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Quatro poemas de Ramon Carlos

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William Blake. Anjo da Revelação (c.1803-1805).



Três dias

Vi anjos de plástico
Assim como vi o pau de plástico
Ela acreditava que o bicho papão
Tinha oito dedos em cada mão
Falei que tinha matado o danado
Com uma pistola d’água cheia de vinagre
É sério, ela disse
Vi o picareta tentando mostrar o dedo do meio
Mas ele tinha oito e não tinha um dedo do meio
Ora ora mulher, que siririca desperdiçou
Siririca – confessou – pra mim é como um carburador velho
Só fede e não liga
Meu negócio é língua
Língua áspera e grossa
Rachada e cheia de cores
Por todo autódromo
Deve ser mais lisa que uma capa de livro
Nada! Nunca me depilei, acho desnecessário
Sou natural como o brilho nos olhos do canário
Natural como a carne nas gengivas do tubarão
E o bicho papão
Você quer mais uma bebida¿
Por favor
A vela sete dias estava no sexto
A faca no chão tinha sangue seco na ponta
O incenso fedia canela
TV ligada no último volume
Contando um fato de lástima racional
Tremendamente constrangido
Por fazer aniversário ali
E como presente
Uma torrada de querosene
Saudei os anjos e o pau de plástico
Facas e os rasgos no sofá
Privada entupida
Gatos boiando na piscina
Mãe morta após uma temporada familiar
Fumaça dentro da geladeira
Cheiro de sapo nos travesseiros
Cobertores com figuras do arco-íris
Pantufas dentro do plástico
Calcinhas em pó de neve
Boquete enquanto segurava um peido
Nossos sabores não se entrelaçaram
Não à toa
Meses depois
Quando passou de carro e grasnou em filtro branco
Circulando a rótula pra voltar
Me escondi dentro de um banheiro de posto
O único brilho natural que eu carregava
Era uma moeda da Argentina
Vapores, vapores
Caçando as amígdalas e as mariposas
Em casa após três dias do aniversário
Comi dois ovos cozidos
Sentei pra escrever
Mas não saiu nada
Imaginei o bicho papão de oito dedos
Entalhado na parede
Mostrei-lhe o dedo do meio
E uma lágrima solitária
Caiu dentro do copo

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Poema sem ti...tolo

Respeitoso gesto da loucura
Máquina que engrena 
Na listra parda dos dedos
A pedra do sapato
Agora uso de cotonete
Alegria é ter um cartão do Sesc
Felicidade é um pé invejável na torneira
Cuidado
Abrace as peças do xadrez
Queime a Casa Branca com um espirro
E diga a todos que sabe onde está o pênis de Napoleão
Tormento, magnífico zero da matemática
Propulsão, engrenagens, mercadoria apreendida
HIV na menstruação do polvo
Perdoem-me pela mediocridade  
Meu sangue escorre pelas trincheiras do acaso
Cinza esbelto
O sábio inacabado
Acaba de derreter suas peças
Silicone, cachaça, um risco da morsa
E de baixo do pé de limão ouve-se:
“Te amo”
Mas o beijo não faz barulho

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Trapaça

O tempo perdido, uma prostituta de fundo falso
Lowell, como um gambá, traçou minha garota
Mordeu minhas costas, roubou meus poemas
Fugiu acenando e confessou-se
Numa tribo que comia minhocas
Essa vizinha nova insiste em desligar meu ventilador
Enquanto durmo ao lado das latas de tinta
Ela diz que se quisesse ouvir um vento artificial
Teria sopro no coração ou uma buzina nos mamilos
Com um tiro de sinalizador dentro da boca
Reivindico o direito de ficar calado
Até que a sorte nos separe
O rabo do lagarto
Contorce-se mais solto
Do que unido
A sobrevivência preserva a toca
O rabo do lagarto
É um batom vermelho na ponta do alfinete
O rabo do lagarto
É a segunda descarga no banheiro público
Poeira e carvão no marfim inalado
Eu estive longe nessa semana longa
Absorvi o mínimo do ópio
Que as vozes viciam
Minhas cinzas grudaram nos dejetos
O tomate pela metade
Atirei nas costas do gato
Que cagava na sacada
Agora me faz falta

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Admirável mudo novo

Como sou tolo ao tentar curar a febre
Esse travesseiro molhado todos os dias
Meu único sinal de misericórdia
Adormecer é um boquete pro diabo
Fatigado, mancha invisível na lápide ausente
Ser ser extinto!
Elevam-se sucintos sussurros endógenos
A cura como sintoma da dor
Abrir as janelas é um perigo somatizado
As velhas garrafas de vinho em L
Colheres imunes, poeiras com digitais
O crime é um sonho deturpado
Mas cá estão as evidências
Torneiras abertas evacuando torneiras fechadas
Admirável mudo novo
Checando traças pelo olho mágico
Na beirada da cama
Água que cai
Dentro de um balde furado sobre a cabeça
É meu famoso ciclo da demência
Sejam bem vindos
Esse é o sinal
Esse é o sinal




Ramon Carlos(Santa Catarina, 1986). Escreve no site: www.estrAbismo.net. Sua carreira literária resume-se a dois contos publicados em uma antologia, além de materiais diversos em revistas como: InComunidade, LiteraLivre, Subversa, Philos, Escambau, Bacanal, Ruído Manifesto, Literatura & Fechadura e Jornal Plástico Bolha.





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