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ALEXANDRA VIEIRA DE ALMEIDA RESENHA TOMÁS CHIAVERINI

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Uma trama existencial bem elaborada em O correio do fim do mundo, de Tomás Chiaverini

Por Alexandra Vieira de Almeida

O novo romance O correio do fim do mundo(Editora Solo, 2018), de Tomás Chiaverini faz uma elaborada contextualização histórica. Mas o livro não se atém a isso. O lugar de uma trama psicológica e existencial dá espaço às vozes complexas em que o interior de cada ser é esmiuçado em tons profundos, revelando as várias cores das personagens, suas tonalidades e características internas. O narrador em terceira pessoa é a medida correta para debulhar as camadas profundas das personagens. O narrador vai adentrando na mente das pessoas, revelando-nos os segredos mais recônditos de cada um numa narrativa densa e tensa. O tema da viagem é o motor, o empuxo necessário para que as lembranças da personagem Teodoro se movimentem aos olhos do leitor, num enredo dinâmico e movimentado.
Teodoro viaja de São Paulo até a Patagônia, na região de Ushuaia, conhecida como o Fim do Mundo. Daí o título do livro. Ele busca encontrar seu amigo de juventude em que vivenciaram a época da ditadura militar. Há uma encruzilhada a se domar, pois os amigos se separam por suas escolhas. Leon, por querer seguir a luta armada e ser um guerrilheiro e Teodoro, por negar tal projeto, dedicando-se às pesquisas e estudos. Toda a viagem se enche de mistério, fazendo o leitor passar pelas estradas do enigmático e incógnito, tornando sua narrativa algo que nos surpreende a todo momento numa dança circular de tramas. Por unir um enredo com teor político e social, estes elementos são absorvidos pela densidade arqueológica da pisiquê em sua originalidade. Teodoro recebe na década de 70 uma carta de Leon de mais de trinta páginas, em que não sabemos de todo o conteúdo dela, tornando assim a trama mais envolvente e misteriosa. São esses elementos de deciframento e elipses que dão à narrativa um matiz  diferenciado, criando-se assim uma ponte entre o real e o imaginário. Isso constrói uma alavanca de percepções aos olhares penetrantes dos leitores que se deliciam com uma obra aberta aos vários sentidos múltiplos do ficcional. O seu livro não é apenas história, mas além de tudo um trabalho ficcional, em que a literariedade aflora.
A neve e o gelo intensos durante a viagem de Teodoro têm todo um simbolismo significativo na trama. A brancura e a rigidez têm relação com os processos de silêncios e incomunicabilidade que percorrem a narrativa. A solidão de Teodoro durante a viagem tem a ver com o processo de envelhecimento pelo qual o personagem passa. Com quase setenta anos, Teodoro se aventura em sua procura pelo amigo que fugiu da ditadura indo para esta mesma região áspera há uns 50 anos atrás. Com seu carro Corcel 68, uma relíquia desde sua juventude que é guardada com zelo por Teodoro, ele aguentará de forma firme essa viagem, apesar da idade avançada. É uma viagem que rejuvenesce sua alma dando alento ao elemento de intrepidez em sua vida. A juventude invade as pálpebras envelhecidas da memória, percorrendo os olhos das lembranças e do esquecimento, fazendo o leitor se perguntar: o que é real e o que é inventivo na vida destas personagens? Na juventude havia este quarteto inseparável, Teodoro, Iara, Leon e Erasto, separados pelos fragmentos cortantes da ditadura.
Além de ser um romance, fazendo parte do gênero narrativo, é possível palmilhar pelas belas avenidas do romance um tom de intenso lirismo. Algumas passagens líricas da obra encantam o leitor com sua força metafórica e inaugural: “Estava escuro ainda, mas lá adiante, além das copas das árvores, o preto do céu se abria num indecente rasgo avermelhado”. O livro tem dois fios narrativos, o presente e o passado, Teodoro velho e jovem. Mas Teodoro sofre de um intenso anacronismo, pois não é dado a modernidades. Durante a sua longa viagem, prefere o estilo antigo a partir dos mapas, pois nunca se acostumara ao GPS. Ele também dá humanidade ao carro antigo. Tem todo um cuidado com seu velho Corcel e, o carinho pela máquina, ganha uma dimensão jamais imaginada. O externo e o interno se imbricam num casamento perfeito, dando toques inusitados à trama. A viagem externa se transforma noleitimotiv para que a viagem na mente ocorra, dando espaço para suas memórias. A riqueza da descrição física não só dos ambientes como das personagens cria uma riqueza no conjunto, pois junto ao psicológico ganha dimensões palpáveis.
Além do tom lírico, outros gêneros comparecem no livro, como o dramático, a partir do grupo de teatro que eles formam na juventude. Teodoro só fica responsável pela parte técnica como fotógrafo e iluminador, enquanto os outros atuam, como Leon e Iara. A “desilusão e a “desesperança”, que a ditadura provoca, criam um cenário de revolução na peça encenada pelo rígido Greco, diretor de teatro. A chama da revolta cresce nos corações dos jovens que têm uma forte energia de lutar e questionar os padrões vigentes. O grupo Tusp é marcante no livro, revirando os olhos do leitor para a busca de liberdade dessas personagens. A empatia ou incômodo que tal elemento pode provocar depende do ponto de vista de quem lê. A peça do grande revolucionário Bertold Brecht é encenada no livro, tornando o romance de Chiaverini algo plural e multifacetado e trazendo o jogo das referências a partir da intertextualidade. Sem controle das memórias, elas vêm de repente de forma inusitada e involuntária em Teodoro, preenchendo as lacunas do pensamento com os fragmentos bem coerentes e coesos do passado distante no tempo. A vitalidade da memória constrói uma presença no momento atual. O passado é trazido ao presente com inteiro vigor. A precisão de Chiaverini é cirúrgica nas suas descrições tanto externas quanto internas: “...a vida seguiria seu curso caótico, imprevisível e incontrolável”.
O fetiche com relação ao carro é uma grande marca na sua narrativa, assim como a perda da virgindade de Teodoro, que ganha grande importância na obra. O estranhamento maior vem com a ditadura que nos tira o poder de vitalidade e energia. Representa uma “ameaça” e uma “insegurança” aos homens de boa vontade. O mundo do teatro é também um universo de extrema vitalidade, pois é uma experiência especial para Iara que se veste de outra personalidade, deixando sua persona para adquirir a máscara dramática. É um outro mundo que comparece, como aquele definido para a literatura, o mundo do “como se”, como diria o teórico Wolfgang Iser sobre o “fictício e o imaginário”. O livro também nos apresenta uma intensa reflexão sobre as fases de nossa vida, se pautando na juventude e na velhice, os dois polos que se opõem e complementam. Apesar do tom denso e tenso na narrativa, não podemos deixar de nos encantar com passagens engraçadas no enredo, como, por exemplo, na passagem do soldado de meia-calça, amenizando o tremor da narrativa. Temos também uma análise da fisiologia dos rostos e dos gestos que se apresenta como uma força psicológica tremenda.  Também a ironia comparece como a passagem da juventude para a fase adulta de Leon a partir de uma arma. Armar-se é um saída para nossos medos e tragédias?
A experiência da dor tem duas frentes na sua história bem elaborada. Além das torturas, mortes e perseguições engendradas pelo sadismo do opressor, as personagens lidam com as perdas e enfrentamentos com o real chocante. As várias camadas das personagens são descobertas ao longo das viagens imaginárias do leitor dentro da narrativa. Há uma análise minuciosa da realidade e dos movimentos do interior de cada personagem nas dimensões complexas do enredo. O fora e o dentro se relacionam no seu dinamismo flutuante. Sua obra esconde e silencia, as verdades são represadas e soltas. Depois de um novo fôlego, o narrador explica e nos diz sua verdade. A viagem é espaço-temporal. A decadência e o envelhecimento são as forças injetadas pelo narrador para se pensar nas faces da juventude. Há comparações entre o presente e o passado. Há hipóteses nos pensamentos de Teodoro que nos faz caminhar pelas trilhas movediças da personagem. Nesse diálogo entre tempos, encontramos o grande poder do literário. A viagem longa e de carro cria uma verossimilhança intensa na narrativa, pois justifica e dá conta da longa narrativa de Teodoro. O livro fala de amizades e acompanhamentos, mas também flerta com uma reflexão curiosa sobre a solidão. Essa solidão na viagem e no tempo é quebrada pela aparição de uma personagem misteriosa e envolvente, a médium e vidente Madame Asunción.
As metáforas referenciais são belas, como o “cisne” e o “leviatã”. Aqui, a máquina e o animal são entrelaçados, seus múltiplos jogos de palavras são cortantes e precisos. O processo de autoconscientização de Teodoro é uma grande potência na narrativa, que faz todo um processo de autoconhecimento da personagem. A mistura entre a ciência e o misticismo é inusitada. Como pode um comunista ateu e professor de Biologia, Teodoro, acreditar no esoterismo de Madame Asúncion? Cabe ao leitor descobrir no final do livro. A amizade partida é resgatada pela circularidade do final do livro através de imagens do dejá vu  no qual o leitor vai se deparar de forma surpreendente num desfecho imprevisível e inusitado que nos provoca um grande impacto. Portanto, encontramos nessa narrativa envolvente e original o dom de enigmar com palavras a viagem do leitor, a viagem de todos nós que se adensa na viagem da trama de Teodoro.



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Alexandra Vieira de Almeida é Doutora em Literatura Comparada pela UERJ. Também é poeta, contista, cronista, crítica literária e ensaísta. Publicou os primeiros livros de poemas em 2011, pela editora Multifoco: “40 poemas” e “Painel”. “Oferta” é seu terceiro livro de poemas, pela editora Scortecci. Ganhou alguns prêmios literários. Publica suas poesias em revistas, jornais e alternativos por todo o Brasil. Em 2016 publicou o livro “Dormindo no Verbo”, pela Editora Penalux. Contato: alealmeida76@gmail.com



Tomás Chiaverini é escritor e jornalista, autor dos romances Correio do Fim do Mundo (Solo, 2018) e Avesso (Global, 2011). Publicou também os livros-reportagem Cama de Cimento  (Ediouro, 2007); e Festa Infinita (Ediouro 2008). Como repórter, tem colaborado para Folha de S.Paulo, revista Piauí, The Intercept Brasil, Agência Pública, entre outros. Na televisão, foi produtor, editor de texto e editor-chefe do programa Roda Viva, da TV Cultura. Nasceu em 1981, em São Paulo, onde vive hoje.

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