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Baldeações entre línguas - Josep Domènech Ponsatí escreve poemas em português.

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BALDEAÇÕES


Para Leila Gonçalves de Faria,
gostosa e octossílabo perfeito


                              
Preparava-se a baldeação.
                                               Aníbal Machado, A morte da porta-estandarte

                       

[um gringo escreve em português
do brasil um poema “de poeta-
tradutor”. acho que a coisa começa
a degringolar mais ou menos por aí.]


1

Ele se chama Zezinho.
Beatriz Bracher, Garimpo

acordo tarde
e bebinho de sono.
meti pelo vaso de trás
(buceta assada)
e pela frente
(por causa das hemorróidas).
e assim por diante.
a minha vida
― as minhas tralhas ―,
pra tudo que é canto (ou poema).
chorada rápida.
desambição e tédio.
os enteados,
filhos da mãe,
nem tão tansos nem tão desagradáveis,
como sempre no besteirol ―
a sua enrolação
e a minha desculpa pro rolê).

eu me chamo zezinho.



                                                           [...] it is a good idea to have some
Friends who write as well as you do, who know what you are doing,
And know when you are doing something wrong.
The should have qualities that you can never have,
To keep you continually striving up an impossible hill.
The friends should supply such competition as will make you, at times,
[very uncomfortable.

Kenneth Koch, “The Art of Poetry”, The Art of Love


[baguncei tudo.
versão remix
(achados e perdidos),
com mistura de gíria,
ideias de jerico
e registros altíssimos.
tudo em girino
(em construção),
toda enxerida.
poderia tirar partido
desse confronto
mas não estou nem aí.
escrevo baldeando
pra chegar até lá
(esse lugar nenhum
― esse lugar-comum ―
que é a morte)].





2

tivoli mofarrej
(tão chique que choca a gente).
convidado, sem custo.
levo ela nas costas,
visando o nheco nheco.

mostra pra mim, meu bem,
teu marfim de kolynos
(entenda-se colgate)

sinal vermelho,
só de buchinha!


[só por via de consequência
resolvi dar uma geral
nessa desgrama (a mais
minaz das desgraças). a relva
e a raiva, relevantes.
nada fiz para merecer
a verrina, se não laboro
em equívoco. eu achei
que era coisa supimpa
mas o calaram com um psiu.
e preciso inverter a ótica,
ser zoiudo, não cego.
ai, seus fiosdaputa,
socolor de bondade,
tem cabimento isto?
poetei a ocurrência.

podexá, ficarei na minha.]





3

coisando a precisão da língua,
é sexo
(ou algo do gênero).

e no lençol
a meladice amanhecida.

ela deu pra mim
e o assunto por encerrado.


[eu só viajei ―
talvez na maionese.
literatura de viagem?
de viadagem!
peguei carona
no viva o povo brasileiro
(foi a minha leitura
nesse momento:
eu me perfaço
nas sublinhas, ué!)]





4

logo após o churrasco
(três quilos de patinho
cortados para bife,
mais asinhas de frango),
ela dança forró
no quintal. esquentar pra quê?

(fiquei grilado sim,
mas bebi pitchulinha).


[levei um carão, caralho!,
do jardel e do fábio.
observações
perfeitamente comezinhas
sem quê nem para quê?
que nada, meus amigos,
talqualmente eu pedi,
eu tive. apenas justo.

muito obrigado mesmo.]





5

livros grifados
(eles são meus refis
pretensos e ilusórios)
na área (pseudo-protegida),
enquanto a fuzarca
dos meninos custosos
(fala pro vitor aquietar,
não fica judiando da ada,
a juju ficou jururu)
torra a minha paciência.
picadas de formigas lava-pés.
(um gringo de chinelo é foda).
a carne de paca é reimosa

e eu muito enjoado.





6

os insetos alfinetados
no isopor da memória
(tatuagem-chiclete),
só iluminada
pela constelação
de vagalumes
do lago praia,
no bairro jk.


[o poema é doença
o poema é pereba
o poema é maleita
o poema é sapinho
o poema é mazela
o poema é cobreiro

é coisa feia.
então, beleza.]





7

bença, mãe.
paredes sem reboco,
com tijolo furado
que serve de cofrinho.
filtro de barro,
café adoçado até.
refrigerecos
do sacolão.
baratas, muriçocas.
apresuntado,
mané pelado,
leite aguado
e pão francês.
a geladeira
tá dando tilte.

e ainda tem que rapar o banheiro!


[o poema é que tá dando pobrema.
(o pobremaé que tá dando poema?

sei lá, o sentido escapou
mas o recado fica.]





8

no cio do sol
(corós no mamoneiro)
tudo é calango.


[não aceito conselho
nem dica. a minha poesia
não é nem um pouco patricinha.
nem patriótica. é apátrida,
sem padrão nem patrão.
o resto são patranhas.
mas eles se acham o máximo
até no mínimo espaço
de um haicai.]





9

―meu pai é gambireiro.
o víctor capotou.
depois de gozar tudo é ão
gozei no cu, “cuzei”.

(feliz que dói).

―você tá me maiando?


[isso tudo é de rocha mesmo?
tá-tá-tá, tá-tá-tá,
história já conhecida]





10

no filostro, vó tonha,
bolinho de polvilho,
fogão de lenha.
um vira-lata vermelho
(mode quê? é bem simples:
terreiro de terra vermelha!).
um altarzinho de santinhos
e fotos da família.
lápis na mão,
escuto a palavra “cobreiro”
e cê vai me cobrar,
na hora do bem bom,
a vermelhidão do meu pau.
registro “fedegoso”
e sinto a vara
na bunda dos sapecas.
anoto “garrafada”
e a leila fica grávida.

a fezinha dela é essa.


[dou isso de lambuja,
como se diz. benzíssimo
escrito (passe o exagero).]






11

cê grudou em mim,
caro irmão natimorto,
feito picão.

[dei um jeitinho catalão
para acabar com a deprê
(cadê minha alegria, meus amores?
não ficou nem um só para remédio)
e subir, subir meu astral:
20 miligramas por dia
do mágico citalopram.

(amiudadamente dou umazinha.)

escrevendo no olho e na veneta
(eu sou variado de ideias)
deixei de ser loroteiro.]






12

as perguntas de praxe.
um travo de ironia.
ela se embonecando,
a boca rebocada.
hoje à noite vai ter coisa.

no auge da alegria
tomarei por termo o poema
cor de lavagem.


[não é minha praia, josep.
mas, em compensação,
é meu açude, é minha enxurrada,
e meu alagamento e minha seca.
não manjo nada de poemas.
mas, em contrapartida,
eu manjo ela, eu menjo ela,
melhor dizendo, eu como ela,
eu fodo, eu dou pra ela
(o melhor e o pior de mim:
a mesma coisa, no final).
deu pra sentir
que as “brasileirices”
foram postas (ou instituídas)
meio que a bigornadas.
ow, deixa eu te falar.
no inicio era o verbo?
então vou rasgar ele.
eu acho muito paia, véi.
eu acho que falam isso
só pra me tirar do sério.
eu fico encabulado.
eu fico passado, passim.
eles não sabem de nada.
conheço a língua
demais da conta.
meu brasileiro
é da roça, da leila
gonçalves de faria,
brasileira de anápolis,
estado de goiás,
a mãe da minha filha,
filha, por sua vez,
de maria e geraldo.

bão? tãotabão.
apenas, e sem dó,
as ressalvas me salvam]





13

as crentes e as crentinhas
(roupas de periguete,
capôs de fusca e rezas).
no boteco do lado,
enchendo a cara, os machos
alfa, beta ou gama.
podeis sentar em nome de jesus.
os lenços milagrosos.
cadê a pessoa
que tá doendo aqui,
quase na virilha?
não vou insistir não
por causa do meu horário.
a dor sumiu,
não está doendo mais.
aplaudam jesus.
podem sentar.
um tumor na próstata.
deus quer curar você,
deus me revela
que o tumor tá crescendo.
(é homem, lógico,
mulher não tem próstata).
espírito da pomba gira,
sai do corpo dela.
aqui deus muda histórias.
é hora de concretizar projetos.
a campanha de prosperidade.
os 12 cestos que sobejam.
é hora de ofertar.
a igreja carece de sua ajuda.
o gilmar vai passar com a salva.


[tá certo e tem razão:
aproveitei o embalo do negócio.
só fiquei curiando.
fazer o quê!]





14

eu tinha que ir embora do brasil
(meu ganha-pão era o culpado).
a minha filha tinha que ficar
(por desleixo da mãe-maiêêêê).
eu quase tive um piripaque
(paqueirei o suicídio),
xinguei e esculhambei.
num rompante de fúria
derrubei o guarda-roupa.
porém, não tive escolha.
peguei um voo da varig
(nada a ver com o voo
livre e livresco dos mindins).

chega doeu.





15

nas boates da augusta
tá a fim de uma gostosa?
agradecemos a preferência―,
tiros de cocaína
batizada e latinhas
de skol (desço redondo:
um pouco de limão na breja).

“o catalão”
(é seu apelido)
tenta passar a perna
nas meninas a menos que.

sossega o facho e fecha.

horas depois,
no quarto do hotel
mais vagabundo
da 7 de abril,
meio noiado, liso e só,
o poetinha
(que dramalhão, drummond)
é também
um menino chorando na noite.

só mesmo ele!


[escrevi rapidola,
por ordem do acaso.

faço os aprestos para o saimento.

agora vou ficar de molho,
no aguardo de melhores dias.

é tudo repeteco ― até morrer.
acabei de chegar
e já vou dar um chega.
fim. (até
que enfim.)]





16

fortuna crítica
(azar o dele!):
é um poema ousado,
do qual gostei
com algumas ressalvas.
seu poema virou outra coisa,
um troço mesmo.
é das melhores coisas que você já fez.
um exemplo para os eunucos
nacionais (incluindo eu).
trabalho de poeta autocrítico.
o poema acaba sendo
um texto delicioso de ler,
doa a quem roer!
é duro, impertinente, necessário.
é de roldão.
foi escrito berrando,
no som que arranha.
sem fraude nem favor,
sensacional!
uso ostensivo
de “gírias de segunda mão”,
ou seja,
expressões do registro
não perfeitamente fixadas
a que você acede não como ouvinte
mas como leitor.
falta de estofo narrativo/
experiencial na costura
das falas
que cheira a colecionismo.
nada na contracorrente
do linguajar popular
em sua leve ironia.
opa, que beleza, josep.
uns daltonismos trevisans espreitam.
olha só: tá melhor
que quase tudo que se escreve
nestas terras de vera cruz.
parece uma mistura de piva com rosa. caralho!
nele aparece até mesmo
um certo uso estrangeiro
do português,
hesitante e tal.
gosto muito da mistura:
linguagem elaborada, assunto “baixo”.
o final,
autoirônico,
com aquela fortuna crítica,
é muito bom.
a sensação
é que a baldeação
teve sua intensão freada
no meio do caminho
e voltou-se para trás,
já que a necessidade de espelhamento
foi mais forte que a de sujar-se
no enlama-excre-mento do pitoresco.
acho que a clivagem
entre o puzzle de falas
e os comentários metalinguísticos
sobre o projeto do poema
ajuda o leitor a se orientar,
ainda que ao preço de certo didaticismo.
de todo modo,
continuo achando o conjunto
artificioso,
no mau sentido.
é um ótimo poema.
a linguagem trun-
cada, quebra
                   diça,
me parece perfeita
para dar conta de.
você já pode ser considerado
um poeta brasileiro. grande coisa!


[em tempo:
sou muito grato
a minhas duplas múltiplas
(meus agentes provocadores):
o ronald e o armando
(originais e remanufaturados),
o fabio e os sérgios
(tubos e conexões),
o tarso e o jardel
(montagem e manutenção),
a leila e o caê
(alinhamento e balanceamento),
o vanderley e o zé-ninguém,
que sou eu mesmo e eu próprio
(bijuterias e acessórios).


valeu, mas não vale o escrito.]








___________________________
                                    O AUTOR

Josep Domènech Ponsatí (Sant Feliu de Guíxols, 1966), poeta, tradutor e livreiro, publicou até agora Cap un un dic secDesdiments, Apropiacions degudes & Cia.El Càcol  e Preqüela. Com seu quarto livro de poesia, El Càcol, ganhou o prêmio de poesia Sant Cugat em memória de Gabriel Ferrtaer (2014). El Càcol é uma proposta radical em mais de um sentido: por um lado, porque o autor está empenhado em lidar com questões que os poetas costumam deixar de fora de seus versos (aspectos nus e egoístas, aparentemente tão prosaicos quanto pode ser o uso de pornografia); por outro lado, porque cada poema é o resultado do jogo mais respeitoso com a genuinidade das palavras. Assim, El Càcol é ao mesmo tempo um livro requintado e refinado, cheio de poesia de alta voltagem.

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