(1)
Disse-me um homem:
tem sangue na tua orelha.
Eu lhe respondi.
Não é meu.
É sangue de luta
de homens velhos.
Brigavam sobre essas pedras
e o mais forte tinha
unhas de metal.
Faiscavam as pedras
quando nelas as unhas batiam.
Separávamos os dois,
eu e meus amigos,
quando minha orelha foi banhada.
E eu disse ao homem:
vês aquela carroça
que se afasta?
Nela são transportados
dois velhos que lutavam
pela posse do rebanho de bodes.
Interviemos com gritos e
saltos sobre o córrego.
Nossos braços eram curtos
e não conseguíamos conter o
choque das cabeças contra as pedras
e cabeça contra cabeça.
Por fim,
vimos a morte,
eu, meus amigos e os bodes.
(2)
(a filha de maria)
Já era tarde e meio noite.
Já não mais se ouviam
os homens e os pássaros.
Ouviam-se passadas lentas e
cantorias desesperançadas.
Era voz de coruja nova
de uma ponta à outra da rua.
Era o vulto negro.
O vulto lutuoso
o mesmo do dia e o mesmo da noite.
Era a mulher mais bonita e a mais louca.
A aranha venenosa. A tempestuosa.
Fazia tempo que peregrinava
pelas ruas e cemitério.
Quando entardecia,
acendia em volta do jazigo maior,
seis velas brancas e plantava pés de feijão.
Uma vez por semana,
lixava as unhas das mãos.
Juntava o pó e atirava-o nas
pétalas das rosas.
Uma vez por mês,
cortava os cabelos até deixá-los nos ombros.
O que era de lixo,
amarrava com fitinhas azuis
e torrava na frigideira.
Rezava cinco ave-marias, um pai-nosso,
bebia duas taças de vinho,
derramava as cinzas dos cabelos sobre
o leito de casal e adormecia.
(11)
É noite de festa.
Juntos em regozijos
brindamos à saúde do Divino
Satã e Eu.
Nossos relógios são os sinos,
são os papocos dos fogos de artifício
e o caminhão dos lixeiros.
A eles brindamos.
Satã e Eu.
Na bebida e na fumaça
tudo é luz.
Não temos o escuro nem o claro.
Não nos importa o cáustico
nem o frio.
Não tememos
o veneno da cobra
nem a sombra dos pés da morte.
A todos os povos e a Deus
brindamos
com champanhe,
vinho tinto e ópio.
Satã e Eu.
(17)
Ontem passei em frente ao
albergue da prefeitura.
Uma grande fila formava-se na entrada.
Lá estavam homens sem braços,
homens sem pernas, homens sem dentes.
Cinquenta e três miseráveis fugiam da morte.
Olhei seus rostos. Um por um.
O penúltimo deteve-me o pulso direito
e acusou em mim, febre amarela.
Era um homem branco de cabelos vermelhos.
Distinguia-se não pela cor dos cabelos
nem pelo saco de bala de hortelã.
No seu olho direito
aparecia esparadrapo e gaze.
E sem que eu pedisse
retirou o curativo e mostrou-me o câncer.
E sem dar tempo para refazer-me
perguntou-me se eu falava sua língua.
(22)
Eu sou assim.
Vivo entre o ódio e a loucura.
Entre marcas da morte e galinhas raivosas.
Meu ódio limita-se à minha loucura e
destrava-se quando minha boca
vomita formigas pretas.
Odeio as esferas que circundam
os carros alegóricos e as que
circundam os braços de fibras de vidro.
Eu sou assim.
Meus ombros carregam espermas
de urubus mortos e sinais de
cotovelos destruídos.
Nada impede
a minha cavalgada e
os meus longos passos.
E assim eu vou
de olhos turvos e
lábios umedecidos
com Deus e seu Algoz
me olhando e me conduzindo.
(23)
poema para Izabel, rainha do ocidente,
a mulher de trinta e quatro línguas
Eu fabricava latas de carregar água
quando uma mulher de sessenta e quatro anos,
vestida de organdi, beijou-me a boca e disse-me:
Louvado seja Deus.
Fica com ele.
Um semestre se passara
e eu continuava a fabricar latas
de carregar água,
quando a mesma mulher
agora com sessenta e cinco anos
surgiu entre nuvens brancas,
trazendo cravos plásticos
e uma centena de novelos de lã.
Com mãos brutais
e os seios jorrando leite
tomou-me o flandre e o martelo
e falou-me: com Deus ficamos apenas uma vez.
Deus é uma paisagem que o vento elimina.
Em seguida
como se estivesse acariciando
blusas de lã, beijou-me o pênis.
**** ****
Celso de Alencar, poeta paraense, radicado em São Paulo desde 1972. Sobre Celso de Alencar, o poeta e crítico Claudio Willer, afirma que se trata do mais enfático poeta contemporâneo brasileiro. Escreve com furor messiânico, com a veemência dos profetas. Enquanto, o compositor e poeta, Jorge Mautner, o considera um poeta da 4ª dimensão, escandalizador e libertador de almas. Já o cineasta Carlos Reichenbach sintetiza: Celso de Alencar é, sem nenhum exagero, um dos maiores poetas brasileiros em atividade. Sua poesia blasfema e despudorada é da estirpe de Pasolini, Rimbaud, Leautréamont, Sousândrade, e todos os nossos malditos maiores. O poeta e crítico Carlos Felipe Moisés decreta: diabolicamente angelical ou angelicalmente diabólico. E o artista plástico Valdir Rochaé taxativo: loquaz, perverso, mordaz, contundente, imprevisto, surreal, etc. É reconhecido entre os grandes talentos da Geração de 1970. É autor de Salve Salve, Arco Vermelho, Os Reis de Abaeté, O Primeiro Inferno e Outros Poemas, CD A Outra Metade do Coração, Sete(com 25 xilogravuras de Valdir Rocha), Testamentos, Poemas Perversos e O Coração dos Outros.