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"michel, abismo, angelo", prosa poética de Guilherme Mateus

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Arte de Chris Rivers

michel, abismo, angelo

como se o visse cruzar minha vista. haviam dois rios que margeavam nossas pessoas, e eram também dois escapes para onde fugir. ele era um tipo medonho de homem, daqueles que deitam sobre a gente com o peso de um javali e a força de uma chuva. lembro-me de tê-lo dito pra continuar a ser como era, pelo menos para mim, que já estava acostumado a senti-lo como um uno. ele dizia pequeninices, estalos entre a saliva e minha espinha arrepiando-se avexada.  acho que estou aprendendo. hoje parece um dia de morrer, agudíssimo, pedinte também. ele estava do outro lado, distante de mim, e tudo parecia um projeto com linhas perpendiculares. havia um abismo entre nós, e era também uma vontade de pertencer àquele espaço por sermos destinados a ele. o abismo era enorme, daqueles que se consegue ouvir o silêncio e até sentir o gosto. morrer parecia breve e optativo. morrer parecia não mais optativo. então comecei a imaginar a pietà, comecei a pertencê-lo como um filho, uma besta, uma cria que se dá. ele estava distante e de frente para mim, colado à janela. vestia nada: um lençol de se enrolar, como se quisesse, com ele, abraçar todo o abismo em um nó. os rios que margeavam nossas pessoas entortavam, sumiam, e a imagem se formava próxima. eu entortava também, inclinando feito uma prece errada que se faz. lembro-me de tê-lo quase ouvido tentando alguma palavra, mas o silêncio engolia qualquer tentativa de costurar distâncias. éramos dois polos no espaço: um rente à janela, abrindo as pernas como se comportasse no colo o fardo de alguém, o outro se dando como pão à fome. acho que aprendi. e como se o visse cruzar a minha vista, consegui enxerga-lo me segurando no imenso espaço de um abismo. para o pequeno peso de um javali, às vezes uma chuva parece ter o dobro de sua força.



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Guilherme Mateus: nascido em dezembro de 1994, potiguar, graduado em letras. desde cedo desfila pela escrita, a pintura e a fotografia como um escape – talvez uma tentativa de alcançar o outro e a si próprio. plural e singular: algo sutil e estranhamente harmônico entre o caos e o vazio.

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