Innenraum (1981), Anselm Kiefer.
Como é, o que é
a Adrian Piper
É surpreendente que ainda se confunda o amor com as paixões. E isso não apenas numa cultura de ignorantes como a nossa. O amor é da ordem da identificação, da empatia, da compensação, da troca, da totalização. As paixões − todas elas: as boas e as más, as positivas e as negativas, as que criam e as que destroem, as que acrescentam e as que retiram, as que estimulam a vida e as que atraem a morte – são interessadas. Fazem parte da luta pela sobrevivência diante do caos que ameaça, alimenta e fascina.
Se, na melhor das hipóteses, as paixões nos fortalecem e satisfazem − não importando seu objeto − o amor não faz sentido algum sem este último. Ao contrário do que se pensa, ele passa pouco pela autoafirmação, pelo egoísmo e pelo altruísmo. O amante ama a relação (mais do aquele com quem se relaciona), a conjugação, o estar com, o conquistar e o frutificar. Quem ama sofre e vibra porque sente junto. É o que conta.
In: O triunfo dos dias (Clube de Autores, 2019).
a Sean Scully
Durante a infância, a chegada fácil do “sim” nos induz a imaginar que viver será sempre uma aposta válida. Com o tempo, endurecemos e o “não” ocupa implacavelmente as nossas pausas e folgas. Acuados, se queremos sossego, temos que aprender a conviver com a sua crueza e opacidade. Depois envelhecemos e um terrível “não” nos é dado pela própria vida, quando chega a hora inegociável da morte. Aí nos tornamos, na melhor das hipóteses, uma lembrança que inspira palavras e, na pior, um vazio a ser esquecido como tantos outros.
In: O triunfo dos dias (Clube de Autores, 2019).
O espaço interior
a Anselm Kiefer
O ser humano tem sonhado como nunca em ser feliz. Sua ânsia de prazer o levará, porém, a uma vida trágica e ele sabe disso. Ao mesmo tempo em que se abate, percebe que não basta gozar o mundo. Projeta uma vida de acertos, mas faz tudo errado e se deprime ao ver que seus caprichos são inócuos. Cedo ou tarde entrará em colapso, dará cabo de si e não fará diferença. Morreu e daí? Foi só mais um a fazer isso.
In: O triunfo dos dias (Clube de Autores, 2019).
a Brice Marden
A doença, o acaso, a imbecilidade e a violência são, a qualquer hora, atalhos prováveis para a condição fatal. Ao discernir o quão não razoável é sua ficção, cabe ao homem – um suposto ser pensante − evitá-los. Ele, porém, insiste em entulhar-se com delírios de grandeza e intervenções pungentes. Acabará por chorar mais, ante as condições vis que regem sua “vida-morte”.
In: O triunfo dos dias (Clube de Autores, 2019).
A humanidade adormecida
a Julian Schnabel
O que é a vida? O que é a morte? O que é o homem? É possível vislumbrar três respostas para estas questões metafísicas. A vida pode ser tanto uma dádiva quanto uma provação ou algo inconcebível. A morte pode ser tanto um alívio quanto um ato de justiça ou algo inimaginável. O homem pode ser tanto uma culminância quanto um equívoco ou algo inevitável. Entre as três opções abertas por cada uma, não crendo na primeira e temendo a segunda, torço para que a terceira seja a correta. Talvez no inconcebível, no inimaginável e no inevitável é que resida a redenção.
In: O triunfo dos dias (Clube de Autores, 2019).
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Jorge Lucio de Campos é poeta, ensaísta, revisor e professor da ESDI/UERJ. Publicou os ensaios Do simbólico ao virtual (1990), A vertigem da maneira (2002), A travessia difícil (2015), Lembretes filosóficos para jovens sábios (2017), O império do escárnio (2017) e as coletâneas Arcangelo (1991), Speculum (1993), Belveder (1994), A dor da linguagem (1996), À maneira negra (1997), Prática do azul (2009), Os nomes nômades (2019), Sob a lâmpada de quartzo (2019), Paisagem bárbara (2019), Através (2019), Véspera do rosto (2019), O triunfo dos dias (2019), A grande noite perdida (2019) e Desimagens (2019).