Senecio (1922), Paul Klee.
[a Manuel Bandeira]
Lembro-me de um tempo em que
a vida não tinha vazios, de um
tempo em que havia tempo no tempo,
tempo para o tempo, quando o tempo
não era anotável, apenas passava,
ajudava a ir e a voltar.
Lembro-me de um tempo em que
havia caracóis nos sapatos, de um
tempo em que a chuva tinha cheiro
de chuva e as árvores eram castelos
e as pessoas se gostavam e
fitavam em silêncio.
Lembro-me de um tempo em que
ser humano era uma condição
de orgulho, um tempo em que os bichos
ficavam em paz e as pessoas se tratavam
com ternura, se uniam e completavam.
Lembro-me de um tempo em que
se falava “obrigado”, “por favor”,
“com licença” e “me perdoe” com uma
singeleza tocante, de um tempo
em que os namorados se davam as mãos
e passeavam pelas ruas, em que havia
brinquedos e as crianças corriam
umas atrás das outras.
Lembro-me de um tempo sem
mercadorias, melancolias e espreitas,
de um tempo em que Deus ainda existia e
nos olhava do alto e amparava, abençoava,
perdoava e afagava sem exceções
suspeitas ou exigências.
Lembro-me de um tempo em que
não havia tédio nem ódio nos olhos
e o homem, aceitando sua pequenez,
se superava com gestos grandes e nobres,
em que o sol era enfático e alegre.
Lembro-me de um tempo em que
as peles se tocavam à distância e
os corações disparavam e as
palavras eram de amor.
Lembro-me de um tempo em que
valia a pena crescer, valia a pena
criar e envelhecer.
Lembro-me de um tempo em que
sonhar era uma dádiva, nascer um privilégio
e morrer um desperdício, de um tempo
em que viver não era problema,
mas sim solução.
In: A grande noite perdida (Bookess, 2018).