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Arte de Rory Kurtz |
fui um bom companheiro no meio das
moscas em junho
com a gramática acesa na língua e
na ponta dos dedos falando gesticulando
em certos dias
recuperava de uma ferida no nariz
nos lábios todos os dias recuperava
de uma angústia
uma coisa na alma que se partiu
que se perdeu
há muito tempo mais tempo do que
me é possível contabilizar
não sei o que é ter a gramática
acesa mas sei o que é estar no
meio das moscas ouvindo música ter
as pernas a serem comidas vivas
os antebraços
o cachaço
a linguagem é estudada por uma
ciência também
como a que estuda as moscas
e na literatura a linguagem dizendo
gramática acesa
entre aspas
mas o que quero dizer é uma coisa
que supostamente ambos sabemos ainda
que provavelmente não.
como magoam as saudades
quando as figuras públicas da ciência
dizem pedem impõem
que se retire o elemento humano
de tudo o que fazemos pensamos sentimos
“achas que o sol pensa?”
sem o elemento humano não sei
diria que não (o que é pensar?)
sem o antropológico também é
possível que não exista curiosidade
suficiente para querer perceber se o
sol pensa
é só um candeeiro a rodar quieto no
firmamento.
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Foto de Lily Rankine |
que fazer com a consciência de que dos corpos
secos nos saem ocasionalmente líquidos?
sair da casa-de-banho compondo o cabelo
onde nenhuma água tocou mas pingando
ainda mijo microscópico da ponta da piça
das pregas da cona
as partes do corpo que se dependesse de
nós não existiam
menos quando lá vamos buscar com os
dedos sozinhos em casa
a pensar no escondido dos outros.
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"The Living Soil", de Marianna Tarish |
a verdadeira solidão consiste simplesmente neste
facto de numa manhã de novembro ter saído
de casa sem meio de ver as horas e tudo
parecer qualquer coisa muito diáfana – as
coisas importantes da vida diluídas, inexistentes
no anacronismo de, por não poder constatar
o tempo, não serem. mas as pessoas e sobretudo
os animais existem porém alheios a mim ainda
que as pessoas embora não os animais saibam
mais ou menos o tempo e dêem pela sua
passagem.
neste ano não é possível sair de casa sem
trazer todos os outros na algibeira e não
de um forma poética ou de uma forma
poética se pensarmos nisso a sério mas
se pensarmos no que quer que seja a sério
há uma poesia subreptícia e subterrânea em
tudo um realismo mágico no velho que
sai de casa com um balde de tinta vazio
quando já não tem nada para pôr lá dentro
pois perdeu as fazendas as várzeas é assim
no interior suposto do país onde vivo a
terra não é de quem a trabalha é de quem
a arrenda de quem deixa que nela cresçam
caniços ervas daninhas silvas mato rasteiro
que cobre as árvores de fruto até que
desapareçam da vista da memória como os
velhos e mas menos da dos velhos.
quando é tudo verve rebentando na boca
como uma afta um abcesso
tudo sujo de pus e merda
a poesia é um risco e uma rasura
é insuficiente
porque não bastam cavalos correndo
trotando no meio das ruínas e
dos destroços trucidando o que
resta dos corpos
enquanto tudo arde e sobretudo
as crinas
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Arte de Jacub Gagnon |
quantos bichos abrigados no bojo de um
contrabaixo carcomido pela humidade
num depósito um armazém
persianas cortando a luz em escritórios
vazios na vila do interior
bichos no bojo dos contrabaixos dos pianos
dentro do teatro numa sala de ensaios
que ninguém usa a minha voz lacrimejando
toda suja de animais e de papel reciclado.
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Arte de M. C. Escher |
(o poema não é o homem de calções de
banho e havaianas que veio ao café
comprar um red bull
não é os teus olhos os teus lábios os
teus cabelos:
é a intenção que mantém tudo isso
intimamente colado
é a argamassa destas palavras
agredindo a sintaxe e a semântica)
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Pedro Tiagonasceu em Óbidos, em 1983. Interessado por artes, em geral, e pelas letras, em particular, desde que se lembra, é licenciado em Línguas, Literaturas e Culturas Modernas (variante de Estudos Portugueses e Ingleses) pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade de Lisboa. Neste momento, convence-se de que “tradutor freelance” de todo e qualquer projecto que lhe apareça. Participou e vai participando numa série de pequenas revistas, colectâneas e zines diversas, nomeadamente a Piolho, a Flanzine, a Casa, a Debaixo do Bulcão, a Persona, entre inúmeras outras. Pela editora Artefacto (Lisboa), publicou, em 2011, o seu primeiro livro, O Comportamento das Paisagens, e, em Janeiro de 2018, através da editora do lado esquerdo (Coimbra), editou A Lonely Gigolo. Ambos os títulos são de poesia ou, pelo menos, são escritos com quebra de verso e com uma mancha gráfica associada ao texto poético.