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OLHOS EM JANELAS - Rafael Machado

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Outro dia em que corta o céu o vermelho ensolarado do fim da tarde, o vermelho do rosto refletido na janela, que faz sombra no ocre cor do olho. Um observa. Observa o passo, o passo daquela que distancia, que aperta o coração como arames elásticos. Ela. Devo dizer minha página escrita, tecida em cada palavra costurada em tramas espaçadas? Como seria dizer sobre cada letra que desloca em minha imaginação, desejo. Desejo? Me perco em construir alguma linha que possa guiar-me a ela. Alhures. Não aqui, sempre peregrino. Mas posso vê-la da fresta, lugar de segurança que me sustenta em náuseas. Posso dizer, mas nunca serei entendido, pois nunca saberei o que dizer. Olhar é mais seguro. Posso ser um fantasma de mim, mas sem sê-lo, pois sem me mostrar serei somente um fantasma e não de mim, saberei que serei eu somente em texto. Mas ela passa... retorna. Posso dizer ainda mais, quando disser que penso ou que digo no escrito, mas não serei mais eu, serei um texto. Uma cristalização do tempo, parado em tempo de marcar o traço, dizer o que está ali, o que é o agora. Depois essa cristalização pode se deslocar pela pupila do outro, que não me leria, leria um texto. Então o que dizer sobre cada passo que arrasta poeira e bendiz minhas letras? Minhas letras... Se escrevo não podem ser minhas, são do papel, são de todo e qualquer outro que as leiam, é dela. Ainda vejo o passo e em um momento só o rastro resta. Sugiro voltar a tentar dizer o que a faria olhar para cima. Posso dizer a minha janela, posso dizer que olhe aqui, posso ser visto, em uma nudez de minha incapacidade de mostrar-me. São somente tudo palavras, traços, riscos, marcas. De cima cabelos que cortam o rosto, não me dizem o que é das maçãs do rosto, não seria necessário. A necessidade é dizer, vou dizer, vou aqui, margear minha ausência. A ti posso não revelar, posso somente dizer o que nem está escrito aqui. Podemos juntos ler os espaços vazios deste texto que tem muito mais o que dizer. Posso caminhar pela rua e conseguir um olhar, não mais da janela, em vertigem de uma decepção que me escapa. E... posso tentar só não fazer e tentar-me, eis-me de novo envolto em vermelhidão de fim de tarde. Olhar o branco que fascina e que me convida a marcar é olhar olhos de tinta. Posso seguir um passo, pas de sense. Outro dia esse que me escapa, que nada me diz, mas que posso tirar dele um aquém, mallarmaico lance de dados. Lanço o desejo do outro, em mim, meu desejo de estar aqui, aquém, alhures, minar palavras ao outro do texto, de qualquer texto. Vou descer, abandonar a janela, vou dizer oi, enfim, e me desfalecer, palavras em pedaços: dilaceramento. Passar do rastro ao outro: um dizer, não. Somente letras.



 




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Rafael Machado é letrado, mestrando pela Universidade de Brasília em Teoria Literária e membro do grupo de pesquisa Escritura: linguagem e pensamento da mesma Universidade.

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