Last from Taos (2018), Larry D. Blissett.
Poema de outro tempo
a Manuel Bandeira
Lembro-me de um tempo em que
a vida não tinha vazios, de um
tempo em que havia tempo no tempo,
tempo para o tempo, quando o tempo
não era anotável, apenas passava,
ajudava a ir e a voltar.
Lembro-me de um tempo em que
havia caracóis nos sapatos, de um
tempo em que a chuva tinha cheiro
de chuva e as árvores eram castelos
e as pessoas se gostavam e
fitavam em silêncio.
Lembro-me de um tempo em que
ser humano era uma condição
de orgulho, um tempo em que os bichos
ficavam em paz e as pessoas se tratavam
com ternura, se uniam e completavam.
Lembro-me de um tempo em que
se falava “obrigado”, “por favor”,
“com licença” e “me perdoe” com uma
singeleza tocante, de um tempo
em que os namorados se davam as mãos
e passeavam pelas ruas, em que havia
brinquedos e as crianças corriam
umas atrás das outras.
Lembro-me de um tempo sem
mercadorias, melancolias e espreitas,
de um tempo em que Deus ainda existia e
nos olhava do alto e amparava, abençoava,
perdoava e afagava sem exceções
suspeitas ou exigências.
Lembro-me de um tempo em que
não havia tédio nem ódio nos olhos
e o homem, aceitando sua pequenez,
se superava com gestos grandes e nobres,
em que o sol era enfático e alegre.
Lembro-me de um tempo em que
as peles se tocavam a distância e
os corações disparavam e as
palavras eram de amor.
Lembro-me de um tempo em que
valia a pena crescer, valia a pena
criar e envelhecer.
Lembro-me de um tempo em que
sonhar era uma dádiva, nascer um privilégio
e morrer um desperdício, de um tempo
em que viver não era problema,
mas sim solução.
a vida não tinha vazios, de um
tempo em que havia tempo no tempo,
tempo para o tempo, quando o tempo
não era anotável, apenas passava,
ajudava a ir e a voltar.
Lembro-me de um tempo em que
havia caracóis nos sapatos, de um
tempo em que a chuva tinha cheiro
de chuva e as árvores eram castelos
e as pessoas se gostavam e
fitavam em silêncio.
Lembro-me de um tempo em que
ser humano era uma condição
de orgulho, um tempo em que os bichos
ficavam em paz e as pessoas se tratavam
com ternura, se uniam e completavam.
Lembro-me de um tempo em que
se falava “obrigado”, “por favor”,
“com licença” e “me perdoe” com uma
singeleza tocante, de um tempo
em que os namorados se davam as mãos
e passeavam pelas ruas, em que havia
brinquedos e as crianças corriam
umas atrás das outras.
Lembro-me de um tempo sem
mercadorias, melancolias e espreitas,
de um tempo em que Deus ainda existia e
nos olhava do alto e amparava, abençoava,
perdoava e afagava sem exceções
suspeitas ou exigências.
Lembro-me de um tempo em que
não havia tédio nem ódio nos olhos
e o homem, aceitando sua pequenez,
se superava com gestos grandes e nobres,
em que o sol era enfático e alegre.
Lembro-me de um tempo em que
as peles se tocavam a distância e
os corações disparavam e as
palavras eram de amor.
Lembro-me de um tempo em que
valia a pena crescer, valia a pena
criar e envelhecer.
Lembro-me de um tempo em que
sonhar era uma dádiva, nascer um privilégio
e morrer um desperdício, de um tempo
em que viver não era problema,
mas sim solução.
In: A grande noite perdida (Clube de Autores, 2019).
A caixa infinitiva
As caixas podem conter quase tudo, mesmo as menores, as minúsculas, as quase imperceptíveis. Zeller Case, um obscuro escultor austríaco, nascido em Traun, e que teve rápidas ligações com o Fluxus, explorou como pode tal possibilidade. Sua intenção inicial era construir um dispositivo onde pudesse guardar as piores fases de sua vida. Para tanto, idealizou uma espécie de chocadeira na qual depositou diferentes tipos de objetos: orgânicos, cristalinos, pasmacentos, públicos ou não. Deixava-os ao sol e ao luar, em diferentes ocasiões do dia e da noite, anotando as possíveis alterações de cor, odor e temperatura.
Após um primeiro momento de satisfação com a notoriedade, Case tornou-se arredio e desapareceu. Amin Dyroff, seu amigo de infância e representante legal, declarou à imprensa que o sumiço do escultor se deveu ao sucesso definitivo da empreitada. Com quase toda a sua desgraça pessoal abrigada numa caixinha praticamente invisível a olho nu, mudou-se para um endereço desconhecido, na esperança de ser feliz. Ao que consta −Dyroff não confirma essa versão, mas também não a desmente −a caixa foi enterrada nos arredores de Traun, o que fez com que alguns críticos o considerassem um artista da terra. Isso nunca foi, porém, assumido pelas partes interessadas.
In: Desimagens (Clube de Autores, 2019)
A revelação
a Samuel Becket
Para escapar de seus pensamentos, Vlado escalou o balcão e escondeu-se entre tonéis. Qualquer um poderia ter feito isso, mas o modo como ele fez era impagável. Uma criança inepta não faria melhor, nem um velho decrépito ou uma mãe perdida, lacrimosa e compelida. A lua azulava o mar e o próprio jardim perdia sua forma de coração. Era impossível para ele ser ele mesmo, em meio a tantos subterfúgios carregados de ardor e simpatia. Imperturbável, manteve-se agachado, enquanto fazia caretas para a massa espessa do quadro noturno.
As nuvens, ao mesmo tempo enormes e indiscretas, observavam de longe seu segredo. Mesmo os bugios e os monges não se furtariam a bisbilhotar seus desenhos e rabiscos. Em plena campina e encravado no altiplano, imaginava rostos presos por pregos nas costas das pessoas. Contra sua vontade, o vício se perpetuava tanto que já não havia lugar ali para a felicidade, mas tão somente para o nojo.
Após vingar-se na rotina enfadonha dos que devem porque temem, seus olhos se fecharam como janelas quebradas e havia um tom aborrecido em seu semblante, algo repulsivo a contrair-se e alastrar-se. Naquele momento, imaginou-se bebendo Bacardi num botequim sem nome, comendo trutas e guardando flores em livros empoados. Olhou para o lado e viu-se renascendo, sacudindo a cabeça sob a chuva, uma concha rachada ao balanço do vento. Porém, logo lembrou-se de seu segredo e de que deveria guardá-lo.
Ergueu-se anguloso e começou a caminhar para, de novo, escapar dos pensamentos. Pôs uma pastilha na boca, coçou as costeletas e retornou ao quarto, à cama, sem sequer corar. Vlado era uma criatura estranha, mas se alguém lhe dissesse isso negaria. Mais ainda: ligaria o fonógrafo, aumentaria o som, libertaria a música...
In: Desimagens (Clube de Autores, 2019).
O último homem
Se todo ser humano tende a ser desequilibrado, pode-se dizer que também tende a não ser confiável. Se tende a não ser confiável, pode-se dizer que também tende a ser perigoso. Se tende a ser perigoso, pode-se dizer que também tende a ser mau. Se tende a ser mau, pode-se dizer que também tende a ser uma ameaça à vida. Como qualquer ameaça à vida precisa ser exterminada, todo ser humano, por tender ao desequilíbrio, à não confiabilidade, ao perigo e à maldade, precisará, para poder sobreviver, exterminar-se. Explico: como a primeira instância da vida para a qual todo ser humano representa uma ameaça é a sua própria, pode-se dizer que ele tenderá a exterminar os seus iguais. Logo, pode-se dizer que, se todo ser humano tender a exterminar os seus iguais, em determinado momento, poucos seres humanos sobreviverão. E quando, afinal, restar apenas um único ser humano no planeta, esse último − que já não representará uma ameaça para os outros, mas apenas para si mesmo − terá que se matar para sobreviver.
In: Desimagens (Clube de Autores, 2019).
As estações da razão
a Jonathan Barnes
Tales de Mileto
Aqui de
dentro
espreito
o Ser –
tudo é
Água
aquém
de mim
Dentro
de mim
tudo me
olha e
molha
além de
mim
Anaxímenes de Mileto
O Ar
vasto
traz
em si
diversos
nomes
Heráclito de Éfeso
Se o Um
se move
então
existe
surge e
some
em um
segredo
Parmênides de Eleia
Se o vento
esculpe
e a tarde
entece
nada muda −
Um é sempre
o mesmo
Empédocles de Agrigento
Um ao outro
desunidos −
Ar e Terra
Fogo e Água
Seja o sopro
que os revela −
caos no caos
resolvido
Anaxágoras de Clazômenas
Cabe ao olho
ver na estrela
o que há de
mais contido
Logo o éter
se dilata –
em meio
ao mar um
novo mar
já esquecido
In: Prática do azul (Lumme, 2009).
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In: Prática do azul (Lumme, 2009).
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Jorge Lucio de Campos é poeta, ensaísta e professor da ESDI/UERJ. Publicou os ensaios Do simbólico ao virtual(1990), A vertigem da maneira (2002), A travessia difícil (2015), Lembretes filosóficos para jovens sábios (2017), O império do escárnio (2017) e as coletâneas Arcangelo (1991), Speculum (1993), Belveder (1994), A dor da linguagem (1996), À maneira negra (1997), Prática do azul (2009), Os nomes nômades (2014), Sob a lâmpada de quartzo (2014), Paisagem bárbara (2014), Através (2017), Véspera do rosto (2017), O triunfo dos dias (2018), A grande noite perdida (2018) e Desimagens (2018).