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"enquanto a nossa pele for caminho" - 6 poemas de Sândrio Cândido

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Arte de Keith Malett

I
Sankofa        

As palavras que escrevo
são aquelas que a vó me disse
sob a luz das lamparinas

Ela não soube escrevê-las
quando as ouviu de sua mãe

Através da memória
tudo sobreviveu

O mesmo fez a bisavó
quando em uma noite de chuva
escutou da sua mãe
(enquanto o senhor dormia)
as palavras que tinha ouvido
da boca da outra mãe

não sei onde tudo começou
mas sei que não terminará
enquanto a nossa pele for caminho 

enquanto formos
resistência.
"Sami", de Rachel Parker
II


Emprestei minha voz à solidão
andei quilômetros dentro de mim! 

Quando criança,
recordo ao comer goiabas com sementes
perguntar  à mamãe:

- vai nascer goiabeira dentro de mim?

Ela me olhava atravessado
com olhos de orvalho tardado
e respondia um sim bonito
cheirando a mango madurado.

Por anos tentei colher
um fruto daquela goiabeira.

Ainda hoje escrevo buscando
as sementes perdidas aqui dentro.
"Pescando", de José Ferraz de Almeida Júnior
III

Para João, meu pai.

Ao cair da tarde voltar à casa,         
Meu filho, levemos a enxada.

Dela se há de necessitar
quando o pasto maior que o jardim
convulsionar o sonho.

Estar ao rio à beira do tempo
entre o desejo do regresso
e o início da partida.

Essa manhã é apenas prelúdio,
toda canção dói na despedida!

Vede os movimentos da corredeira,
são tão fortes, são tão leves!

Bote atenção no que eu falo           
é um evangelho esse rio descendo,
pergunte às lavadeiras
só elas sabem decifrar seus versos.

Escute bem as coisas do nada
Coloque nelas o seu coração.

Não se entupa de lagartas
espere com calma o tempo das borboletas.
Também morrer é lento! 
(dependurar os olhos no tempo
colocar as sandálias
flutuar sem destino.)

Sob a memória estender o corpo
e ali descalçar as sandálias.
Deixar os passos caminharem sem os pés,
não se importar com as estradas.

Te dói  a realidade meu filho?
Por isso o teu ofício,
cavacar na linguagem o consolo.

De algo não se esqueça
o uivo do adeus é mais forte
no coração atracado pelo amor.  

decocar para escutar os olhos
entregues a nós ao longo da estrada.
Ser alimentado na falta
esquecidos em nossos corpos frágeis.

Meu filho, de poesia eu não entendo,
sei tão pouco do poço de letras
desconheço um modo de salvar a palavra
padeço a misericórdia do afogamento.

Em minhas mãos calejadas estão
o boi, o cavalo, a rédea, o freio.
Igual que tu também não encontro
maneira correta de estancar o tempo.

Meu filho, levemos a enxada,
dela se há de necessitar
quando esburacada ficar a canoa
pra sempre deitada no meio d’água.
"Grandma & Me", de Gregory Myrick
IV

Liturgia das horas

quando a mãe penteava os cabelos da filha
os pássaros assentavam na aroeira

a vó deixava a reza de lado
e ficava olhando o ofício da  mãe

a bisa sentava-se ao lado delas
embora há muito tivesse morrido

palavra alguma era dita
enquanto detido o tempo orvalhava

era bonito de se olhar
os olhos delas entrando nos séculos

na forma da mãe segurar o pente
podíamos escutar o pranto da África

sabíamos que esses foram os salmos
escritos em silêncio por nossos ancestrais.
Arte de Alonzo Adams
V

Paisagem

A vó fiava todos os dias um vestido invisível
era de rendas,  de cores,  de algodão,
achava tão bonito

é julho, tá tudo tão seco,
agosto é pior
tudo fica mais sertão

morre o gado
as arvores perdem as folhas
morre o rio
só não morre a esperança

acabamos de celebrar o espírito santo
fizemos folia, 
a bandeira vermelha
o canto das mulheres cortando o tempo
o rosário de andorinhas
era tão lindo

ainda assim
tá tudo tão agreste
faz falta um brejo neste corpo

a vó fiava todos os dias um vestido invisível
um casaco de pássaros
seus olhos iam longe quando fiava
igual aos lábios das lavadeiras
quando no cansanção
tiravam a nódoa das roupas

o que não sabíamos naquele tempo
é que em nós
a vó fiava a beleza

nem imaginávamos
que as lavadeiras cantando
plantavam dentro dos nossos olhos
a poesia

tá tudo tão grota
mas ainda temos as palavras
cisterna aberta
onde os deuses dormem. 
Arte de Steven Chapman
VI

Heresia

no sertão mineiro
as vós penteiam os cabelos das netas
e falam

deus tem corpo
sente fome, sede e frio
goza
e sangra

enquanto penteiam
as vós dizem que o mundo é grande
e perigoso

deus tem cheiro
toma banho, lava os pés,
dorme

no sertão mineiro
as tias colocam os olhos na estrada
e dançam

deus é perto
gosta de receber cafuné
transa

enquanto dançam
anunciam com suas saias rodadas
o corpo é benção

deus tem mãos
lábios, olhos, barriga
chora

no sertão mineiro
a mãe coloca água para ferver
e canta

deus brinca de ser marinheiro
ele teve infância
deus não crê

enquanto canta
a mãe pinga nas filhas
a esperança

no sexo úmido dos amantes
deus comunga
e samba.



___________
Sândrio Cândido(Minas Gerais, 1991) é poeta e professor. Graduado em Filosofia, atualmente reside em Cali (Colômbia). Possui poemas publicados em revistas digitais, além do livro Epifania (Patuá, 2014). E-mail: sandriocp@yahoo.com.br


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