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A grande obra

Eu claudicava rumo à Sala dos Arquivos, equilibrando um calhamaço de documentos não-catalogados na curva do braço esquerdo e o novo filtro de água na mão direita, quando um homem de macacão azul e capacete laranja entrou pela janela do corredor. Interrompi por um instante meu dever matinal e fiquei ali parado, olhando, enquanto outros dois desconhecidos, vestidos em uniformes idênticos, saltavam sobre o poial e aterrissavam, com agilidade, no chão de lajedos vermelhos. O primeiro homem trazia uma fita métrica. O segundo conferia coordenadas em uma planilha e, às vezes, acariciava, distraidamente, o auto-falante embainhado na cinta. O terceiro empunhava um rolo e um tonel de tinta.
 – Bom dia – saudou o homem do auto-falante, sem tirar os olhos da planilha. Sua testa estava levemente franzida, como se houvesse descoberto um detalhe inconsistente nos papéis que examinava.
– Bom dia – respondi, olhando pela janela. O sol batia nas telhas, nas chapas de zinco, nos ornamentos das águas-furtadas. Percebi que uma faixa de tinta amarela fora traçada sobre os telhados, e que ela subia e descia as águas escuras e terrosas das casas grudadas, num ziguezague, que começava a meio quarteirão de distância. A faixa subia e descia espigões, cumeeiras, empreendia curvas simétricas para contornar chaminés, antenas parabólicas, caixas-d'água e termossifões, até chegar à janela do segundo andar de nossa repartição.
Um dos operários estendeu a fita métrica do poial de lajes até a parede oposta. Um outro mergulhou o rolo no tonel de tinta e, esticando a mão, fez a lista entrar pela janela e cruzar o corredor, passando rente aos meus pés.
– Muito trabalho hoje? – perguntei, observando pacientemente as gotas de tinta em meus sapatos.
O homem da planilha, que aparentava ser o líder do grupo, levantou o rosto, inflou as bochechas em um suspiro cansado e ergueu por um instante as sobrancelhas. Sua expressão, de modo súbito, ganhou a intimidade e o desalento de um pai de família que confidencia a última diabrura dos filhos a um amigo.
– Começamos no obelisco – ele apontou um polegar sujo de fuligem para algum ponto indefinido além da janela – depois subimos pela parede do Museu de Arte Moderna. Duzentos metros, até aqui, por cima dos telhados. E ainda vamos levar umas duas horas para terminar tudo.
A lista amarela alcançou o rodapé de madeira e fez uma curva em ângulo reto. Acabada sua breve confissão, o operário-chefe voltou os olhos para os papéis e começou a tomar notas.
– Para que serve a faixa amarela? – perguntei, ajeitando o filtro contra o peito.
– A faixa delimita o Perímetro – o operário-chefe lançou ao redor um olhar apressado, espiando por cima da prancheta. Falava, agora, em um tom monocórdio e ausente. Senti que estava tomando seu tempo. Mesmo assim, ousei insistir mais um pouco:
– E para que serve o Perímetro?
– Ainda não sabemos – ele deu de ombros, riscou rispidamente no papel e depois sacudiu a caneta, olhando com rancor para a ponta esferográfica. –  Onde ficam as escadas para o térreo? – perguntou bruscamente. Apontei para a esquina à direita do corredor.
– Ali.
– Muito obrigado. Até mais.
O operário-chefe avançou, seguido pelos dois ajudantes e pela faixa de tinta.
De volta à Sala dos Arquivos, após encaixar o filtro em seu pedestal de plástico, comentei o ocorrido com Wilson. Por um instante muito breve, seus olhos opacos de roedor me observaram por cima dos calhamaços, portas-canetas, pesos de papel, tinteiros, esquadros, réguas e tesouras que dominavam sua escrivaninha.
– Isso é estranho – declarou ele com vaga indiferença, retornando imediatamente ao trabalho. Wilson era o melhor arquivista da repartição e nunca tinha tempo para conversar.
Ao fim do expediente, resolvi descobrir onde terminava a faixa amarela. Acompanhei seu trajeto pela escadaria de lajotas e através do saguão. Depois, saí pelas portas giratórias, dobrei à direita na calçada da Baltasar Gracián e segui em linha reta até a Praça General Hortiega. A lista terminava, rente ao plinto do obelisco – para começar exatamente do outro lado, trepando pelo Museu de Arte Moderna, saltitando sobre os telhados, metendo-se pela janela da repartição....
O Perímetro estava fechado. Uma grande tatuagem, amarela e circular, no corpo da cidade.
Na manhã seguinte, ao descer do ônibus, encontrei a repartição sitiada por uma repentina flora de andaimes, bailéus, roldanas, alcaçuzes e escadinhas, que se disseminavam pelas paredes do prédio como um parasita gigante. Um laborioso enxame de uniformes azuis e capacetes laranjas oscilava pela calçada, fluía e refluía pelas portas giratórias, trepava nas cordas que pendiam das janelas, balançava em gaiolas suspensas por cabos de aço. Dentro do saguão, empoeirados batalhões esgrimiam martelos e marretas, torqueses, tesourões e pontiagudos trituradores de concreto. No meio do hall, de pé sobre a lista amarela, um homem gritava instruções ao alto-falante. Não era meu conhecido do dia anterior, mas trazia também uma planilha e uma prancheta. Quando lhe perguntei o que estava acontecendo, ele baixou o alto-falante e apontou para o chão.
– Tudo o que está dentro do Perímetro deve ser demolido. – Seu dedo indicou vagamente as paredes e o teto: – A metade norte do prédio está dentro do Perímetro.
– E a outra metade?
 Espalmei a mão para conter a tosse, pois uma nuvem de reboco dilatava-se nos corredores laterais, em meio ao zunido das máquinas e o estrondo dos martelos.
– A outra metade fica de pé.                                                                              
Lá em cima, desempacotando meu café da manhã, tentei extrair de Wilson mais alguma informação. Ele sempre chegava mais cedo ao Arquivo e era o primeiro a ouvir as notícias.
– Não sei de mais nada – com ajuda da régua, ele deslizava seu estilete sobre uma antiga folha de jornal. – De qualquer forma, nossa sala fica na metade salva. Não precisamos nos preocupar – ele pinçou entre os dedos um retângulo de papel amarelo e depositou-o, feito um colecionador de lepitópteros, no interior de uma pasta metálica.
Mordisquei meu sanduíche de pepino, brincando de amassar distraidamente o invólucro de alumínio. Nos corredores, o rugido da demolição repercutia, estremecendo o caixilho das janelas e sacudindo os catálogos nas estantes. Um miasma de poeira invadia a sala pelo vão da porta e, pouco a pouco, ia esbatendo as coisas numa penumbra branca e asmática: as cadeiras, as mesas, as nossas roupas, as nossas caras. Além de meia repartição, o Perímetro engolia pedaços da rua, casas inteiras, bares, cafés, a maior parte do Museu e outros prédios históricos. Naquela mesma tarde, os habitantes da área começaram a ser evacuados.
Durante as semanas seguintes, viver em meio à fuligem, ao estrondo e à falta de ar tornou-se uma segunda natureza para nós. Todos os dias, víamos um pedaço do prédio ser amputado. Eles arrancavam o lajedo do assoalho, extraíam grossas fatias de telhado e de parede, decepavam pedaços maciços das pilastras e balcões. Enquanto as marretas estilhaçavam, o infinito entulho era levado embora em grandes carrinhos de mão, em sacos de lona, em reboques e caçambas.  Espiando pelas janelas do Arquivo, víamos tropas de monstros metálicos avançando pela rua: escavadeiras dotadas de luzes e sirenes vermelhas, com enormes braços dobráveis, garras pontudas, espinhos rotáteis, esferas de ferro penduradas em correntes, complicados sistemas de dinamites e pistões, canos de descarga verticais que jorravam um fumo negro e chiavam de trinta em trinta segundos.
Essa falange de gafanhotos bíblicos mergulhava no interior do Perímetro e ali se entregava a uma rotina diária de devastação. No meio dos edifícios, avistavam-se patas de louva-deus e rabos de escorpião que subiam e desciam numa sincrônica dança de autômatos. A cada ferroada, despencavam frontões e colunas e se levantavam tempestades de reboco. Numa tarde, quando fazíamos o intervalo para o café, vi a fachada do Museu de Arte Moderna desmanchar-se numa nuvem sem contornos, um confuso nevoeiro  em que mergulhavam para sempre as cariátides seminuas, os solenes capitéis coríntios, as portas de ébano, a clepsidra.... Pela Baltasar Gracián, os contêineres se afastavam transbordando colunas, caibros, pórticos e pérgulas.
Ao fim de um mês, o interior do Perímetro se transformara em um ermo profundo e sem feições. No limite da cratera, restava meia repartição, como uma torre de sentinela à beira de um vale atroz. Os elevadores desapareceram com a metade condenada. As escadas foram cortadas ao meio, de forma irregular, e era muito difícil subir ou descer pelos degraus dentados. O saguão de entrada, com sua abóbada redonda de pastilhas brancas, parecia um resto de casca de ovo. A Sala dos Arquivos, contudo, ficara intacta, em seu inexplicável santuário no segundo andar, no fundo do corredor. A equipe de demolição esquecera nas vizinhanças uma escada de madeira, e Wilson e eu passamos a usá-la para subir ao Arquivo, pelo lado de fora, já que o interior mutilado do prédio havia-se transformado em um labirinto.
Continuamos nosso trabalho. Havia ainda muitos papéis por catalogar; Wilson exigia perfeição e não tolerava desânimo. Enquanto houvesse coisas fora do arquivo (costumávamos dizer na repartição), ele estaria lá para arquivá-las.
– Ouvi dizer que está acontencendo o mesmo em algum lugar da Zona Sul – ele comentou certa tarde, enquanto dividíamos um saquinho de batatas fritas.
– O mesmo? O quê? – Wilson e eu nos conhecíamos há tanto tempo que nem me importava em falar de boca cheia.
– As obras – ele colocou uma pequena lâmina de batata entre os dentes e rachou-a com um estalo. Pensei que estava brincando, mas logo lembrei que Wilson nunca brincava.
– Fizeram outro Perímetro? – perguntei.
– Aparentemente, sim – ele segurou outra batata diante dos olhos e examinou-a detidamente, como se fosse um artefato raro. – Acho que essa história vai continuar por algum tempo.
Ele estava certo. Nas semanas seguintes, equipes de operários com tonéis de tinta disseminaram-se pela cidade. No início, eles pintavam, apenas. As linhas amarelas se estendiam pelas sarjetas e paralelepípedos, desciam meios-fios e subiam paredes, envolviam quarteirões, bairros, parques, bulevares. Desenhavam, no mapa da cidade, grandes círculos, triângulos, octaedros. Até que um dia, os operários silenciosamente bateram em retirada. Restaram só as linhas. Cheguei a pensar que a malha de listas amarelas ficaria lançada sobre a cidade como um aviso, e nada mais.
Eu estava errado. Certo dia, ao pôr-do-sol, um ronco premonitório encheu a penumbra. No horizonte, fulguraram as luzes vermelhas. Ao clamor uníssono dos alto-falantes, os batalhões da demolição avançaram sobre a cidade, multiplicados, uniformizados e invencíveis. Nas semanas seguintes, as zonas envolvidas pelas linhas foram aniquiladas com precisão e rapidez. A cidade passou a existir sob um nuvarrão eterno de concreto triturado.
Para além das áreas condenadas, os habitantes eram conduzidos em filas intermináveis. Alguns tinham rostos perplexos. Outros pareciam sonâmbulos, inermes e passivos. Todos arrastavam atrás de si malas, trouxas, crianças, cachorros, lençóis. O êxodo silencioso fluía entre as legiões de máquinas e capacetes, vasta massa humana acinzentada de poeira, tangida sempre por um onisciente funcionário das obras com alto-falante e sinalizadores de fumaça. Das janelas do Arquivo, eu observava os arrabaldes distantes, no limite entre o pântano e a planície, onde se agrupavam os refugiados. Ali, reproduziam-se barraquinhas de lona, ao clarão sujo dos fogos de querosene.
A imagem me fazia pensar nas priscas eras em que os homens viviam à mercê dos caprichos geológicos. Ora – eu ponderava – quando as águas subiam pelas barrancas ou as lavas desciam pelas encostas, arrasando casas e plantações, acaso não era necessário amealhar os pertences, seguir adiante, mover-se um pouco mais para o norte ou para o sul, atravessar aquele rio, armar uma cabana sobre essa colina selvagem, limpar a cinza do rosto e a lama das botas, matar os ursos, domesticar os cavalos e construir uma nova cidade, e uma outra, e ainda outra, e quantas fossem necessárias? Não fora assim durante séculos? Pois assim era agora. Para o leste, estendia-se a interminável caravana de caminhões carregados de entulho. Os escombros da cidade, lançados do outro lado do estuário, acumulavam-se, erodiam-se, solidificavam-se e iam tomando a forma de contrafortes, paredões, picos, penhascos.
Algumas semanas após o início da grande demolição, resolvi me mudar para o Arquivo, por questões práticas. Os transportes públicos que ainda funcionavam eram obrigados a fazer peripécias intermináveis. Já não havia cidade, mas um retículo de cidade: uma frágil membrana de casas, ruas e prédios, sobreviventes casuais do extermínio, que bordejavam gólgotas e precipícios, à espera do momento em que seriam também condenados pela fatal geometria das listas amarelas. Wilson e eu sabíamos que nossa hora chegaria, que um dia viriam os demolidores com rádio-escuta para evacuar os dois últimos funcionários da repartição. Teríamos, então, de nos afastar, só os dois – porque todos os outros já haviam ido –, rumo aos ermos, carregando desajeitadamente nossas pastas e valises. Enquanto esse dia não chegava, tudo o que podíamos fazer era seguir catalogando.
O trabalho não era fácil, claro – entre outras coisas, já não havia luz elétrica. No início, nos viramos com uma lanterna de pescaria; depois, quando acabaram as pilhas, arranjei algumas velas. Não sobrara nas vizinhanças nenhum armazém, supermercado ou mercearia, e nos faltava o espírito de aventura necessário para sair em busca de comida. Ao abandonar minha casa (que, a essas alturas, já devia ter sido destruída), eu trouxera o possível: um saco de pão de sanduíche, mortadela, picles e salgadinhos. Assim íamos vivendo. E com tanto afinco nos entregávamos ao trabalho que, numa bela manhã, chegamos a completar a classificação dos Anuários da Sociedade Nacional Geográfica – uma proeza que, em outros tempos, pensaríamos irrealizável. Resolvemos comemorar a façanha com um brinde de água mineral à beira da janela. Abrimos também dois pacotes de pastelina. Era tudo o que restava de nossos mantimentos.
– Parabéns! – levantei meu copo de plástico, com um sorriso cansado.
– A nós dois.
 Fizemos um mudo tin-tin e olhamos o panorama da cidade cancelada.
O sol recém se levantara, atrás de uma linha de prédios semi-destruídos, que agora se recortavam contra o céu da manhã, como fileira de zumbis subitamente petrificados. O vento gemia sobre a grande desolação. E, lá no meio, onde já não havia sequer encanamentos nem canos de esgoto, as incansáveis equipes empreendiam uma nova tarefa. Cercadas por grupinhos de operários silenciosos, grandes máquinas golpeavam o solo. As perfuratrizes e retro-escavadeiras rasgavam o chão, penetravam na manta lodosa, no húmus profundo, nos aqüíferos seculares. Depois de triunfar horizontalmente, os demolidores queriam conquistar a prumo, para baixo. A crosta da terra era retalhada por dezenas, por centenas de máquinas sincronizadas. À medida em que a manhã avançava, Wilson e eu percebemos algo interessante: enquanto abriam o grande buraco, o maior de todos os buracos do mundo, as equipes de demolição traziam à superfície (involuntariamente) as camadas sobrepostas do tempo. Nisso, iam surgindo esqueletos de calhambeques, campanários de igrejas coloniais, restos de tabernáculos, lápides de cemitérios antigos, sabres tortos, carabinas, cumbucas, granadas, capacetes... Olhamos tudo aquilo com olhos de arquivista, o que nos uniu num silêncio emocionado, enquanto saboreávamos o derradeiro gole de água. Mas, em seguida, percebemos que aqueles preciosos tesouros da terra não voltavam à luz do dia para serem cuidadosamente observados, numerados, classificados, mas sim para enfrentar uma segunda morte. Porque as caçambas dos caminhões os levavam também para longe, para os monturos ao sul da cidade, onde os despojos do presente e do passado agora se misturavam, unânimes, numa intransponível cordilheira de lixo.
– É uma pena – comentei, enquanto observava o comboio de veículos que desaparecia na poeira do horizonte.

– É. – Wilson assentiu, antes de despejar na boca o último punhado de pastelinas.

Conto extraído do livro A árvore que falava aramaico, finalista do prêmio Açorianos/Conto em 2012. 

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