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A caixa infinitiva, poema em prosa de Jorge Lucio de Campos

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Grande interior vermelho (1948), Henri Matisse.







As caixas podem conter quase tudo, mesmo as menores, as minúsculas, as quase imperceptíveis. Zeller Case, um obscuro escultor austríaco, nascido em Traun, e que teve rápidas ligações com o Fluxus, explorou como pode tal possibilidade. Sua intenção inicial era construir um dispositivo onde pudesse guardar as piores fases de sua vida. Para tanto, idealizou uma espécie de chocadeira na qual depositou diferentes tipos de objetos: orgânicos, cristalinos, pasmacentos, públicos ou não. Deixava-os ao sol e ao luar, em diferentes ocasiões do dia e da noite, anotando as possíveis alterações de cor, odor e temperatura.
A partir de determinado momento, em lugar dos objetos, nela começou a também colocar desejos, sofrimentos, ansiedades e inquietações acumulados e multiplicados, ao longo de anos. Ocasionalmente escondia a caixa, esquecendo-a por meses. Satisfeito com os resultados, começou a redesenhá-la de modo que, a cada versão, as suas dimensões fossem reduzidas, embora a sua capacidade de abrigar o sofrimento sempre se ampliasse. A ideia era guardar o máximo de dor em um mínimo de espaço. Ao ser descoberto, o projeto de Case trouxe-lhe notoriedade e de Traun o seu nome chegou a Viena. Uma das versões da caixa chegou a ser exibida, por algumas horas, no Museu de Wissenstrasse e na Galeria de Langerbeck.
Após um primeiro momento de satisfação com a notoriedade, Case tornou-se arredio e desapareceu. Amin Dyroff, seu amigo de infância e representante legal, declarou à imprensa que o sumiço do escultor se deveu ao sucesso definitivo da empreitada. Com quase toda a sua desgraça pessoal abrigada numa caixinha praticamente invisível a olho nu, mudou-se para um endereço desconhecido, na esperança de ser feliz. Ao que consta Dyroff não confirma essa versão, mas também não a desmente a caixa foi enterrada nos arredores de Traun, o que fez com que alguns críticos o considerassem um artista da terra. Isso nunca foi, porém, assumido pelas partes interessadas.



In: Desimagens (Bookess, 2018).








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Jorge Lucio de Campos é poeta, ensaísta e professor da ESDI/UERJ. Publicou os ensaios Do simbólico ao virtual (1990), A vertigem da maneira (2002), A travessia difícil (2015), Lembretes filosóficos para jovens sábios (2017), O império do escárnio (2017) e as coletâneas Arcangelo (1991), Speculum (1993), Belveder (1994), A dor da linguagem (1996), À maneira negra (1997), Prática do azul (2009), Os nomes nômades (2014), Sob a lâmpada de quartzo (2014), Paisagem bárbara (2014), Através (2017), Véspera do rosto (2017), O triunfo dos dias (2018) e A grande noite perdida (2018).






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