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Resenha de "Liturgia do fim", de Marilia Arnaud - por Krishnamurti Góes dos Anjos

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Acervo pessoal

Psicologia dos Vencidos

Por Krishnamurti Góes dos Anjos

“Psicologia de um Vencido” é o título de um poema de Augusto dos Anjos. Nascido no Engenho Pau D'Arco na Paraíba em 20 de abril de 1884 cursou Direito no Recife, mas trabalhou como professor de Língua Portuguesa em seu estado e, posteriormente, no Rio de Janeiro. Em 1912, publica seu único livro de poesias: “Eu”, que acabou por se configurar na história da literatura, como obra de transição. Assim como seus contemporâneos – Lima Barreto, Euclides da Cunha, Monteiro Lobato e Graça Aranha –, Augusto dos Anjos está filiado ao Pré-Modernismo, período da Literatura Brasileira marcado pelo sincretismo cultural, característica que o aproxima tanto do Simbolismo quanto do Parnasianismo, sendo, portanto, difícil classificá-lo em apenas um movimento literário.
Em que pese a singularidade de linguagem e criação estética, é visível em Augusto dos Anjos, uma poética permeada por profundo pessimismo e angústia moral na qual se destaca um vocabulário rebuscado e científico, uma dimensão cósmica e, sobretudo e um pessimismo arraigado. Vejamos estrofe de um de seus mais famosos poemas: “Psicologia de um Vencido”.
“Eu, filho do carbono e do amoníaco, / Monstro de escuridão e rutilância, / Sofro, desde a epigênese da infância, / A influência má dos signos do zodíaco”.
Em outro poema do autor: “Versos Íntimos”, sentimos a decepção em relação aos relacionamentos interpessoais, e também uma descrença nos destinos da humanidade ao lermos a estrofe:
“Acostuma-te à lama que te espera! / O Homem, que, nesta terra miserável, / Mora, entre feras, sente inevitável / Necessidade de também ser fera”.
Muito bem. Toda essa divagação tem dois objetivos muito claros e definidos. Primeiro, ponderar à legião de candidatos a escritor que fervilha no Brasil, quanto à importância de ler, ler muito, ler adoidado, antes de se lançar na vereda literária. Ao contrário do que alguns imaginam, a Literatura não nasceu junto com a Internet. E depois, apresentar, a obra “Liturgia do fim” da senhora Marilia Arnaud. Vejamos se, e de que forma, esses dois objetivos conduzem a algo interessante.
A autora, paraibana de Campina Grande, nos apresenta em seu romance, a história de Inácio que nasceu na fazenda Perdição. Inácio narra a sua própria vida e, em dez capítulos, a saga dos Boaventura, família que se estrutura sobre um machismo que inclui as taras de um tal Joaquim Boaventura, patriarca do clã, e dono de terras e destinos. Joaquim abriga na família que formou, personagens como a avó Doninha, a irmã louca Florinda e seu filho Felinto (um surdo-mudo de lábios leporinos), e Damiana, fiel serva que sofre e cala aos desmandos e despautérios alucinados de um homem capaz de apedrejar até a morte um cachorro indefeso amarrado a uma árvore! Um elenco digno de filme de terror.
Da união do monstro Joaquim Boaventura, com a professora Adalgisa, nascem os irmãos de Inácio. Teresa, Ifigênia, e um casal de gêmeos (Marcos e Mateus), que “não vingam” nos primeiros anos de vida. A infância de Inácio decorre sob a pressão do pai Joaquim, que o quer transformar a pulso, e a custa de violência em “homem”, como se a isso se pudesse dar tal nome. Ocorre, todavia, que Inácio é homem sensível, dado aos livros, entre os quais o “Eu” de Augusto dos Anjos, que lhe havia sido presenteado pela mãe aos quinze anos de idade. O grande contraponto de toda a história surge do próprio sangue de Joaquim Boaventura na figura de uma de suas filhas. Ifigênia irmã de Inácio é indomável, tida e havida como rebelde incorrigível, simplesmente porque é capaz de pensar, é capaz de não se submeter a historinhas de padres e religiões e de deus inventado e curtido na base da conveniência e safadeza humana. Não aceita e não acata as loucuras do pai. E por essas e “outras” termina sendo espancada e expulsa de casa depois de uma surra. O irmão Inácio a defende com unhas e dentes, e o resultado é que Inácio também é expulso de casa com dezoito anos. Aí temos o cenário de vidas que não se desenvolvem, vidas que se abortam, vidas que afinal não são vidas. Não passam de sombras doentias do próprio pai. Inácio (assim como o Augusto dos Anjos, lembram?) termina que se dedica à literatura, torna-se professor e escritor respeitado, se casa com Ieda, tem uma filha Isabel, e aparentemente constrói uma vida.
Poderia ter sido assim, mas não é o que de fato ocorre no interior do protagonista Inácio, que se define, e escreve sobre si: “acorvadado, perambulei pela vida arrastando correntes, réu errante a bater no peito, por minha culpa, minha culpa, minha máxima culpa”. p. 21. Ele sai da casa paterna expulso, muda-se para a capital, estuda, forma-se, casa-se, mas pela vida a fora continua a ser um zero à esquerda, um homem sem vitalidade, um néscio, manietado e dirigido pela amorosa Ieda, que tenta, e tenta a mais não poder, fazer dele um homem feliz. Não consegue. Inácio é homem vencido. Completamente vencido pela lembrança que lhe martela o peito. A opressão paterna o persegue onde quer que vá, e não o deixa esquecer jamais do desrespeito aos seus anseios de menino, dos ultrajes que sua mãe e irmãs foram submetidas pelo pai, e o que daí nasce é rancor surdo, ódio velado por tudo de negativo que a vida lhe impôs desde os primeiros anos de vida. E talvez por influencia de suas leituras de Augusto dos Anjos, tem uma visão do que é estar vivo, dentro de um fatalismo cegante a pensar que:  “como se  não fôssemos os trágicos seres que somos, como se a vida, em sua essência, não fosse o que é, uma linha reta para o nada”. p 32.
Decorrem 30 anos. E ainda assim Inácio se sente “apodrecido de incapacidade e fracasso, um sentimento que empesteava o mundo todo à minha volta, decidi largar tudo e voltar a Perdição”. A vida lhe negara tudo o que verdadeiramente amou. Ou pensou amar, no rastro da desorientação do próprio pai. Tal pai, tal filho? Sim, sob outras roupagens. Não havia no pai, como no filho, o sentido de um humano que se melhore, que trabalhe nesse sentido, que compreenda que não somos feras. O pai estúpido comete arbitrariedades sexuais dentro de sua própria família, o filho ilustrado casa-se, constitui família, é escritor e professor gabaritado, e no entanto, e entretanto, um adúltero que trai a esposa com colegas de trabalho, alunas e quem mais se lhe apresente a satisfazer instintos sexuais.  Inácio de certa forma é réplica mais socializada do pai. Ou um reflexo mais burilado talvez.   
Não há maneira de esquecer o passado e a estupidez em que seu pai o cria, e mais doloroso ainda o expulsa de casa no momento em que ele – em plena adolescência -, vive o primeiro e grande amor (na verdade uma explosão incontida de impulso sexual) de sua vida. Amor (?) que sentimento é este afinal que se confunde com carências, com ignorância, com a falta de diálogo, com a inexistência de convivência lúcida, e por isto mesmo, também com a pura e simples loucura? 
TRECHO:
“Breves e oníricos clarões assaltavam o quarto intermitentemente – Deus vigiava. Seguia-se um ribombar de trovão – Deus vociferava. Ainda não conseguia pregar o olho, quando ouvi o girar suave da maçaneta no trinco da porta. Coração montado na besta louca, cheguei a imaginar que pudesse ser ele, o morto que fora enterrado numa valeta à beira do nosso caminho, e que me acossara meses a fio, resignando-se, por fim, com a sua sina de alma do outro mundo, e deixando-me em paz. Mas desde quando os mortos necessitavam de portas ou janelas para invadir os espaços dos homens? O certo é que de dentro de sua inexistência outras almas continuavam me aterrorizando – um medo pueril que carreguei comigo até tarde -, e delas se podia esperar tudo, inclusive ciladas e blefes.
Foi o meu nome, soprado no centro das trevas, que me garantiu a realidade dos vivos, acendendo uma candeia em meu sangue.
De repente tudo me apareceu absolutamente claro. Longe das vistas de todos e de qualquer um, nossos abraços, cada dia mais ávidos e demorados, contradiziam um certo distanciamento, a seriedade e a frieza na palavra, o constrangimento no olhar. Envergonhados das nossas intimidades de meses antes, desamparados diante daquela repentina infamiliaridade, vivíamos nos buscando e nos evitando, porquanto num dia éramos crianças e podíamos tudo, e no outro, estávamos prontos para nos deitar, para exercer aquela paixão na integridade da nossa carne”. p. 117.   
O curso daquelas vidas termina em infelicidades, desastres e suicídios. Seres que não se desenvolvem que não se firmam como humanos. Desastre por cima de desastre, e o rancor, ou o amor que nunca teve do próprio pai (quem o haverá de dizer?), o impele voltar à fazenda, trinta anos depois, onde só sobrevivem o pai estúpido e a serva Damiana. A fazenda transformara-se em sepulcro de lembranças justamente numa espécie de “liturgia do fim”.
O parnasianismo renegou o romantismo, e exaltou uma arte fria impassível, intelectualizada, contra o transe, a participação e a emotividade - em suma, a hipertrofia do eu. Pregou o trabalho formal, o culto ao estilo: os parnasianos Filiavam-se ao parnasse francês (Gautier, Bainville, Lisle, Baudelaire e Hérédia). Melancolia, sentimentalismo, e uma  sensualidade à flor da pele que deve muito à poesia de Baudelaire. Os poetas parnasianos viam o homem preso à matéria, sem possibilidade de libertar-se do determinismo, e tendem então para o pessimismo ou para o sensualismo.
Que dizer, que pensar de uma coisa assim? Atente-se para a circunstância de um homem que nasce lá pelos anos de 1940 (em 1964 época do terror velado da ditadura militar no Brasil), Inácio é um estudante de 20 e poucos anos, morador de uma pensão. Época em que a humanidade já havia sido devastada por duas guerras mundiais, a última engendrou uma das maiores carnificinas jamais vistas como a de se lançar duas bombas atômicas sobre populações civis, ou o holocausto de milhões de judeus aniquilados pela sanha Nazista. Em que o mundo, estava se transformando em uma imensa urna funerária, e toda essa desgraça que continua e vem se acelerando ainda aqui em nossos dias. Que esperar de seres que nascem e tentam se desenvolver nesse inferno de almas? Que esperar do humano num mundo assim? Acaso homens como Augusto dos Anjos não perceberam essas tendências no tempo e no mundo em que viveram? “Acostuma-te à lama que te espera! / O Homem, que, nesta terra miserável, / Mora, entre feras, sente inevitável / Necessidade de também ser fera”.
Para que diabo afinal serve a literatura a não ser dar conta do homem e de sua existência? De que serve a literatura também, senão para subir nos ombros daqueles que nos antecederam na mesma seara, para divisar novos horizontes como o faz a senhora Marília Arnaud? Este livro nos fala de machismo? Sim, mas vai além, denuncia a submissão e vilipendio feminino por eras a fio, nos enreda sutilmente pelos meandros da loucura humana que “Mora, entre feras, sente inevitável / Necessidade de também ser fera”. Aí a grande metáfora que é “Joaquim Boaventura”. A autora não pintou um mundo colorido e enganoso como o que vivemos tal e qual bobos da corte ansiando por alegorias cibernéticas e sexualismo desenfreado (e aqui dou um spoiler na obra de Marilia. No trecho do romance transcrito acima, o que poderia parecer um ato de amor consciente e sadio, não passa de uma cena de incesto). E chegamos ao ano de 2017 da era cristã a brincar de terrorismos e guerrilhas nucleares, enquanto outros se dedicam a esfaquear ou explodir bombas suicidas, enquanto outros milhões morrem à míngua de fome miséria e a loucura se multiplica cada vez mais, em loucura. A violência banaliza-se a passos largos. [Será este o determinismo humano?].
Há de se reconhecer o brilhante trabalho de recolhimento e análise humana que a autora levou a efeito, costurando tempos, (lembramos que o Parnasianismo brasileiro, caracterizou-se pela objetividade, o universalismo e o esteticismo. Este último a exigir um formalismo quanto à construção e à sintaxe, como Marilia constrói seu texto), imbricando visões de vida, alargando e atualizando circunstâncias. Dentro mesmo da Literatura e na Literatura. Vidas na Terra da “Perdição” na qual vamos cada vez mais afundando.

Livro: “Liturgia do fim” – Romance de Marilia Arnaud – Editora Tordesilhas, São Paulo-SP.  2016, 152 p.
ISBN 978-85-8419-043-0
 LINK :  http://tordesilhaslivros.com.br/livro/liturgia-do-fim.htm

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Krishnamurti Góes dos Anjosé ecritor, pesquisador, e crítico literário. Autor de: Il Crime dei Caminho Novo – Romance Histórico, Gato de Telhado – Contos, Um Novo Século – Contos,  Embriagado Intelecto e outros contos e  Doze Contos & meio Poema. Tem participação em 22 Coletâneas e antologias, algumas resultantes de Prêmios Literários. Possui textos publicados em revistas no Brasil, Argentina, Chile, Peru, Venezuela, Panamá, México e Espanha. Seu último livro publicado pela editora portuguesa Chiado, – O Touro do rebanho – Romance histórico, obteve o primeiro lugar no Concurso Internacional -  Prêmio José de Alencar, da União Brasileira de Escritores UBE/RJ em 2014, na categoria Romance. Colabora regularmente com resenhas, contos e ensaios em diversos sites e publicações, dentre os quais: Literatura BR, Homo Literatus, Mallarmargens, Diversos Afins, Jornal RelevO,Revista Subversa, Germina Revista de Literatura e Arte, Suplemento Correio das Artes, São Paulo Review, Revista InComunidade de Portugal, e Revista Laranja Original.

Marilia Arnaudé paraibana de Campina Grande (PB), mas mora em João Pessoa. Graduou-se em Direito (UFPB) e trabalha no Tribunal Regional do Trabalho da Paraíba. Lançou, em 2016, o romance Liturgia do fim (Tordesilhas). Autora também do romance Suíte de silêncios (Ed. Rocco, 2012) e do infantil Salomão, o elefante (Selo Off Flip, 2013). Começou a vida literária na década de 1980 escrevendo crônicas para jornais paraibanos, mais tarde publicadas no livro Sentimento marginal (Produção independente, 1987). A menina de Cipango, seu primeiro livro de contos, venceu o I Concurso Literário da Secretaria de Cultura do Estado da Paraíba – Prêmio José Vieira de Melo e foi editado em 1994.  A coletânea de contos Os campos noturnos do coração foi vencedora do Prêmio Novos Autores Paraibanos promovido pela Universidade Federal da Paraíba, e publicada em 1996. 


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