente disforme que logo se organiza para informar que isto é água. O homem agoniza de olhos fechados, mas a cena surgiu em sua mente com uma clareza indesejada. A mensagem parece carregar algo de crucial, a resposta está próxima. Um grito agudo arrebenta seus tímpanos, ele abre os olhos e se depara com o espectro que lhe pede calma, mas diz que se pudesse teria se matado muito antes dos 46, pois a vida realmente não vale a pena. Aconselha-o desistir. O homem o manda se foder via ondas mentais e afirma ser o Guardião da Chama. O espectro ri em silêncio e diz que a chama não se sustenta porque isto é água e também que não faz sentido um guardião estar preso, mas que a reflexão é engraçada. Cada pessoa tem uma ideia de diversão muito particular. James Joyce adorava que Molly peidasse em sua cara, e a dieta irlandesa é rica em carboidratos.
O humor divino é incompreendido. Acontece um arroubo histérico das silhuetas, o homem sabe que estão rindo dele. A plateia está alvoroçada. Ele achou que estava livre do julgo ao deixar os palcos, mas a função do fantasma é assombrar. Recusa-se a desistir: continua a se debater, sem muita convicção. A condição de prisioneiro o cansa, e ele não faz ideia de quem o subjuga. Está exausto. Suspira, abre os olhos, vê o céu sem estrelas e o último crepitar da fogueira. Sorri sem achar graça, aliviado. As silhuetas se libertam dos laços com facilidade e, gargalhando, juntam-se formando uma só figura: Priapo e Baco abraçados, tristes. A vida é porra, cachaça e insanidade. Isto é água e ele sabe. Se não consegue mais rir, desista. Decida. Agora.
Fecha os olhos, calmo, chuta o banco e se afoga.





João Lucas Dusié redator no jornal literário Cândido,colaborador do Rascunho e um dos idealizadores do fanzine Obsoletos. O conto “Caso clínico” faz parte de seu livro de estreia, O grito da borboleta, que será publicado pela Penalux. Vive em Curitiba (PR).


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