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"a vida é uma reta torta" - seis poemas de Mailson Furtado Viana

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[1]

um rio não tem forma
um açude também não
seca
transborda
fora disso não vale a pena
mostrar no jornal


um rio não tem forma
um açude também não
é do tamanho que quer
a luz
que foi sol
             lua
             poste
             um poema
que é sem forma


um rio não tem forma
um açude não
também
se afogam neles
se suspendem neles
e vão parar no mapa
que não leva ninguém
a canto nenhum


[2]

tudo é caminho
não há ponto de chegada
não há ponto de partida


Varjota
cheguei
um sem fim de vezes
fui embora outro monte
na sua maioria foi
o meio do caminho
que já foi Fortaleza
Recife
Diadema
e Viena que
ainda será


minha mãe foi também
caminho
meu pai também
que já vieram de meus avós
de outros avós
e outros outros e outros
e
tudo é caminho
sem começo nem fim
sem velho nem novo
o poema é mais
um


sempre vai
e vai e vai


a vida é uma reta torta
nó-cego de motivos
que é caminho
e não volta

[3]

quantos restos pedaços bagaços
de vida
ficaram por aquela esquina?


quantos olhares
pras pernas a mostra?
quantos desejos?
quantos pecados?


quantxs?!


quantas vidas
dobraram a esquina
e ninguém mais sabe nada?


subiram rua acima
aranharam asfalto acima
e foram até onde minha vista pode


deixaram pneus
deixaram buzinas
(e
com quantos pneus se
faz uma rodovia?
se faz n avos
de desejos?)


me fiz de tantos.
deixei-me em tantos
até em mim


deixei desejo
incrustado a cinco braços de chão
na penúltima esquina da biblioteca do waldir leopércio
(por onde ofertei beijos
por onde encontrei leminski
por onde me atropelo em lembrar)


deixei-me todo
em cada mergulho no acaraú


hoje talvez esteja
pra lá da polinésia francesa
ou
talvez virado gelo
           virado esgoto
           virado conservante enlatado
           virado mijo
           virado outro desejo
tudo isso
no rio
e chamam de rio
tudo o que ficou


o rio é um risquinho no mapa
pintado de azul
quase marinho
mas do mar é um primo distante
na foto fica meio turvo
- cor de rio
que
deixa verde as margens
deixa vermelho o sangue
da vaca
(que ainda é viva)
que dá leite
que tá numa caixinha
azul


azul
como se vê
a gente
da lua
que de lá
tudo sabe
das esquinas que não tem

[4]


no início
foi tudo luz
que antes talvez
  (também)
depois a terra latejou outros dias
             ficou nublada outros dias


naquele tempo
a luz já passeava
era adolescente
repartia o amor


era do céu
era do chão


foi passear no tempo
e foi lua vagalumes fogo
fogo fogo fogueiras incêndios fogo (fumaça) fogo fogo fogo
  faísca fogo faísca tiro fogo tiro tiro (e pra alguns ficou escuro)
  vagalumes ainda
  lua ainda
  e mais fogo e faísca faísca fogo faísca lâmpada!
lâmpada lâmpadas led leds lâmpadas leds (que
  se meteram no buraco do pixel sem-tamanho)
outro dia
         o big-bang
que foi ontem
            (também) acredita-se
            acredita-se no amanhã
sempre
sempre acreditar-se-á
no ontem (também)


haverá mais luzes
sim acredita-se.
talvez nunca como ao primeiro dia
        (no calendário ainda
      era sem-data)


ficaremos cegos
mas haverá luzes
há quem as procurará
Arte de Ria Hills
[nuvem]


a nuvem
não tem nome
é e é
e pronto
não mais


não vence
       se enlata
       ou adula vigilância sanitária


é
antes de ser
foi
antes de nunca
ser


: elefante
 guarda-chuva
 uma guerra dos mundos
 (sob o mar de Copacabana)


se destila nela mesma
e nunca batizou
             vermes
             larvas
nem mesmo a ferida de Ícaro
que morreu nele mesmo
como nuvem
que sempre foi a mesma
e nunca também
e nunca mais
será


não num avião
que as rebaixam
a terra
a terra de ninguém
a meros pedaços
                cortados
                guardados
numa janela
numa foto de www
como terras são guardadas
em gavetas de cartório
e cabem todas
as nuvens também
que não tem nome
                    três-por-quatro
e
já não são



[da janela 
de um ônibus]


urubu
na tv
o conheci
antes mesmo de
ser


pra mim
menino
: bicho esquisito
daqueles da national geografic


encontrei-o
tempos depois
na janela
do ônibus
a futricar o último
rastro de vida
(ou primeiro de morte)
do que já
não existia


: são bichos negros
       (toantes)
  são fortes
comem a morte.
seputam os vermes.
e
voam. suspendem o ar.
seguram o sol
(que não dá
beira a ninguém)
e desenham o chão
a sua sombra
que não sobra
no asfalto
que já passou
do para-brisa


pralém




____________
Mailson Furtado Viana é escritor, ator, diretor, produtor cultural e cirurgião-dentista. Com seu livro à cidade foi vencedor nas categorias de livro do ano e de poesia no Prêmio Jabuti 2018. Em Varjota, zona norte do Ceará, é produtor cultural da Casa de Arte CriAr, e desenvolve trabalhos como ator, diretor e dramaturgo e, atualmente, lidera a CIA teatral Criando Arte.

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