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Resenha de "A grande morte do Conselheiro Esterházy", de Alberto Lins Caldas - por Alexandra Vieira de Almeida

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As imagens do círculo em A grande morte do Conselheiro Esterházy, de Alberto Lins Caldas

Por Alexandra Vieira de Almeida

No novo e magnífico livro de Alberto Lins Caldas, A grande morte do Conselheiro Esterházy, temos um trabalho narrativo de vivissecção do corpo apodrecido do mundo. As idealizações não têm espaço em sua obra e o mundo do sensório autorrefletido pelo mordomo do Conselheiro Esterházy que narra em primeira pessoa num fluxo de pensamentos com frases em repetição fazendo as imagens do círculo como se alternassem os ciclos da vida e da morte em gestação. Desde os duzentos e setenta e dois dias do anúncio pelo Conselheiro de sua morte para o mordomo tudo se modifica na vida do narrador que passa a partir de um terreno de similitudes a repetir em sua vida traços da existência de seu senhor. Como em espelhos circulares, as imagens se repetem e se espelham ao longo da narrativa onde todos os pares opostos se cruzam e se tornam análogos como símbolos da rotundidade do planeta que gira em tons monótonos e sempre iguais. A vida se iguala à morte, a bondade se transforma no mal e a pequena morte se metamorfoseia na grande morte.
Tendo um poder de reflexão anti-platônico, o livro assume o mundo dos sentidos. Aristóteles, fugindo da esfera do mundo das ideias de Platão e se aproximando da naturalidade do mundo a partir de seus conhecimentos de biologia e física disse que “nada está no intelecto antes de ter passado pelos sentidos”. Alberto Lins Caldas realiza com maestria a conversação de modo natural. É como se tudo fosse necessário e natural no mundo sem que a realidade pudesse existir de outro modo. De acordo com o Conselheiro, se deus existisse seríamos devorados por seus tentáculos e não sobraria nada. O mundo e a realidade não tem piedade de nós.  A vida é só sofrimento e o prazer uma ilusão. O mordomo vomita toda a perversidade do mundo no cemitério, sendo que o espaço da escuridão no Castelo de Esterházy não ilumina nada, não traz nenhum alento ou esperança para as pessoas. O coveiro coloca o Conselheiro na sua zona de esquecimento, não revelando sua nobreza, conhecimento ou notoriedade. O castelo é o espaço do abominável, como se lá vivessem demônios. O mordomo se lembra a partir deste esquecimento do quarto do  Conselheiro com tons sulfúricos e ferruginosos e com cheiro de charutos mortos a trazer o ácido e o cruento para a vida do senhor e  do servo.
O mordomo anterior recebe o narrador para assumir o seu papel, a sua função naquele universo sombrio e sem perspectivas. Seu passado não tem nome. Ele não fala sobre o nome de seus familiares. Chama-os de papai, mamãe e irmãos. Ele mesmo não se nomeia. É um anônimo em meio à solidão do mundo. Como a solidão é o espaço da vida deste narrador que mesmo em presença de outros não tem nome. Ele se autonarra como “minha pessoa”. A cor preta de sua indumentária traduz a solidão de sua existência que é carregada como o alter-ego do Conselheiro. Suas existências se tocam e os afetos são revelados com frieza e realismo cruento e profundo. Na cena em que o mordomo vai barbear seu senhor, temos a imagem do círculo se repetindo ao infinito. É como se naquelas vidas tivéssemos a repetição do “eterno retorno”. Os espelhos se assemelham aos círculos. Na hora de barbear, tudo é pontual, tem de ser feito na hora determinada pelo Conselheiro e numa mesma sequência de atos. Assim, teríamos dentro do castelo, que o senhor gosta de chamar de casa, o espaço da organização mesmo em meio da desordem sombreando o mundo lá fora com seus cães a latirem caoticamente na miséria da cidade. O narrador repete os mesmos gestos exatamente como o mordomo anterior.
Os mínimos detalhes são revelados em sua narrativa, numa narração bem descrita. O ritual destes atos segue uma lógica sagrada dos espaços e não de uma posição metafísica e transcendente. O sagrado aqui é espelho do castelo com sua circularidade da rotina e do tédio. A vida é dor e tédio, o narrador relata sobre as reflexões de seu amo. A barba era feita de três em três dias às onze e um quarto da manhã. No roupão imaculado branco do Conselheiro, um paradoxo e a configuração do símbolo do Tao, o caminho oriental. Se o mordomo usa preto e se refere como signo da bondade, o senhor de branco é a representação do mal. Alberto Lins Caldas, de forma excepcional, subverte as imagens de nosso mundo dual e binário, produzindo um jogo de desconstrução como pensaria o filósofo Derrida ao mostrar que ambas as realidades se cruzam e se assemelham como na metáfora poética. O “fedor sulfúrico ferruginoso e velho de charutos negros e mortos” não condizem com as purezas do branco. Temos assim a mistura das cores, revelando que o bem e o mal convivem numa mesma zona de interferências e intercâmbios.
O mundo se revela neste livro por sua desertificação e aridez. Não há conforto ou subterfúgios na sua admirável obra que tem muito a nos ensinar a partir das reflexões do mordomo. Só que seu poder de autorreflexão não produz autoconhecimento. O cavalheiro da dúvida e do ceticismo está emparelhado com as questões que não têm uma resposta definitiva. Ao mordomo refletir sobre o mal que acomete o mundo, ele não tem uma resposta pronta ou definitiva. Só dúvidas e negações o atormentam. O ser humano se caracteriza por sua perversidade e não há explicação para tal. O Conselheiro pensa desta forma: “esquecer para não sofrer”. Nada alivia para ele o mal do mundo e “nem mesmo a arte consegue substituir com sua ordem exagerada a espessa desordem do mundo”. O mordomo como alter-ego do seu amo desconstrói o conhecimento do mundo, pois a morte é o reino do desconhecido. A morte é a grande preparação da vida, pois é nosso fim sem nenhuma via de escape, pois o labirinto que vem da vida tem uma saída para o caos e aniquilamento. O fio de Ariadne não nos socorre da devoração do Minotauro e todos estamos fadados à morte e ao sofrimento.
Além deste complexo mosaico de ideias como se define a forma usada por Alberto Lins Caldas? Quase não há pontuação no seu livro e as ideias seguem seu fluxo como se dão nos pensamentos do mordomo com suas digressões lógicas, repetitivas e circulares, reproduzindo o contínuo de nossas ideias em transe. O ritmo poético tem esta repetição a partir dos refrãos. Na prosa poética de Caldas não encontramos a dramaticidade do teatro através dos diálogos. Seu texto é pura narrativa ritmada como o pulsar da vida e da morte e como o ritmo do coração e da rotação dos planetas. Sem diálogos, com pouca pontuação, até mesmo com letras minúsculas a misturarem o pequeno ao grandioso da narrativa, a estratégia do romance de Caldas é produzir um desconforto e sufocamento do leitor que a partir da explosão de palavras e ideias no texto reviram os olhos para a morte e seu destino cadavérico. A morte é o grande tema do livro e está no título como a “Grande Morte”, pois ela é o senhor de nossa vida, assim como o Conselheiro é senhor do mordomo. O objetivo do narrador é produzir um desconforto e também um itinerário de reflexão no leitor, que como alter-ego do mordomo tem de repensar sobre os mistérios da vida e da morte. Ele também é um vivissecador das carnes putrefatas do mundo com seus cheiros de repugnância e nojo apesar das sensações suaves dos cheiros das comidas saborosas do castelo a esquentarem nosso paladar. O leitor também vai acabar se autorrefletindo como nas imagens do círculo novamente a formarem espelhos narcísicos de sua própria existência. Como romance existencial, a obra de Caldas traz o gosto inebriante da vida a ser extinta pela insensatez da morte. A morte nos rói os sonhos mais esplendorosos e somos acorrentados a ela como aos relógios do tempo a nos tragar qual vinho amargo no sabor das horas finitas. O infinito é o jogo dos ciclos da vida e da morte que se repetem incansavelmente.
O segredo e o mistério também perfazem as horas da narrativa. As histórias da existência do Conselheiro permanecem na penumbra dos pensamentos e lembranças do mordomo e não cabe a nós leitores sabermos desse enigma insolúvel. A solidão é a imagem deste círculo na vida do narrador que nos esconde coisas pelo temor da noite e das sombras. Se no castelo era o espaço da escuridão sem fim, após a morte de Esterházy, o mordomo vai viver num quarto de hotel iluminado e, novamente, o jogo de luz e sombras, preto e branco é revelado, mostrando os paradoxos da existência humana. Mas esta luz do hotel não é da razão, mas do delírio, como se a voz de seu senhor ecoasse por todos os lados e subvertesse suas ideias lógicas e coerentes da dúvida e do ceticismo. Nós leitores, também somos levados pelos delírios do narrador e nos amortecemos da queda pela solidão da leitura que nos leva para o espaço iluminado de nosso quarto prestes a subverter todo o aspecto áspero e sombrio da narrativa. Nós leitores gritamos, nos desacomodamos e pensamos sobre as inúmeras reflexões que se reproduzem como espelhos claudicantes do narrador. Nós e o narrador nos assemelhamos também como nos diferenciamos a partir do som de revolta que eclode em nós. Como derrotar e escapar do fio da morte?
A vida assim como a morte é um labirinto. As entradas e saídas dele nos conduzem à miséria, ao abismo e ao caos. Como sobreviver? Somos esmagados pela morte sorrateira e inescapável parece nos dizer Caldas a partir de seu narrador. Portanto, o romance de Caldas nos faz repetir um ritual na leitura que não tem nenhuma sacralidade metafísica. Tudo nele é físico e natural, de um realismo perfurante. As imagens do círculo reproduzem o ritmo de sua narrativa que a partir da repetição de certas frases-chave nos conduzem ao terreno do sensório e dos pensamentos concretos, como se as ideias tomassem nosso corpo natural e sem apelos à alma imortal. Seu universo é ácido e nos conduz às asperezas do mundo. A solidão se repete nestas vidas das personagens a revelar o círculo do “eterno retorno” dos atos, das palavras e dos pensamentos nas existências fragmentadas e inacabadas de todos. O livro de Alberto Lins Caldas não é apenas um livro, mas um monumento colossal em homenagem à morte da qual todos fugimos. Que a obra de Alberto Lins Caldas perdure além da morte, pois de eternidade seus olhos percorrem o mundo e a vida de seus leitores para além das eras.

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A resenhista: Alexandra Vieira de Almeida é poeta, contista, cronista, resenhista e ensaísta. Tem Doutorado em Literatura Comparada (UERJ). Atualmente é professora da Secretaria de Estado de Educação (RJ) e tutora de ensino superior a distância (UFF). Tem cinco livros de poesia, sendo o mais recente “A serenidade do zero” (Penalux, 2017). Tem poemas traduzidos para vários idiomas.

O autor: Alberto Lins Caldas é pernambucano de Gravatá, onde nasceu em 1957. Colabora em jornais do Recife (Diário de Pernambuco, Jornal do Commercio e Diário da Manhã) com artigos de critica literária e poesia. Fundador do grupo informal Poetas da Rua do Imperador. Cursou Historia e Arqueologia na UFPE. Ensaísta proustiano e poeta. Autor dos contos de Babel (2001), dos romances Senhor Krauze (2009) e Veneza (2017), e dos livros de poemas Minos (2011), De corpo presente (2013), A perversa migração das baleias azuis  (2016) e A pequena metafísica dos babuinos de Gibraltar (2017).


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